22/08/18

Uma definição idiota de antissemitismo

Ultimamente têm surgido alegações (que têm sido retransmitidas em Portugal, em blogs como o Blasfémias e O Insurgente) de antissemitismo contra o líder trabalhista britânico Jeremy Corbyn.

A principal linha de ataque parece ser o Labour não ter adotado a definição de antissemitismo da Aliança Internacional de Recordação do Holocausto. Mas a verdade é que essa definição (ou, mais exatamente, a sua operacionalização) é estúpida.

Vamos lá ver em que consiste:
Adopt the following non-legally binding working definition of antisemitism:

“Antisemitism is a certain perception of Jews, which may be expressed as hatred toward Jews. Rhetorical and physical manifestations of antisemitism are directed toward Jewish or non-Jewish individuals and/or their property, toward Jewish community institutions and religious facilities.”

To guide IHRA in its work, the following examples may serve as illustrations:

Manifestations might include the targeting of the state of Israel, conceived as a Jewish collectivity. However, criticism of Israel similar to that leveled against any other country cannot be regarded as antisemitic. Antisemitism frequently charges Jews with conspiring to harm humanity, and it is often used to blame Jews for “why things go wrong.” It is expressed in speech, writing, visual forms and action, and employs sinister stereotypes and negative character traits.

Contemporary examples of antisemitism in public life, the media, schools, the workplace, and in the religious sphere could, taking into account the overall context, include, but are not limited to:
  • Calling for, aiding, or justifying the killing or harming of Jews in the name of a radical ideology or an extremist view of religion.
     
  • Making mendacious, dehumanizing, demonizing, or stereotypical allegations about Jews as such or the power of Jews as collective — such as, especially but not exclusively, the myth about a world Jewish conspiracy or of Jews controlling the media, economy, government or other societal institutions.
     
  • Accusing Jews as a people of being responsible for real or imagined wrongdoing committed by a single Jewish person or group, or even for acts committed by non-Jews.
     
  • Denying the fact, scope, mechanisms (e.g. gas chambers) or intentionality of the genocide of the Jewish people at the hands of National Socialist Germany and its supporters and accomplices during World War II (the Holocaust).
     
  • Accusing the Jews as a people, or Israel as a state, of inventing or exaggerating the Holocaust.
     
  • Accusing Jewish citizens of being more loyal to Israel, or to the alleged priorities of Jews worldwide, than to the interests of their own nations.
     
  • Denying the Jewish people their right to self-determination, e.g., by claiming that the existence of a State of Israel is a racist endeavor.
     
  • Applying double standards by requiring of it a behavior not expected or demanded of any other democratic nation.
     
  • Using the symbols and images associated with classic antisemitism (e.g., claims of Jews killing Jesus or blood libel) to characterize Israel or Israelis.
     
  • Drawing comparisons of contemporary Israeli policy to that of the Nazis.
     
  • Holding Jews collectively responsible for actions of the state of Israel.
     
Antisemitic acts are criminal when they are so defined by law (for example, denial of the Holocaust or distribution of antisemitic materials in some countries).

Criminal acts are antisemitic when the targets of attacks, whether they are people or property – such as buildings, schools, places of worship and cemeteries – are selected because they are, or are perceived to be, Jewish or linked to Jews.

Antisemitic discrimination is the denial to Jews of opportunities or services available to others and is illegal in many countries.
[Vermelhos meus]

É antissemita "negar ao povo judeu o seu direito à auto-determinação", ou seja negar a legitimidade ao Estado de Israel? Isso faria, p.ex., de grupos judeus ortodoxos como o Neturei Karta (que acham que a existência de um Estado judeu antes da vinda do messias é uma blasfémia) antissemitas; pelo mesmo raciocínio quem fosse contra o Black Power nos EUA seria racista anti-negro, quem seja contra o referendo catalão será anti-catalão, quem se oponha à criação de um país para os ciganos será ciganofóbico, etc. etc. Em ultima instância, alguém que fosse contra a existência de estados nacionais (desde anarquistas que queiram acabar com todos os Estados até ultra-globalistas que queiram apenas um Estado mundial) seria quase automaticamente antissemita por esta definição (a título pessoal, digo desde já que, no contexto atual, sou a favor da existência do Estado de Israel, com fronteiras similares à linha de armistício de 1949; com dois povos que se odeiam, ideias como "Um Estado para dois povos" ou "Palestina Livre, do rio até ao mar" são completamente absurdas - num futuro longinquo talvez possa lá haver uma confederação multi-étnica de cantões autónomos, ms para já isso seria inviável).

E é antissemita comparar aspetos da moderna política israelita com a política nazi? Mesmo que essas comparação estejam erradas (e se percebo bem o significado da palavra "comparisons", isso nem significa dizer que são equivalentes), isso torna-as automaticamente antissemitas? Afinal, desde 1945 que fazer comparações com os nazis é quase um passatempo universal - quantos líderes internacionais têm sido o "novo Hitler"? Praticamente quase todos os presidentes dos EUA e também quase todos os presidentes de países posteriormente invadidos pelos EUA (outro clássico, além do "novo Hitler", é o "novo Munique", acerca de qualquer acordo internacional a que alguém se oponha); até há uma "lei" dizendo isso: "À medida que uma discussão online se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%". No entanto, quando chega a Israel, essa comparação torna-se proibida: se as pessoas que dizem que Trump, Putin ou Khamenei são o "novo Hitler" disserem isso de Netanyau, passam automaticamente a ser antissemitas; se alguém dizer que os critérios israelitas para decidir quem é judeu são similares aos das leis de Nurumberga, é antissemita; se alguém dizer que, quando dirigentes politicos israelitas, a respeito de alguma guerra, dizem "o exército ganhou mais foi traído pelos políticos", estão a repetir a propaganda nazi da "facada nas costas", é antissemita. etc

E o grande paradoxo disto é que mais à frente a tal definição operacional até dá como exemplo de antissemitismo "Holding Jews collectively responsible for actions of the state of Israel"; ou seja, por um lado reconhecem (bem) que o Estado do Israel é uma coisa e os judeus são outra, mas, por outro, nos pontos anteriores identificam Israel com os judeus, considerando que certas opiniões sobre o Estado de Israel são antissemitas (mesmo que até sejam expressas por judeus).

1 comentários:

João Vasco disse...

Olá Miguel,

Concordo a 100% com o teu post.

No entanto, pelo que percebi, a objecção de Corbyn foi a quatro(!) exemplos e não apenas aos dois que destacas. Não sei quais são os quatro exemplos (seria interessante sabe-lo), mas sei que um dos quatro é realmente aquele sobre a existência de Israel, e que outro dos quatro é o "Accusing Jewish citizens of being more loyal to Israel, or to the alleged priorities of Jews worldwide, than to the interests of their own nations."

Neste ponto, não posso concordar com a posição do Corbyn. É perfeitamente adequado considerar exemplo de anti-semita alguém que, do nada, começa a assumir posições e convicções de cariz político a partir da sua pertença étnica. É um exemplo acabado de discriminação.

Dito isto, é evidente que é diferente cometer um acto racista ou discordar da definição de racismo. Embora Corbyn tenha sido acusado de racismo devido a esta polémica, ele nunca teve um comportamento que violasse qualquer destes pontos, mesmo aqueles que assinalaste. Ele está a ser acusado apenas porque discorda de uma lista que bem demonstras ser péssima, e isso é uma questão política e intelectual.

Ainda assim, tenho pena que também discorde de um ponto (ou dois?) em que a lista acerta.