21/08/18

Relatos da Checoslováquia, há 50 anos

O mais velho dos que ali estávamos, que conhecera muitas coisas, ocupara cargos de grande responsabilidade, quebrou o silêncio para contar a história dum rapaz soviético que parou o seu tanque num arrabalde industrial de Praga, a 28 de Agosto de 1968 pela manhã, quando se lhe deparou a barreira humana que em russo lhe gritava que regressasse a casa. «Da retaguarda da coluna assim bloqueada saiu um oficial que interpelou o rapaz instalado no alto da sua torre; e, como este, para explicar o seu gesto, lhe apontasse a multidão, abateu-o a frio. A coluna avançou. A multidão afastou-se, mas recolheu o corpo do rapaz. As gentes do subúrbio enterraram-no como se fosse um dos seus. É isto o internacionalismo proletário...»

(...)

Uma mulher sem idade explica que a sua filha se correspondia, segundo o costume vigente - costume e regra também - com uma estudante soviética da sua idade. Após a invasão, a soviética não disse mais nada. A jovem checa insiste, afim de saber o que pensava aquela que ela continuava a considerar ainda como sua amiga. Finalmente chega uma carta, mas com uma linguagem que parecia escrita por uma estranha: vós mataste o meu irmão aquartelado em tal sítio. Vós sois contra-revolucionários, verdadeiros fascistas, etc. Ora, justamente, ninguém na Checoslováquia matara soldados soviéticos (...).

A jovem checa e os seus pais quiseram ficar com a consciência tranquila. O endereço do aquartelamento era exacto. E , com grande espanto seu, lá encontraram o irmão de excelente saúde. Começaram a gozar a alegria do happy end e a rapriguinha pensa na alegria da sua amiga soviética quando souber que encontraram o irmão. Mas o rapaz parece não perceber nada. Lê e relê a carta da sua irmã e depois, subitamente, empalidece e vai-se abaixo. «Mas isto significa que nunca mais regressarei a minha casa. Nunca. É por isso que enviaram já à minha familia o aviso da minha morte...»

(...)

A mulher sem idade voltou a tomar a palavra. «Tenho um amigo ginecólogo. Um dia, os Soviéticos vieram requisitá-la ao seu hospital. Julgou que se tratava de um engano, pois o Exército Vermelho é, evidentemente [sic], formado por homens.Mas não era um engano. Teve de ir inspecionar o bordel militar. O meu amigo também é um velho comunista. Então exclama: «Um bordel? Mas que bordel? E para quem?» O oficial responde pausadamente que não se pode deixar a tropa meter-se com as mulheres da terra, pois isso seria politicamente inconveniente. E aí vai o nosso ginecólogo no exercício da sua função, um pouco curioso, apesar de tudo, por saber que espécie de mulheres se prostituem assim oficialmente na União Soviética. Encontra profissionais que foram mudadas da sua zona de trabalho, depois, de repente, encontra-se com estudantes de Leninegrado que foram presas por ocasião das manifestações de 1967 [Nesse ano houve grandes manifestações universitárias tanto na U.R.S.S. como em Varsóvia e em Praga]. Como eram presas de direito comum, foram deportadas para aqui com os outros...»


Perante isto, que se pode dizer que não seja nem imbecil nem cúmplice? Toda a gente sabe, desde Hegel e Marx, que a relação de escravo e senhor infecta toda a vida. Ora o Partido tornou-se o Partido dos senhores (...). Todos nós conhecemos, entre os nossos, pessoas capazes de matar um rapaz que desobedece na torre do seu tanque, ou de deportar um regimento inteiro contaminado por ideias perversas. Mas o caso das estudantes revoltadas e condenadas ao bordel já é menos evidente. Mas há quanto tempo esta desigualdade e esta repressão reinam na U.R.S.S.? Mesmo que tomemos 1930 como o ano da viragem, já faz trinta e nove anos neste Primavera! foi preciso menos tempo para fabricar SS num país que passava por civilizado, com belas maiorias de esquerda antes de 1933.

(...)

O velho homem cala-se. É que ele andou nas viaturas negras de cortinas fechadas que atravessavam todos os semáforos vermelhos, recebeu os sobrescritos secretos e a moeda especial para os armazéns reservados. Ele conhece o anverso feudal do Partido-Estado socialista e do exército de servidores e de policias que lhe impedem os acessos e lhe dissimulam as saídas. Depois excluiram-no do paraíso, mas sem o esmagarem na engrenagem das torturas, sem confissões falsas, sem processo. E ele calou-se até à Primavera. Avaliará ele agora o peso do seu silêncio?
Acreditei na Manhã, Pierre Daix

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