27/08/12

Da "tradução como actividade democrática"


No seu comentário, que muito me honra e responsabiliza, a um meu post anterior sobre George Steiner, um leitor, que se identifica como Conservador e pelas iniciais GVRCS, elogia com excessiva generosidade a minha oficina, ao mesmo tempo que se declara adversário das minhas propostas políticas, sem adiantar, na circunstância, outras razões.

Ora, parece-me que a melhor maneira de corresponder à interpelação de GVRCS, é tentar explicitar aquilo a que poderia chamar, invocando o exemplo da leitura que João Barrento faz da produção de tradutor de Paulo Quintela, a minha própria concepção da "tradução como actividade democrática".

Assim retomo aqui os parágrafos finais de um breve ensaio publicado originalmente na Trajectos (nº3, Outono de 2003, Lisboa, Fim de Século, 2003), em resposta a um convite do seu director, e meu amigo, José Rebelo: texto no qual, ao fio de uma leitura de O Poço de Babel, de João Barrento, procuro elucidar algumas razões da democracia à luz de uma tradição "anti-nacionalista" da tradução, bem como as razões políticas da minha adesão a essa tradição —"estranhante" e "identificativa" —, na qual, a seu modo, se inscreve também a poética do pensamento de George Steiner.

Não precisarei de acrescentar grande coisa às razões que assistem à tradução estranhante ou identificativa, uma vez que implicitamente elas têm vindo a ser adiantadas desde o início destas linhas. No entanto, e na perspectiva da solidariedade entre a sua ideia e a da construção de um paradigma ou de uma poética democráticos no domínio das relações entre mundos culturais diferentes e no que se refere à ideia da mundialização de uma cidadania democrática governante, há alguns aspectos em que devo ainda insistir.

Uma reflexão de Antoine Berman descreve bem a operação paradoxal que a tradução identificativa ou estranhante leva a cabo. Com a leitura de uma tradução capaz de acolher a estranheza ou a alteridade essencial e singular do que o texto noutra língua fez, “encontramo-nos na presença não só de passagens visivelmente acabadas, mas também de uma escrita que é uma escrita-de-tradução (…), uma escrita de estrangeiro que se torna harmoniosamente francês sem choque algum (ou, se choque houver, será um choque benéfico). Estas ‘zonas textuais’ em que o tradutor escreveu-estrangeiro em francês, e, assim, produziu um francês novo, são as zonas de graça e de riqueza do texto traduzido” (A. Berman, Pour une critique des traductions: John Donne, Paris, Gallimard, 1995). Pois bem, há aqui dois níveis da “tarefa do tradutor”, em que vale a pena atentar para compreendermos melhor que “estranhamento” entra em jogo no diálogo sui generis que é a tradução que se propõe refazer noutra língua a não-equivalência do original, e a que aqui chamarei a não-equivalência da língua a traduzir e a não-equivalência nessa língua da voz única do original que — dentro dela e recorrendo ao sem-fundo metamórfico do seu fundo metafórico — o torna, como dizia Proust, “estrangeiro na sua própria língua.
Temos, em primeiro lugar, a não-equivalência das línguas ou culturas que se encontram, línguas ou culturas que não são pretendentes rivais ou termos de uma alternativa, mas criações singulares animadas igualmente pela potência de metamorfose ontológica da invenção da linguagem e/ou pela imaginação radical da actividade instituinte. Ora, será retomando a sua própria língua em estado nascente, retomando nela essa potência de metamorfose que habita a sua dimensão simbólica e metafórica em acto, que o tradutor poderá acolher, no seu fazer, o fazer(-se) da outra língua. Deparamos aqui com essa dimensão de uma “terceira voz” ou de uma “língua de ninguém” enquanto origem e estado nascente da linguagem através dos quais é em línguas que a espécie fala cada uma das suas línguas, e as línguas comunicam. Mas importa acrescentar, por um lado, que a origem não significa apenas nem privilegiadamente o passado, enquanto, por outro, embora a tradução tenda a revelar uma origem comum em que todas as línguas participam, este último horizonte não pressupõe necessariamente, nem atrás de nós nem à nossa frente, uma língua única. O alvo da “tarefa do tradutor” não é tanto a construção de uma língua única, que de resto falaria em línguas como todas as outras, como a intensificação em cada língua da potência de criação ontológica, comum a todas, que se revela na “invenção da linguagem”. E deparamos aqui com qualquer coisa que pode ajudar-nos a pensar melhor como se põe questão da multiplicidade cultural na perspectiva da mundialização da democracia. Com efeito, se esta pressupõe um horizonte comum e um movimento de unificação, estes serão previsivelmente inseparáveis de um movimento de pluralização no interior de cada matriz cultural e nas relações entre elas, que só poderá ser potenciado pelo reconhecimento explícito da auto-instituição da sociedade e pela afirmação da cidadania enquanto exercício da “política como actividade autónoma que interpela [e, em sendo caso disso, antecipa] a autonomia dos outros” (Castoriadis).

Para concluir, e a partir agora tanto do primeiro nível do reconhecimento e da tradução da não-equivalência como do segundo — a tradução da não-equivalência, ou singularidade dentro da singularidade, da voz única do original —, gostaria de sublinhar qualquer coisa que é da ordem das suas condições de possibilidade, ao mesmo tempo que incita a uma reflexão sobre o papel do reconhecimento da singularidade irredutível da voz do sujeito individual pressuposto pela figura  cultural emblemática da cidadania.

Pois bem, para poder acolher a estranheza do fazer e fazer-se da outra língua ou da outra cultura — tal como para poder  reconhecer plenamente a singularidade  que instila no acto da palavra o fazer(-se) de cada voz, irredutível à língua comum, ainda que quase indefinidamente silenciável pela sua situação de palavra instituída, ou do núcleo psíquico, irredutível à instituição, ainda que quase indefinidamente moldável por ela,  a partir do qual o indivíduo é formado por uma cultura e, no caso de uma cultura democrática, formado como indivíduo autónomo e capaz de cidadania —, é necessário que o tradutor e a sua tradição cultural tenham dessacralizado a sua língua e instituições e aceitem investir e recriar na “arena do sentido” o que lhes é “próprio”. Estamos, de facto, perante uma exigência que, referindo-se tanto ao interior do espaço literário propriamente dito como a esse seu montante e sua foz que é a linguagem comum, vincula a “tarefa do tradutor” do mesmo modo que vincula também o exercício da cidadania, não a pressupondo esta última menos — ao mesmo tempo no espaço público da deliberação e decisão políticas formais como aos diversos níveis da existência partilhada e na representação/relação que cada indivíduo mantém tanto dos outros e com os outros, como de si e consigo próprio. Tanto a tradução igualitária — que remete para a igualdade de direito do não-idêntico — entre duas línguas como a convivência democrática entre matrizes culturais diferentes, como ainda o reconhecimento da não-equivalência e singularidade última de cada ser humano individual que é ao mesmo tempo um dos pressupostos e fins distintivos do projecto de autonomia, implicam esta dessacralização pelas partes envolvidas das línguas e das significações encarnadas na instituição, tal sendo de resto a condição de possibilidade de um diálogo performativamente instituinte, isto é que faz qualquer coisa que nenhum dos participantes poderia fazer por si só e que transforma ou recria o fazer/ser dos participantes sem resolver a sua identidade em qualquer síntese ou momento superior, mas confirmando antes na transformação daquela a potência de criação do mais “próprio” de cada um deles.

4 comentários:

joão viegas disse...

Caro Miguel,

Concordância total. Homo sum...

Nobreza da arte do tradutor : saber restituir na integra a palavra do outro, incluindo as asperezas que a tornam distante para nos. O bom tradutor é o que faz isso com tanta subtileza que ninguém repara que ele encurtou essa distância, o bastante para que ela se torne não so perceptivel, mas compreensivel para nos, e logo transponivel.

Um peixe a nadar contra a corrente para nos dar a ver a beleza que, em cada obra-prima literaria, nos remete para uma era anterior à maldição de Babel.

Não tenho grande pratica dos inumeros textos teoricos sobre a tradução, mas aconselho aos leitores francofonos do Vias o "Sous l'invocation de Saint Jérôme" de Valéry Larbaud. Um tradutor começa por ser um leitor ; um bom tradutor procura não ser mais do que isso...

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
o texto de V. Larbaud é uma referência preciosa. Deixando de parte, por agora, as reflexões que tematizam directamente os problemas da tradução humanística, o seu comentário lembrou-me recomendar aqui o Sur la lecture que o Proust nos deixou e que ando há anos a ver se convenço algum editor a publicar numa versão minimamente legível (em tempos, circulou uma "tradução" do texto, mas imprestável, para quem não conseguisse, no mínimo, reconstituir o original francês…).
Outro dsabafo: a escandalosa abstenção de reedições e/ou de novas traduções que acompanhou, na região lusa, o centenário de Rousseau: nem a retradução das Confissões, nem a tradução das Lettres de la montagne, nem essa digressão estupenda que dá pelo nome de La profession de foi de l'abbé savoyard. Saibda V. que eu bem me movi junto desta e daquela casa editorial a ver se… Mas nada. E, para o ano, passa mais um centenário de Diderot, cuja celebração entre nós corre o risco de ser uma plúmbea abstenção editorial. Confrangedor, meu caro, e eloquente, também. Não há ediçoes disponíveis de Gide, nem do seu Larbaud, quase nada da Colette, pouquíssima coisa de Valéry, zero de Jouve, et ainsi de suite. Para já não falarmos dos anteriores - para quando uma nova tradução de textos de Balzac, como Illusions perdues? - nem, por outro lado, dos mais próximos de nós. E para nos ficarmos pelas letras francesas ou francófonas (Henry Bauchau e tantos outros), que são as que conheço menos mal.

Vigoroso abraço

msp

joão viegas disse...

Ola,

Quanto ao texto do Proust, não o li, mas vou ja tratar de colmatar a lacuna.

Quanto ao resto é de facto confrangedor. Visto de longe, não sei a que atribuir a pobreza do panorama editorial português (pelo que vejo nas montras, alguma coisa se vai publicando, mas é tão pouco...) numa altura em que, em teoria pelo menos, deviam estar cada vez mais Portugueses a aceder à leitura, o que se deveria normalmente traduzir por um mercado em expansão. Temos ai um sério problema de incompetência e/ou de inapetência, não sei se das editoras, se do publico em geral !

Uma explicação poderia ser a alienação das nossas classes cultas, que muitas vezes abandonam cedo a lingua patria em beneficio de outras, esquecendo-se de retribuir. "O que diziam ? O amo não dizia nada, e Tiago dizia que o seu capitão dizia que tudo o que acontece ca em baixo, em bem ou em mal, estava escrito la em cima".

Abraço

Anónimo disse...

um texto brilhante, Miguel.

gostei muito.
ezequiel