19/09/12

Ainda sobre Charlie Hebdo, a blasfémia e a liberdade de expressão

Excertos de uma entrevista concedida ao Nouvel Observateur pelo chefe de redacção de Charlie Hebdo, Gérard Biard.


— O que nos decidiu a publicar esses desenhos [caricaturas de Maomé] foi a mesma coisa que nos leva todas as semanas a publicar outros, de toda a espécie: a actualidade. Acontece que, na semana passada, o tema de actualidade mais escaldante, sem querer brincar com as palavras, era esse filme imbecil [A Inocência dos Muçulmanos]. Um filme que umas quantas pessoas viram na Net e que foi, evidentemente, explorado por exaltados, que incendiaram embaixadas e provocaram motins que causaram mortes um pouco por todo o mundo.
(…)
Se Charlie Hebdo, que é um jornal ateu, não fala de uma actualidade dramática ligada a extremistas religisosos, sejam estes quem forem, de que falará, então? No mesmo número, falamos também das actividades de Bernard Arnault, do casamento homossexual e da oposição fanática que lhe move a Igreja Católica. Portanto, não nos focamos num só tema.
(…)
É motivo de bastante consternação que o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros de um país como França (…) critique um jornal que se limitou a exercer essa liberdade [a liberdade de expressão]. Esperávamos outra reacção e um apoio completamente diferentes. Tanto mais que quando fomos atacados pela Mesquita de Paris e pelos islamistas integristas por ocasião do caso das caricaturas [de Maomé — publicadas, há meses, pela revista], François Hollande saiu em nossa defesa.


9 comentários:

Niet disse...

O maximalismo e intransigência das posições expressas por MS. Pereira,com que desmistifica o problema da censura islâmica aos filmes e caricaturas que questionam o Islão integrista mais totalitário parecem-me muito oportunas e puras. Em Lisboa, toda a classe política responsável me fala- há dois anos a esta parte- dos próceres e animadores da Net islâmica da região portuguesa...Tu vives nessa sociedade a 100 por cento, quotidianamente. Claro que esta discussão nos obriga a tentar decifrar o teor da polémica sobre a Violência que G. Agamben recupera da travada entre Carl Schmitt e Walter Benjamin ; impõe- nos também meditar sobre a aceitação dos três grandes traumatismos descritos por Freud que a humanidade deve aceitar,segundo nos indicou Castoriadis: " não é o centro do Mundo, não está absolutamente separada da animalidade e não pode pretender à plena consciência e ao controlo do que é e faz "...Ainda Castoriadis: Um sistema de deuses não pode ser contestado senão por factores que lhe são exteriores- outros deuses ou uma razão a fazer-se"...O Cohn-Bendit acusa hoje os dirigentes de Charlie Hebdo de serem masos, não sem sublinhar que " todo o integrista é idiota". Salut! Niet

joão viegas disse...

Ola de novo,

E' claro que o primeiro impeto é sempre aplaudir o Charlie : "bal tragique !".

Mas no sentido do Niet, e do Cohn Bendit, cabe talvez salientar alguns pontos que, se calhar, não são transparentes ai em Portugal :

- o governo francês proibiu uma manifestação (não autorizada) de protesto contra o filme americano no sabado passado, e recusou autorizar manifestações no mesmo sentido este fim de semana, a pretexto de que não ha nenhuma (boa) razão para introduzir em França um debate sobre a questão. Portanto não estamos propriamente num contexto de cedências aos fanaticos...

- Não vi reacção nenhuma em França, incluive por parte dos politicos no poder, que não sublinhasse que a liberdade de expressão é intangivel e inegociavel.

- O Charlie Hebdo não pode ignorar que, tendo em conta o timing, as caricaturas que publica colam-se necessariamente, e assumidamente, ao filme americano que o proprio director do jornal qualifica de "idiota".

Portanto também me parece ter algum mérito a posição que lembra que a ameaça do fanatismo islâmico sobre a liberdade de expressão no ocidente é um tigre de papel e que, nesta matéria, a responsabilidade passa também por procurar saber se não nos estamos a deixar instrumentalizar.

Uma das tristes consequências deste imbroglio, que a meu ver deviam ter sido antecipadas, é ver a Marine Le Pen triumfante a armar-se em defensora da liberdade de expressão e do Charlie Hebdo. O director da publicação não pensou nisso ? Não devia ter pensado ?

Resta esperar que, na proxima edição, o Charlie nos mime com boas caricaturas da Marine e, ja agora, dos talibãs americanos que aparentam estar na origem do problema. E que se devem estar a rir...

Salut para os dois !

Anónimo disse...

Carissimo João Viegas: Hollande faz como a Merkel- e aceita diktat de Obama-jogando na cautela e com muito cuidado para não arreliar os " donos " da Opep...Ainda hoje a Fed norte-americana anuncia que não vislumbra soluções para a crise estrutural do sistema económico e financeiro mundial...Só faltava o preço do crude- o Poutine e o Chavez devem esfregas as mãos-começar a subir, a subir...Abraço. Niet

Anónimo disse...

Além de ser um jornal satirico o Charlie-Hebdo é também um comércio e como tal necessita vender, e para vender que melhor receita neste momento que Maomé e a precepção (nem sempre injustificada) do mundo muçulmano de serem desprezados pelas suas crenças. Os laicos em França tomam por vezes posturas quase religiosas e intransigentes com relação a certas atitudes da juventude arabe em França. Para terminar eu diria: Nem Maomé nem Charlie Hebdo! Abaixo a religião e o comércio se é que ha alguma diferença?

LAPA disse...

O Charlie-Hebdo confunde comércio e liberdade de expressão. O seu objectivo primeiro é provocar o escândalo e assim venderem os jornais a laicos convencidos da classe média parisiense, pois não acredito que os seus leitores sejam os habitantes deixados ao abandono dos arredores de Paris e que claro são pobres, arabes ou negros, e para cúmulo da desfaçatez são crentes e sem o humor necessário para compreenderem as subtilidades laicas do Charlie-Hebdo. A Marine Le Pen, essa sim, compreende imediatamente que é necessário defender o jornal contra esses (selvagens) de origem africana que ameaçam a nossa bela civilisação judeo-cristã.
Ser laico não quer dizer ser inteligente, e isso viu-se muitas vezez em França nas posições tomadas por muitos deles em relação ao véu islâmico e às proibições de entrarem na escola para as meninas que teimavam em não querer deixá-lo.
Só falta a criação de uma Frente Unida para a defesa da liberdade de expressão composta pelos amigos do Charlie Hebdo e do Front-National.

Ana Cristina Leonardo disse...

O Charlie Hebdo não pode ignorar que, tendo em conta o timing, as caricaturas que publica colam-se necessariamente, e assumidamente, ao filme americano que o proprio director do jornal qualifica de "idiota".

os idiotas têm tanto direito à liberdade de expressão como os outros :)

joão viegas disse...

Ola cara Ana Cristina,

Em principio v. tem razão.

Mas neste caso, estamos pelos vistos a falar de um filme que ninguém viu na integra (até ha quem duvide que ele exista na integra...), e que aparenta, pelo que se sabe dele, não ter proposito nenhum, informativo, artistico, ou outro, que não seja achincalhar gratuitamente as pessoas que seguem um credo, porque o seguem. As aparências são também de que a manobra tresanda a instrumentalização por parte de fascistoides americanos que acham giro tudo o que permite pintar os muçulmanos com as cores do diabo satânico.

Nestas circunstâncias, a simples prudência parece aconselhar a que ponderemos um bocadinho se devemos precipitarmo-nos a gozar com os que protestam, ainda que protestem de maneira desajeitada e idiota (e o direito à idiotice existe, como v. lembra) e que se prestem também a torpes instrumentalizações, que parece ter sido o objectivo da manobra in the first place.

Mais uma vez, não me choca nada a reivindicação da liberdade de expressão, estaria pronto a aplaudir de pé se ela estivesse realmente em causa (mas não vi nada nesse sentido em França).

Digo apenas que, neste caso, o Charlie Hebdo colou-se também ao conteudo do filme, ou à sua ausência, enbandeirando em arco acerca do direito a provocar porque sim, ainda que gratuitamente et de maneira deliberadamente ofensiva e no proposito mais do que provavel de criar um pandemonio para poder agitar o fantasma do perigo Arabe.

Um direito que lhe assiste, diz-me você.

Não contesto isso de maneira nenhuma.

Mas uma boa ideia ?

Isso, ja não tenho a certeza.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Camarada Ana

Já disse que concordo com muito do que o João Viegas diz e suponho que, no fundamental, na hora da verdade, se quiseres, continuamos de acordo. No entanto, creio que tens toda a razão no teu comentário.
Tanto mais que, sem dúvida, o nosso amigo JV não contestará que a utilização da censura a pretexto de combater a estupidez só pode contribuir para o seu triunfo.
E depois, não devemos ceder à paranóia dos fanáticos que se declaram perseguidos e ofendidos. Independentemente da estupidez do filme, estamos perante uma tentativa de amordaçar a liberdade de expressão e de impor a censura e a obediência por parte das pretensas vítimas, pelo que é a liberdade de expressão que devemos afirmar e defender. Sem dúvida, reivindicar e defender a liberdade de expressão não basta para vencer a miséria e a opressão a que a ordem mundial dominante, por um lado, e os seus governantes ou chefes locais, por outro, condenam os grupos e populações entre os quais os censores e sumos-sacerdotes recrutam os manifestantes. Mas, se não basta, ajuda, ou pode ajudar. Ao passo que a censura e a sacralização das religiões de Estado só podem funcionar ao serviço dos interessados e beneficiários da perpetuação da opressão e da miséria dos "seus" governados. É isto que está em jogo, e não a discussão da "linha" ou das orientações do Charlie Hebdo.

miguel(sp)

joão viegas disse...

Sem duvida, caros, sem duvida.

A censura é inaceitavel e não devemos brincar com isso. Eis o que me parece claro e insofismavel.

O resto é acessorio.

A minha duvida era apenas : sera mesmo de recear, neste caso, que a estupidez se expresse sem protestos que lhe façam eco ? Não deveriamos antes confiar na extraordinaria capacidade que os imbecis têm de se ridiculizar e de se descredibilizar a si proprios ? Em suma, não sera "ousadia" (sacrilega, la esta), por parte do Charlie Hebdo, tentar igualar a qualidade das caricaturas que a propria realidade coloca perante o olhar de nos todos, com o risco de borrar a pintura ?

A ironia disso tudo é que uma das caricaturas (a que se refere ao filme "intouchables") diz com graça o que me parece ser o essencial. So que o timing escolhido acaba por impedir, na pratica, que essa mensagem seja ouvida...

Uma das ironias, porque outra, mais evidente ainda, é isto suceder numa altura em que vemos irromper por todo o lado protestos contra a arte da tourada (ora bem, não é exactamente disso que se trata aqui, de uma forma de tourada ?). Mas, para essa, as minhas fracas competências não chegam. So o talento da Ana Cristina Leonardo...

Boas