Sei bem que, ouvindo-me falar de liberdade de expressão e liberdade de criação, haverá quem ache o meu vocabulário irremediavelmente datado e anacrónico, escandalosamente pouco subversivo, senão demasiado reformista, e logo contra-revolucionário. E a verdade é que tanto como a monopolização dos meios de comunicação, a censura e outros aparelhos policiais do poder político oligárquico, que são dispositivos talvez mais perceptíveis, também a normalização e a neutralização do sentido das ideias e das palavras, a sua redução às frases feitas que fazem a ordem estabelecida e através das quais esta se refaz, reprimem a interrogação e a recriação entre iguais do sentido dessas mesmas ideias e palavras, quotidianas e comuns, cuja partilha é requerida pela igual e livre participação dos cidadãos comuns no governo da cidade.
Assim, precisamente o termo "cidadão", que, para Aristóteles, por exemplo, designava aquele que não estava submetido a um governo em cujo exercício não pudesse participar como governante de parte inteira e em pé de igualdade com os demais, designa hoje alguém cuja participação no governo da cidade se limita ao direito de voto num colégio eleitoral convocado a anos de intervalo. Do mesmo modo, a palavra "democracia", que significava a cidadania governante e a autonomia individual e colectiva de sujeitos capazes de se darem as suas próprias leis, assumindo a responsabilidade de o fazerem; a palavra "democracia" que significava o exercício do poder político pelas assembleias de cidadãos e os seus magistrados, muitas vezes designados por sorteio, funciona hoje - nos casos menos maus - como uma espécie de sigla de qualquer coisa como o "Estado de direito" de uma oligarquia capitalista e liberal, cujas prerrogativas governantes se exercem, a coberto da autonomia sistémica da economia, largamente à margem do controle do "povo soberano".
Todavia, se formos capazes de libertar as palavras desta sua captura instrumental e burocrática, talvez possamos considerar a liberdade de expressão e a liberdade de criação - entendidas como exercício de interrogação, questionamento e proposta de alternativas, inseparável dessa mais arquitectónica de todas as artes que é a política ou o governo da cidade - talvez possamos considerá-las, à liberdade de expressão e à liberdade de criação, os princípios, ao mesmo tempo que os fins, que melhor caracterizam as actividades da Casa da Achada/Centro Mário Dionísio, do mesmo modo que inspiraram a vida e a obra daquele cujo nome este colectivo quis que estivesse presente no seu.
É por isso que, para concluir e tendo em conta o projecto de manifesto para o qual fomos convidados a contribuir, eu diria que um primeiro balanço das actividades desta casa bastaria para nos fornecer uma ideia ou proposta de intervenção ao mesmo tempo cultural e política, da qual não seria abusivo fazermos uma divisa: da liberdade de expressão e criação à expressão e criação da liberdade. Ou seja, e explicitando um pouco mais: da reivindicação da liberdade de expressão e criação do pensamento e das artes ao exercício igualitário da participação de todos deliberação e na decisão das leis por que se governam.
Com efeito, a liberdade de expressão e criação só nessa criação e expressão da livre e responsável igualdade dos governados no exercício do seu autogoverno pode aceder à plenitude das suas potencialidades, ao mesmo tempo que é condição necessária da extensão dessa igualdade, em termos de liberdade efectiva e de efectivo exercício do poder, sem a qual os nomes "democracia" ou "cidadania", por um lado, e a palavra "cultura", por outro, se reduzem a mistificações que mutilam tanto a paleta como o mundo que, inscrevendo-se nele, ela transforma e recria - tanto a vida do pensamento e da linguagem como as condições da liberdade nos trabalhos e nos dias das nossas próprias vidas.
M.S.P.
Na Casa da Achada / Centro Mário Dionísio, Lisboa, 29 de Setembro de 2012
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