04/10/12

A propósito de um novo editorial do Passa Palavra, de um manifesto chamado "O Meio da Esquerda" e de um congresso que se reivindica da democracia e das suas alternativas

Há dias, o camarada Zé Neves publicou no Vias e noutros lugares um post em que expunha claramente os impasses das intenções democratizadoras por via, digamos, de uma ou outra "alternativa de governo"  que não ponha em causa o próprio modo de governar (relações de poder, divisão do trabalho político, distinção hierárquica entre governantes e governados, etc., etc.).  E concluía a sua intervenção reiterando a necessidade de libertar a democracia do "fardo da representação".

Pois bem, dias depois, um grupo de personalidades — entre as quais se contam cidadãos que, à partida, esperaríamos ver mais empenhados na democratização instituinte das relações de poder vigentes através da extensão da participação igulaitária e regular da gente comum no exercício governante, do que na substituição do ministério — publicava um manifesto intitulado O Meio da Esquerda: do Contra ao Como, que não só silencia inteiramente todas as questões do tipo da levantada pelo Zé Neves, como reafirma implicitamente o princípio hierárquico da representaçãoe das relações de poder dominantes, a par do correspondente imaginário da figura dos "bons pastores" como única via de correcção dos males que afligem o pobre rebanho, ou seja: as condições de existência do comum dos cidadãos (na medida decrescente em que hoje ainda nos podemos dizer tais).

Pois bem, o Passa Palavra acaba de publicar mais um texto subscrito pelo seu colectivo — Os perigos da "nação em cólera" —  em que, através de uma análise do manifesto referido, põe em evidência como a sua lógica e pressupostos, mais do que simplesmente insuficientes para abrir caminhos que tendam a libertar a democracia do fardo da representação, constituem um reforço das formas de acção e de organização incompatíveis com a orientação democrática das alternativas que, invocando embora o nome da democracia, alguns dos seus subscritores propõem. A questão que aqui se põe é a mesma a que, comentando um recente post do João Valente Aguiar, chamei a "questão de como organizar as lutas e a acção política em geral de maneira a evitar que os chefes e patrões contra os quais nos revoltamos reapareçam – ou sejam reproduzidos – nas nossas fileiras, reciclando a dominação classista sob novas formas. Neste momento, poucas questões deviam interessar mais os que se reclamam de 'uma terra sem amos' e declaram agir em vista de criar as suas condições. Mas é natural que aqueles que vêem ameaçado por esta discussão o seu poder de governar sobre os outros – ou as suas ambições de pastores dos outros reduzidos a rebanho – fujam dela, recorrendo a insultos, processos de intenções ou outros subterfúgios, tentando evitar que 'a funesta mania de pensar' abra caminho na cabeça dos governados ou dirigidos, e estes se ponham colectivamente a pensar por conta própria, superando essa 'menoridade culpada' em que os mantém a subordinação aos legítimos superiores – e à ideia da 'superioridade legítima' e da necessidade de uma direcção hierárquica".

Sem dúvida, neste momento, a proposta democrática de alternativas é, para recorrer de novo aos termos do Zé Neves, tão urgente como "a partilha do pão". É para a definição lúcida das suas exigências mínimas — das exigências mínimas de qualquer movimento de democratização efectiva da partilha e produção do pão — que o novo editorial do Passa Palavra, prolongando e precisando o que, há dias, o precedeu, e alertando contra "os perigos da 'nação em cólera'", traz um contributo indispensável.


Qualquer tentativa de democratização do sistema político isolada das relações tecidas nos locais de trabalho e de residência é um logro. E assim como as recentes grandes manifestações, até as que nasceram exteriormente aos sindicatos e aos partidos, não geraram nenhumas organizações de base nas empresas nem nos bairros, também a reforma eleitoral avançada pelo Manifesto pressupõe a mesma atomização dos eleitores que está na base da democracia capitalista. A individualização dos participantes no sistema político corresponde à individualização dos agentes económicos nos mercados de consumo e de trabalho. O Manifesto mantém-se disciplinadamente no âmbito das instituições capitalistas. A democracia directa é outra coisa, requer que a base eleitoral seja composta por pessoas inseridas nos seus locais de trabalho ou de habitação. Sem isto nenhum sistema político pode iniciar uma ruptura com o capitalismo.

Um teste infalível para avaliar o grau em que uma proposta de remodelação política se insere no capitalismo é a obsessão com o problema da corrupção, e também os autores do Manifesto reclamam contra a «impunidade da corrupção». Mas veja-se com atenção. A corrupção consiste em não respeitar as regras estabelecidas pelo capitalismo nas relações entre capitalistas, não nas relações dos capitalistas com os trabalhadores. A corrupção não diz respeito à extorsão da mais-valia, ao processo de exploração dos trabalhadores, mas à repartição entre os capitalistas dos frutos dessa exploração. Compreendemos que o problema preocupe os capitalistas e os seus agentes políticos, mas é necessário que os trabalhadores sejam vítimas de profundas ilusões para se ocuparem com a questão.

A corrupção é uma violação das regras vigentes na economia capitalista, e reclamar contra a violação das regras é implicitamente apoiá-las. Nesta perspectiva, o Manifesto propõe «a utilização de um sistema de júri, de forma coadjuvante, nos processos de corrupção». Todavia, uma reforma da Justiça que não passe pela completa remodelação do Direito, dos cursos de Direito e dos sistemas de nomeação dos magistrados e se baseie em júris é uma piada de tanto mais mau gosto quanto — mantendo-se o sistema capitalista — os júris constituem, ou podem constituir, uma forma de linchagem popular regularizada.

Para entender este problema é indispensável não confundir a consciência de classe com o ressentimento. Uma coisa é dar um pontapé no tabuleiro porque se recusam as regras do jogo. Outra coisa, muito diferente, é protestar contra a batota daqueles que estão a vencer porque se pretende ganhar em vez deles. É aqui que entra o argumento da corrupção, acusando-a de batota. Aqueles que evocam a corrupção não pretendem liquidar o capitalismo e deixar os capitalistas sem ofício, mas apenas substituí-los por outros. Ora, quanto a isto a última palavra foi dita, e há muitos anos, por H. L. Menken, quando observou que pretender resolver o problema da corrupção colocando no governo políticos honestos era o mesmo que pretender resolver o problema da prostitução enchendo os bordéis de virgens. É que nas regras deste jogo estão implícitas as modalidades da sua violação e a curto prazo tudo recomeça, só que os ressentidos têm a barriga mais vazia e os dentes mais afiados, o que os torna ainda piores do que os outros.

A ler na íntegra, claro.

1 comentários:

Anónimo disse...

Mais outro texto exemplar e fundador do colectivo Passa Palavra. E que nos interpela de uma forma muito radical, obrigando-nos a tentar pensar e agir de outro modo(s).O que mais me fascina nele é o apelo múltiplo e decisivo à acção autonóma dos trabalhadores e assalariados, com uma focagem decisiva na acção estruturante e inovadora da figura central da estruturação dos Conselhos e Comités de Luta em todos os locais de trabalho e no espaço público. Justamente, também neste ponto nuclear e incontornável da acção política anti-burocrática que instaura sucessiva e peremptoriamente a autonomia, a saber a autogestão, a auto-organização, o auto-governo colectivos em todos os domínios da vida social, o exemplo e a importância fundamental da reflexão de Cornelius Castoriadis se nos afiguram decisivas e inultrapassáveis. Reportando-se ao exemplar, quase único na História recente do séc.XX, processo de criação dos Conselhos operários( e gerais) na Hungria de 56 em Revolução, C.Castoriadis sublinha: " Os Conselhos operários surgiram de todos os lados, e só demoraram poucas horas a irradiar por todo o país. O seu caractér exemplar não derivou de que fossem " operários ", não dependeram nem da sua " composição proletária ", nem do facto de nascerem em " empresas de produção ", nem muito menos dos aspectos exteriores da " forma " Conselho, em tanto que tal. A sua importância decisiva deriva de terem contribuido :a) para o estabelecimento da democracia directa, noutros termos, da igualdade política verdadeira( igualdade quanto ao poder); do seu enraizamento nas colectividades concretas( e que não é necessário que sejam somente " fábricas"; c)das suas reivindicações relativas à autogestão e à abolição das normas de trabalho. Nestes três pontos, revela-se um esforço para abolir a divisão estabelecida da sociedade e da separação essencial entre os domínios principais da actividade colectiva. Estão aqui em jogo, não só a divisão entre " classes ", mas também a divisão entre " dirigentes " e " dirigidos "( e também a entre " representantes " e " representados ", que é uma outra forma); a divisão entre um " governo " separado ou uma estreita esfera " política " e, de outro lado,o resto da vida social, sobretudo o " trabalho " ou a "produção "; a divisão, enfim, entre os interesses e as actividades imediatas, quotidianas, e, de outro lado,o " universal político ". C.Castoriadis. A fonte húngara, Outono de 1976. Salut! Niet