16/10/12

Sejamos claros

O texto A saída do euro e o fascismo, publicado no Passa Palavra e a que o Miguel Serras Pereira já aludiu, motivou uma resposta por parte do Alexandre Abreu, no Ladrões de Bicicletas, e um comentário do João Valente Aguiar (recomendo também a leitura dos textos aí referenciados) no 5dias.

Da leitura de todos os textos acima mencionados, surge como óbvio um ponto comum: todos rejeitam os compromissos existentes relativos ao pagamento da actual dívida pública, o que advém em parte da constatação de que é impossível pagar tal dívida com os juros que neste momento recaem sobre ela (e que correspondem a cerca de 5% do PIB nacional), juros estes que na prática estão a ser pagos através dum maior endividamento do Estado Português. Ora, se o Estado Português tentar repudiar esses compromissos, através duma re-estruturação da dívida liderada pelo devedor, que envolveria uma combinação de re-definição dos juros a pagar, moratória e anulação pura e simples, é muito provável que o Banco Central Europeu (BCE) reaja suspendendo o financiamento da economia portuguesa, ou seja deixando de emprestar euros aos bancos a operar em Portugal. Ao mesmo tempo, estes seriam também negativamente afectados devido ao facto de serem detentores duma parte muito substancial da actual dívida pública portuguesa. A consequência óbvia deste duplo impacto será a falência de todo o sistema bancário, que precisará de ser nacionalizado, simultaneamente com a introdução de controlos sobre a saída de Capital. Nessa altura, ou o Estado Português introduz uma nova moeda através da qual se compromete a pagar as dívidas dos bancos (agora re-denominadas nessa moeda, pelo menos as de âmbito nacional), ou re-estrutura essas dívidas (mais uma vez combinando re-definição dos juros a pagar, moratória e anulação pura e simples) mantendo o euro como única moeda de transação em Portugal (o que é equivalente a criar uma nova moeda em paridade cambial com o euro, com todas as consequências previsíveis). Esta sequência de acontecimentos só é evitável se quem rejeita os compromissos existentes relativos ao pagamento da actual dívida pública condiciona essa rejeição à sua aceitação pelo BCE, ou seja se estiver implicitamente a propor, na verdade, antes uma re-negociação dos termos da dívida pública liderada pelos credores. É isto que pretendem?... Ou estão antes à espera que o BCE assista impávido a uma re-estruturação hostil da dívida pública portuguesa, com receio das consequências do abandono da zona euro por Portugal? Relembre-se que boa parte dessa dívida é (indirectamente) aos países que controlam o BCE, a qual está continuamente a aumentar por cada tranche que Portugal recebe ao abrigo do acordo com a "troika" FMI/CE/BCE, tornando politicamente cada vez mais difícil re-estruturar essa mesma dívida (os Estados, principalmente da UE, têm muito mais poder de retaliação sobre Portugal que investidores privados internacionais). Tudo isto já foi por diversas vezes mencionado, por exemplo na recente Declaração do Congresso das Alternativas.
 
Sejamos, portanto claros, para que a discussão possa prosseguir sem mal-entendidos. Pretende-se repudiar ou re-negociar a dívida pública portuguesa? A primeira escolha implica, necessariamente, uma probabilidade muito elevada do Estado Português ter de criar uma nova moeda de transação em Portugal (o que não é certo que obrigue Portugal a sair da zona euro, ie. por exemplo a deixar de ter um representante no BCE). A segunda opção deixa Portugal dependente da boa-vontade (que pode resultar do medo de levar o Estado Português a optar pela primeira escolha) dos credores, em particular da "troika". Não deixa de ser um pouco estranho que quem defende o Autonomismo possa preferir a segunda opção, que nos mantém dependentes de entidades externas num horizonte temporal provavelmente muito longo.

Obviamente, o caminho do repúdio ou re-negociação (essencialmente) unilateral da dívida pública portuguesa contém perigos, um dos quais é gerar uma enorme incerteza que aumentará o apoio a soluções de carácter autoritário, provavelmente assentes no enaltecimento do patriotismo, e que poderão desembocar num regime de contornos fascistas. É por isso vital que as soluções alternativas ao rumo actual incluam, em lugar de destaque, propostas para uma democratização radical das relações de poder na sociedade portuguesa, não só ao nível económico mas também ao nível de decisão (nos lugares de trabalho, nos organismos públicos que prestam serviços, nas entidades de governo). Tal como é também essencial, que a narrativa conducente ao repúdio da dívida seja feita do ponto de vista da classe (ie. nomeadamente, caracterizando o exorbitante juro da dívida como expoliação do valor gerado pelo trabalho) e não apelando ao patriotismo (que mascara a exploração capitalista em Portugal).

Para finalizar, gostaria de realçar algo a que antes aludi e que não tem sido devidamente reafirmado: não está previsto em qualquer tratado, seja sobre a constituição da zona euro seja da União Europeia, a expulsão dum membro signatário (mas no Tratado de Lisboa está previsto o direito de secessão). Portanto, Portugal só abandonará a zona euro, e a União Europeia, se quiser. O que defendo é assim que o governo português repudie o Memorando de Entendimento com a "troika", suspenda o pagamento da dívida pública em retaliação por uma mais do que provável suspensão dos empréstimos da "troika", e crie uma nova moeda em resposta à consequente falência do sistema bancário (que seria nacionalizado), também devido ao mais do que provável desaparecimento do financiamento pelo BCE dos bancos a operar em Portugal. Não deve, no entanto, abandonar formalmente a zona euro (até poderia continuar a aceitar o euro como moeda de transação em Portugal, sendo a nova moeda de âmbito apenas nacional, ou seja inconvertível, algo como LETS) nem muito menos a União Europeia, lutando no seu interior por uma sua reforma radical. Assim, esta região da Europa a que chamamos Portugal, tornar-se-ia um foco de instigação da reacção popular europeia ao exacerbar da exploração do Trabalho pelo Capital, elevando o impacto da luta a um novo patamar.

54 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

a minha resposta é simples: a situação e as relações de força sociais e políticas na UE não são inalteráveis, e a minha aposta é mais na exportação do conflito do que no isolacionismo que, tudo leva a crer, agravaria a dependência social e política da maioria dos cidadãos comuns da região portuguesa, complementada pela evolução do regime no sentido de um "Estado mais forte", militarizado e autoritário.

Forte abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Mas repudiar a dívida (com as consequências que daí adviriam) não implica necessariamente o isolacionismo. É isso que tento dizer no texto. Muito dificilmente a UE pode expulsar o Estado Português quer da zona euro quer da UE, independentemente do que este faça, nomeadamente repudiar a dívida pública e emitir moeda própria. O que defendo é que não podemos, os cidadãos comuns da região portuguesa, continuar na dependência de organismos burocráticos hostis (mas que autonomia é essa?...), na esperança de que em uníssono os cidadãos da Europa se revoltem contra a actual situação. Não há nada que sugira a proximidade de tal levantamento a nível europeu. No entanto, se acontecer ao nível da região portuguesa, com a captura dos instrumentos do Estado Português (e aqui sei que divergimos, mas não me parece que haja outra via que permita manter um mínimo de estabilidade social e económica, na ausência da qual advirá por certo um golpe de estado militar), o tal levantamento a nível europeu torna-se mais provável, não só como resultado da instabilidade gerada no seio da zona euro e UE, mas também pela força e inspiração do exemplo. Os zapatistas não esperaram por um levantamento popular ao nível de todo o México para criarem a sua região efectivamente autónoma. Avançaram por si, sabendo que a instauração dessa autonomia seria um ponto de partida para a sua extensão ao resto do México, e um exemplo para o mundo.

Um abraço,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Caro Pedro Viana,

não tenho tempo de responder a tudo. Só duas notas.
1) «os Estados, principalmente da UE, têm muito mais poder de retaliação sobre Portugal que investidores privados internacionais». Se se entender os estados enquanto braço das empresas e dos bancos, de certa maneira sim. Mas enquanto entidades que realmente coordenam o processo económico - inclusive da dívida pública - os bancos e as empresas determinam muito mais a evolução das coisas. Por exemplo, em Setembro de 2011 (e se as coisas não tiverem mudado muito), dois terços da dívida pública portuguesa era controlada por bancos, sociedades financeiras, fundos de pensões e de investimento todos eles transnacionais. O restante 1/3 é que era propriedade de empresas e accionistas portugueses. Que os três maiores detentores singulares sejam de origem portuguesa (Millenium, BPI, BES) não altera em nada o poder das entidades financeiras internacionais. No caso de acções sobre o estado português, os restantes estados europeus são apenas executores dos interesses das empresas europeias.
2) não há outra solução que não seja a exportação do conflito social. Uma saída de Portugal do euro fechará o país ao mundo e, além disso, terá consequências económicas muito aproximadas às vividas na crise de 1929. Parece-me evidente que uma saída do euro teria consequências absolutamente devastadoras sobre os trabalhadores e se não vivessemos em fascismo, certamente que não estaria muito longe disso. Politicamente acho que as teses que enformam a defesa da saída do euro em nada reflectem sobre as consequências económicas de uma tal saída (não me refiro propriamente a este teu texto mas mais ao caso de outros comentadores que acham que com duas ou três linhas conseguem abordar estas questões). Simplesmente partem do pressuposto de que o que vivemos actualmente é péssimo, logo o que vier com uma saída do euro seria necessariamente bom. Ora, a questão política de fundo - e que abordei na quarta parte de um artigo meu publicado em junho no Passa Palavra - é a incapacidade de se pensar a diferença entre uma crise económica e uma crise de dominação. Claro que em teoria a primeira pode levar à segunda, mas, até hoje, isso não tem acontecido. Pelo contrário, as crises de dominação dos capitalistas e dos gestores ocorrem sempre em momentos fora de crises económicas. As ondas revolucionárias de 1917-21/23 e de 1968-75 ocorreram, respectivamente, em contextos posteriores de conflitos bélicos ou em contextos de aparente pujança de um paradigma de organização do capitalismo (no caso, o fordismo). A própria crise de 1973-74 é posterior à onda gigantesca de lutas da segunda metade dos anos 60 como é, subsequentemente, sintoma da crise do fordismo que decorreu das primeiras. Por outro lado, uma erosão da zona euro resultará numa fragmentação nacional não vista desde os anos 30 e com consequências absolutamente imprevisíveis nos racismos e nacionalismos latentes. ainda há dias ouvi um tipo que se considera de um sector da esquerda marxista dizer que "a culpa disto tudo é das classes dominantes alemãs e dos trabalhadores do norte da europa que vivem no bem bom à nossa custa"... Ora, o sentimento inverso também em ocorre em trabalhadores do norte da europa. A conflitualidade classista tem vindo a ser substituída pela conflitualidade entre as nações, tanto por parte de grandes franjas dos trabalhadores comuns como, muito pior ainda, por grande parte da esquerda. Para voltar à questão de uma fragmentação da zona euro, se esta se esfrangalha teremos ódios e conflitos nacionais temíveis e nem quero sequer imaginar. Aí terás um ódio entre trabalhadores, não uma reconstrução económica. Aí terás uma situação em que o nacionalismo se sobreporá ao internacionalismo. Por isso a lembrança que o Miguel fala acima da exportação do conflito - portanto, da luta contra a austeridade num plano europeu - é inestimável. A luta contra o capital não é um sprint é uma maratona.

Não abordei todos os detalhes que focas no texto, mas creio que estes dois já dão mais do que pano para mangas.

Abraço

Pedro Viana disse...

Caro João,

Não percebo bem a tua argumentação no que se refere ao primeiro ponto. Os Estados, nomeadamente da UE, têm maior capacidade de retaliação relativamente a actores privados, mesmo transnacionais, não só devido ao seu maior poderio económico (em geral), mas também porque podem obrigar todos os agentes, nomeadamente económicos, sob a sua dependência a actuar conforme pretenderem. Ou seja, possuem uma capacidade de coordenação de fortes acções retaliatórias que não está ao alcance dos agentes privados.

Quanto ao segundo ponto, o texto foi escrito exactamente com o intuito de chamar a atenção para uma certa falácia na argumentação. O João escreveu na 4a parte da sua colecção de textos intitulada "O nacionalismo, a esquerda anticapitalista e o euro" que

"(...)a classe trabalhadora e a esquerda anticapitalista devem lutar no sentido de conjugar os seguintes aspectos: a) A luta pela rejeição da dívida e pela revogação das medidas de austeridade(...)"

Ora, como tentei demonstrar com este texto, não é possível rejeitar a dívida e ao mesmo tempo não aceitar a possibilidade de Portugal ter de emitir moeda própria, o que não é, saliento, o mesmo que sair da zona euro, ou mesmo da União Europeia. O João quer ou não rejeitar a dívida já? Ou pretende esperar até que estejam reunidas as condições apropriadas a nível europeu? Se prefere a segunda opção, então efectivamente está a afirmar que devemos aceitar (não necessariamente acriticamente) tudo o que a troika quiser impôr ao governo português, e por arrastamento a todos os que estão sob a sua influência na região portuguesa. Mais, está efectivamente a afirmar que não devemos lutar pelo derrube deste governo, porque não nos podemos "dar ao luxo" de que (improvavelmente) o próximo governo decida rejeitar a dívida "antes do tempo certo", o que poderia levar à saída do Estado Português da zona euro, quiçá mesmo da União Europeia. Eu sei que não será fácil admitir tal, como não é fácil aos que defendem a rejeição da dívida admitir que os trabalhadores portugueses poderão encontrar-se numa situação objectivamente pior no dia seguinte a essa rejeição, mas, infelizmente, não é possível fugir ao encadeamento lógico destas questões. Estamos numa situação muito difícil, que exige clareza de posições, e é a isso que apelo.

Concordo genericamente com o que afirma relativamente ao segundo ponto, e é por isso que realço: (1) a necessidade de assentar a narrativa associada à posição de rejeição da dívida em questões de classe, em vez de utilizar o discurso patriótico, apenas porque este é mais "fácil" do ponto de vista de penetração social e cultural; (2) o potencial de desestabilização da zona euro/UE e exportação do conflito inter-classista que resultaria da tomada de posição dum estado-membro da zona euro e UE contra o Capital transnacional, possibilitando a elevação do conflito inter-classista europeu a um novo patamar. As crises de dominação que resultaram (pelo menos) na transferência maciça de recursos entre diferentes sectores sociais (não havendo, infelizmente, exemplos de re-distribuição democraticamente controlada em larga escala) ocorreram sempre na sequência de situações de instabilidade e grave conflitualidade social (no contexto europeu, como foi o caso do período revolucionário de 1917-1921, mas já não no período 1968-75). Acho que todos estamos conscientes que a classe dominante, ao nível português e europeu, tentará utilizar todos os recursos à sua disposição para manter o Poder (nomeadamente fraccionando a UE). Cabe a nós gerar as condições para que não tenham sucesso.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Viva, Pedro.
Infelizmente, não tenho de momento a possibilidade de discutir no pormenor a tua argumentação.
Mas há um ponto em que creio que te equivocas gravemente. Com efeito, a "classe dominante portuguesa" não é portuguesa, ou muito pouco, e menos ainda são nacionais as fracções da "classe dominante europeia". A dominação oligárquica, hoje, pouco tem de nacional. E é essa uma das razões que faz com que a exportação do conflito, e não o isolacionismo, seja, do ponto de vista dos dominados, a mais capaz de inverter a evolução da relação de forças a que temos vindo a assistir nas últimas décadas.

Abraço

miguel (sp)

João Valente Aguiar disse...

Caros,

só sobre o primeiro ponto que o Pedro escreveu no comentário:

1) «uma capacidade de coordenação de fortes acções retaliatórias que não está ao alcance dos agentes privados». O que só demonstra o quanto a UE é um espaço transnacional e não uma soma de espaços nacionais. O que quis dizer neste ponto é que os estados nacionais têm muito menos capacidade de acção do que se pensa. Aliás, em parte ainda bem que assim é senão sectores nacionalistas (de direita) da Holanda ou da Finlândia (e mesmo da Alemanha) já tinham mandado isto tudo ao ar. E os trabalhadores para a cova.

Sobre o restante. Vou ver se arranjo tempo e respondo mais tarde.

abraços

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Existe uma classe dominante a actuar no território português, bem que gostaríamos que assim não acontecesse. É composta na sua grande maioria por pessoas com cidadania portuguesa, nascidas neste território, e portanto é razoável designa-la por classe dominante portuguesa. Claro que tem equivalente em todos os outros territórios que constituem a Europa, e grande parte destas classes actuam também fora dos seus "territórios de acção preferencial". Existe mesmo uma minoria dentro deste conjunto que é verdadeiramente transnacional, saltitando de território em território conforme muda o enquadramento fiscal. Mas não existe uma verdadeira solidariedade transnacional de classe. Por exemplo, os membros das classes dominantes de países como a Alemanha e a Holanda estão neste momento efectivamente a sabotar a posição das classes dominantes dos países periféricos como Portugal e a Grécia, que prefeririam não ver a sua posição contestada nas ruas, os lucros a descerem e não terem de fazer face a possíveis processos de nacionalização. A única razão porque as classes dominantes da Alemanha e Holanda poderão intervir em socorro das classes dominantes de Portugal e Grécia é o medo do contágio, do exemplo inspirador de revoltas nos territórios onde o seu domínio é mais sólido. Mas tal processo não implica que haja uma única classe dominante de cariz europeu, que actue de forma coerente em todo o espaço europeu.

Por outro lado, não me parece que o que esteja em discussão seja o isolacionismo versus internacionalismo. O que tenho lido acentua a necessidade de recuperarmos autonomia política, social e económica, sem deixarmos de nos envolver no futuro da Europa. Como salientei, mesmo que o Estado Português decida emitir uma moeda própria, não pode ser expulso quer da zona euro quer da UE. Mantendo o direito de intervir em todas as reuniões dos organismos criados no âmbito dos tratados fundadores, e votar as propostas apresentadas. Para além, obviamente, de manter toda a liberdade para apoiar que organizações quiser por toda a UE.

Um abraço,

Pedro

um anarco-ciclista disse...

blÁ, BLÁ, Blá!

Não pagamos e acabou. os banqueiros que se lixem! fuck them! Venha de lá esse Armagedon! Eu não tenho medo, tou-me a cagar. Vocês querem mudar o mundo ou continuar a falar economês?

Inacreditável!!!

Miguel Serras Pereira disse...

Bom dia, Pedro.

Tu escreves: "A única razão porque as classes dominantes da Alemanha e Holanda poderão intervir em socorro das classes dominantes de Portugal e Grécia é o medo do contágio, do exemplo inspirador de revoltas nos territórios onde o seu domínio é mais sólido. Mas tal processo não implica que haja uma única classe dominante de cariz europeu, que actue de forma coerente em todo o espaço europeu".
Ora, não me parece que tenhas razão- A solidariedade intercapitalista nunca foi tão grande, apesar dos conflitos entre fracções da oligarquia, conflitos esses que, por outro lado, não decorrem exclusiva nem fundamentalmente do factor "nacional". A coordenação concertada política da austeridade, a "constitucionalização" transnacional da disciplina monetária, as instituições e acordos internacionais que regulam com mão de ferro a transferência das prerrogativas da regulação do âmbito dos governos eleitos e dos parlamentos para instâncias governantes "técnicas", retiradas do alcance da cena política clássica, etc., etc., mostram-no à saciedade.

Quanto aos outros pontos, não me podendo alargar, tudo o que posso fazer por agora é repetir uma ideia com a qual julgo que, no fundamental concordas, ainda que me pareça que dela não tiras todas as consequências. Retomo, pois, o excerto de um comentário ao post que o JVA publicou no 5dias e que tu já linkaste:

"travar a luta pela democratização (das relações de poder e do exercício do poder político, assuma-se este como tal, ou mascare-se de autonomia sistémica da economia) é mais prometedor através do que chamo a “exportação do condlito” do que do isolacionismo independentista: a independência em termos sociais conquista-se contra a oligarquia e as instituições da sua economia política governante, e não através da soberania nacional. É, por isso, que a grande maioria dos cidadãos da região portuguesa podem ser mais dependentes (em termos de relações de poder) com mais soberania, ao passo que é possível que a democratização, como a que sugiro que lhes asseguraria a independência e a maioridade sociais e políticas que contam, passe por um federalismo europeu, que se torne capaz de pesar globalmente num sentido contrário às actuais orientações da UE (e voltamos ao princípio: esta mudança de orientação passa por movimentos de democratização que minem o absolutismo cada vez mais afirmado do actual regime oligárquico)".

Abraço para ti

miguel (sp)

Anónimo disse...

O que seria importante para situar o poder- soft ou hard, segundo as tabelas propostas diferencialmente por Nye, Zakaria e Naomi Klein - da Europa dos 27 não pode apagar a relação ombilical entre o Velho Continente e os EUA com mais de seis décadas de uso e abuso, e que a queda da URSS não cessou de abalar e tentar... Sobre o panorama actual das relações de força estratégicas e económicas entre as três plataformas em que assenta a Nova Ordem Mundial post-Guerra do Iraque- USA, China, União Europeia e BRICS- nada melhor e apropriado do que seguir a análise detalhada por Negri e Hardt no seu recente livro, Commonwealth. E nele apontam,sem retenção ou apoteose: " O mundo de hoje é fundamentalmente diferente de uma multipolaridade clássica: existem muitos mais centros de poder, e um bom número desses pólos não são constituidos por Estados-nações . (...) Referenciar a ordem global contemporânea, que se constituiu de facto depois do fim da Guerra Fria, como uma distribuição de potências, ou mais precisamente como uma forma de uma rede de potências que necessita da larga colaboração dos Estados-Nações dominantes, das principais empresas,das instituições políticas e económicas supranacionais, de diversas ONG, dos conglomerados de Média e de toda uma série de outros poderes não favorece mais a controvérsia e tornou-se mesmo um lugar comum ". Não descurar, por outro lado, que existe uma escala de valor- adiantam Negri e Hardt- que se evidencia e clarifica bem sublinhando a grosso que os aspectos económicos, militares, politicos e morais operam segundo lógicas independentes mas reforçando-se mutuamente, aliam-se durante a sua ascensão para o poder e não escapam da queda em conjunto no momento do seu declínio , factos que se podem constatar, por exemplo, na vaga sucessiva de deslocalizações comerciais e industriais operadas pelos EUA na Europa apòs a guerra-não-vencida do Iraque, justamente. As franjas aristocráticas da " élite " portuguesa sempre estiveram na dependência da classe dirigente privada do mundo económico e financeiro francês; e tal subordinação desempenhou um papel essencial na " restauração " capitalista post 25 Nov. 1975,através dos créditos concedidos aos capitalistas lusos expropriados pelo Crédit Agricole e o Crédit Lyonnais, sobretudo. Niet

Rocha disse...

Sejamos claros com esta argumentação de chantagem em caso de saída do euro "O Dilúvio" estas pessoas que se dizem de esquerda estão mais perto de ser convidadas para escrever artigos no Jornal de Negócios e outros porta-vozes da Burguesia para fazer nada menos do que justificar a sua linha editorial num ponto principal: ficar no euro a qualquer custo.

Senão vejamos este título de hoje do jornal de negócios e descubra-se as diferenças:
"Saída de Portugal do euro teria impacto de 2,4 biliões de euros no crescimento global"

Anónimo disse...

Se estivéssemos em 1986 a debater a nossa entrada na UE, gostava de saber de que lado estavam os autonomistas deste blog e com que argumentos defenderiam que deveríamos entrar para uma UE dirigida por think-tanks ao serviço dos grandes capitalistas. Talvez praticar um pouco de entrismo e sabotar a coisa? O internacionalismo socialista não precisa da União Europeia para nada. Aliás, não precisa DESTA União Europeia para nada.

Pensem numa coisa muito simples. Cuba, um ano antes da revolução. Seria melhor não se avançar com a revolução porque o socialismo não podia ser construído num ilhéu sujos capitalistas tinham posto a salvo a sua fortuna nos cofres-fortes em Nova Iorque? Se Cuba fosse hoje ainda a semi-colónia que era, não passaria de uma Ibiza repleta de gente pobre, tal como o resto do Caribe. E no entanto, que perspectivas internacionais se abriram com aquela revolução isolacionista?

Anónimo disse...

O Pedro Viana escreve

"A única razão porque as classes dominantes da Alemanha e Holanda poderão intervir em socorro das classes dominantes de Portugal e Grécia é o medo do contágio, do exemplo inspirador de revoltas nos territórios onde o seu domínio é mais sólido. Mas tal processo não implica que haja uma única classe dominante de cariz europeu, que actue de forma coerente em todo o espaço europeu."

Existe mais coerência de acção por parte da burguesia do que por parte da classe trabalhadora. A burguesia está a servir-se do Estado para estragar o rombo que a crise lhe está a dar. E quando digo a burguesia digo a banca do norte da europa que emprestou demasiado ao sul e através da troika impõe austeridade, e digo a burguesia do sul porque também comprou demasiada dívida pública aos estados agora falidos no sul.

Já a classe trabalhadora só está a levar o rombo no sul. A classe trabalhadora do norte aplaude e para confirmar isto basta olhar para as intenções de voto nos países credores.

Anónimo disse...

Oh. Pedro Viana, desculpe lá, o que se passa com o meu comentário enviado há mais de 10 horas? Isto não pode ser e é inaceitável a todos os títulos, com franqueza! Deus Bakounine: que seja um problema técnico a causa, deuses mediáticos...Niet

João Valente Aguiar disse...

Todos os estudos existentes demonstram um colapso da economia europeia e, num contexto de agravamento de uma já fortíssima crise económica, não tenho nenhuma dúvida que os custos dessa destruição de valor recairiam sobre os trabalhadores.
O que eu acho interessante nestes meninos e meninas que se dedicam a viver no mundo da conspiração e que são incapazes de raciocinar fora do quadro nacional é que os custos imediatos de uma saída unilateral do euro seriam de tal ordem que a manutenção do status quo iria exigir o reforço do aparelho repressivo do Estado. Isso e/ou a ascensão de uma personalidade carismática que iria literalmente limpar a casa... Mas isso pouco parece preocupar os defensores de um socialismo da miséria pois desde que quem esteja lá cima seja um tipo com uma boina vermelha ou com bandeiras com foices e martelos o resto parece pouco importar... A sua solidariedade é apenas e tão-somente com uma organização vanguardista que "dirija" a classe trabalhadora, pouco lhes importando o destino de milhões de trabalhadores que seriam trucidados, inclusive às mãos de "libertadores" vermelhos...

Entretanto, num comentário de um anónimo das 15:55 escreve-se o seguinte:
«a classe trabalhadora só está a levar o rombo no sul. A classe trabalhadora do norte aplaude e para confirmar isto basta olhar para as intenções de voto nos países credores». De facto, este "internacionalismo" é de uma candura a toda a prova. Este é o resultado directo e é o desenvolvimento que se tem assistido nos meninos que andam armados a defender uma saída do euro e que se apresentam como muito revolucionários. Aí há meses quase ninguém diria isto por uma questão de decoro. Nas últimas semanas já vi, ouvi ou li umas boas duas dezenas de geniozinhos revolucionários a defender este antagonismo inqualificável entre trabalhadores do sul e do norte... É deste apego à pátria em conjugação com um ódio aos trabalhadores do norte da europa que está a germinar um fascismo larvar a partir de alguns sectores da esquerda. Não adianta dizer a estes meninos que os trabalhadores alemães tiveram salários relativamente baixos durante uma década, que perderam direitos laborais e que, no fim de contas, são ainda mais explorados do que os portugueses (é só comparar quem produz maior volume de excedente económico) e que a taxa de exploração mede-se pelo rácio de mais-valia produzida relativamente ao conjunto de massa salarial paga aos trabalhadores. Ou seja, quem escreve estas barbaridades está-se a marimbar para os trabalhadores e pensa apenas numa soluçãozinha nacional para colocar a malta a plantar batatas num campo de dez por dez, sem produtividade alguma, sem acesso a medicamentos e maquinaria, etc. Esta malta não quer saber para nada que os trabalhadores portugueses ao mesmo tempo que têm salários baixíssimos eles ainda assim cresceram acima da produtividade neste país o que se reflecte num desprezo dos mecanismos da mais-valia relativa o que, por sua vez, implica a aposta em modalidades de exploração muito mais violentas: aumento do horário de trabalho, redução dos dias de férias, redução directa e nominal dos salários, etc. Ora, é este caminho já por si violento que seria incomparavelmente ainda mais violento num quadro autárcico em que Portugal não conseguiria renovar e melhorar a sua produtividade, em que não conseguiria reverter os seus défices em produtos alimentares, agrícolas, maquinaria de praticamente todo o tipo, um quadro em que a actual austeridade seria aprofundada e multiplicada exponencialmente. Mas isto parece interessar pouco a estes excelsos comentadores que pouco se preocupam com a vida concreta dos trabalhadores.

Talvez valesse a pena alguém abordar o avanço demencial do irracionalismo e deste racismo em crescendo. Racismo que face ao completo desastre económico de uma queda da zona euro no actual contexto só iria escalar.

João Valente Aguiar disse...

Só uma nota que me esqueci de referir no comentário anterior. Os excelsos génios nacionalistas não gostam de reflectir na base de processos objectivos e parecem preferir o idealismo filosófico (curiosamente de raiz alemã). Por isso quando o estudo citado no Der Spiegel (que até costuma ser uma publicação favorável à saída do euro) fala em perdas de 22,3 triliões de dólares, é bom lembrar que a economia mundial em 2011 equivalia a cerca de 70 triliões de dólares. Ou seja, em oito anos a economia mundial perderia o actual equivalente a 31%. E estamos a falar da economia mundial, não de uma economia insignificante como a grega. Ou para ilustrar melhor a "coisa": 22,3 triliões de dólares é o equivalente ao conjunto da economia mundial em 1985... Pode-se discutir se uma queda da zona euro teria um impacto de 10, 20 ou 30 triliões de euros. Mas eu prefiro não experimentar e muito menos contribuir para a "brincadeira". Se alguém acha que uma perda desta magnitude não recairá sobre as costas dos trabalhadores, certamente que é incapaz de visualizar o desenvolvimento óbvio de 1929 no nazismo. Algo de muito idêntico sucederia nos dias de hoje, mais ainda em que a força da esquerda é infinitamente mais pequena do que na altura...

Pedro Viana disse...

Caro Niet,

Não me foi possível provar os comentários mais cedo, pois só ao final da noite tive possibilidade de aceder à internet. Ficam aqui as minhas desculpas.

Espero ainda hoje abordar o que foi dito em mais alguns comentários, assim que tenha disponibilidade.

Cumps,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Muito bem, João (VA).
Uma outra pergunta que as tuas sugerem é a que se refere à perspectiva de classe real dos que, invocando a todo o momento os trabalhadores, se estão martimbando para estes, contanto que sonham com a conquista de um poder de Estado absolutista para a sua organização. A sua perspectiva de classe não é decerto "universal", não é decerto a de uma "terra sem amos", ou a da igualdade em termos de participação governante e exercício do poder. O seu leninismo ou bolchevismo é a justificação antecipada de uma nova e mais estrita hierarquia, de um novo e mais absoluto "governo dos melhores", dos "mais capazes", dos "legítimos pastores" dos trabalhadores e cidadãos comuns em geral, que não concebem, de resto, senão como um rebanho.
Vai sendo tempo de separarmos as águas. Porque, como bem mostras, o caso é sério, e as coisas não estão para menos.

Abraço

msp

Rocha disse...

Para o anónimo de 17 de Out das 15.47:

E o caso hipotético existiu mesmo! Mesmo ao lado de Cuba existe um país - Porto Rico - que teve um movimento revolucionário que não conseguiu derrubar o regime capitalista-dependente e continua a ser até hoje uma colónia dos Estados Unidos. Porto Rico um país pobre, explorado e vítima do mais aberto racismo. Uma ilha feita num ghetto (ou um ilha como um tipo de bairro "ilha" das ruas do Porto).

É isto que os nossos amigos autonomistas e pseudo-internacionalistas querem para Portugal. Antes Porto Rico que Cuba.

E depois têm o desplante de falar em racismo em crescendo... CONTRA OS ALEMÃES!!!!!!!!!????????

Assim acusam toda a esquerda que apoia a saída do euro ou pelo menos discutir essa hipótese de racistas. Mas são estes amigos com a sua estupidez e cegueira que olham para países pequenos e pobres com o olhar racista - e colonial que é de onde vem todo o racismo - de quem está disposto a tudo, a fazer absolutamente tudo, para ganhar visibilidade e protagonismo nas capitais da metrópole imperialista como Berlim.

Para estes amigos as únicas revoltas que contam são ou em Berlim, ou Paris, ou Londres ou Washington. Os outros que se fodam. Os outros são sempre potenciais fascistas. Os outros que não ousem fazer revoluções isoladas. Se tal como alguns diziam Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, para estes amigos o mundo (esse único lugar que reconhecem como seu) são só meia dúzia de capitais, o resto é só uma paisagem pintada em sangue.

Anónimo disse...

JVA, explique-me então - e não precisa de ser tintim por tintim - o que é uma saída de esquerda para a embrulhada em que estamos metidos.

João Valente Aguiar disse...

Rocha,

A parte de apenas pensar em Berlim, Londres, etc. é tão ridícula e eu nunca escrevi tal que nem merece ser comentada.

Mas o comentário do Rocha tem dois pontos muito "interessantes" e que merecem ser abordados. Peço mesmo aos leitores que prestem uma enorme atenção a estes dois aspectos interligados.

1) Diz Rocha: «Os outros que não ousem fazer revoluções isoladas».

Eu não vou bater muito mais no mesmo porque todas as ondas revolucionárias até hoje foram internacionais. Como elas ocorreram em conjunturas não directamente relacionadas com crises económicas. Porque uma revolução isolada não é uma revolução. Até poderá ter um ímpeto inicial interessante, mas depois se o país fica isolado (ou quase) as pessoas vão comer o quê? Vão produzir com o quê? Vão receber a solidariedade de quem? Ainda por cima em economias altamente deficitárias como a portuguesa...
Mas para além destas questões concretas o mais interessante desta frase de Rocha (e que vem na senda de outras do género que ele tem apregoado noutros espaços) prende-se com a similitude com uma outra que passo a citar: «Nós somos o povo proletário do mundo. O nacionalismo é o nosso socialismo. Este nacionalismo encontra-se na verdade de que a nossa nação [*] é moral e materialmente proletária». O autor deste trecho? Direi num próximo comentário se ninguém adivinhar o seu nome. Mas digo desde já que nem importa muito o nome mas o grau de ambiguidade entre a nação e a classe como ponto a partir do qual surgiram todas as tragédias do século XX. Ressalto que não importa muito o nome da pessoa porque em política nunca me interessa discutir o nome do indivíduo mas as teses, o seu grau de ambiguidade política e os seus efeitos práticos.

2) o silêncio constante do Rocha sobre os aspectos económicos do euro diz mais do que a sua própria defesa da saída unilateral do euro. Esta só é defensável a partir de um ponto de vista estritamente ideológico pois no plano económico ela não tem qualquer viabilidade. Assim, o seu refúgio no plano ideativo e especulativo funciona como a única arma política ao alcance do nacionalismo. O que o torna politicamente ainda mais perigoso. Pior do que um nacionalismo com uma base económica - e que tentou substituir importações pela produção interna e num tempo em que a economia capitalista não tinha metade da sua actual internacionalização (exemplo: Brasil de Vargas ou Argentina de Peron) - só um nacionalismo pensado como pura ideologia.

[*] na verdade, o autor deste trecho até diz qual o nome da nação, mas isso só iria facilitar a sua identificação.

João Valente Aguiar disse...

Para o anónimo das 14:25,

não há receitas mágicas. O essencial neste momento é evitar que a esquerda embarque em contributos que apenas irão piorar a situação: uma europa de nações redundará em novos fascismos, independentemente do nome que adoptem. Por outro lado, se até hoje lutamos contra o capitalismo liberal no quadro do euro e se hoje há uma possibilidade de internacionalizar as lutas como não existe desde há umas três décadas, porque raio iriamos preferir uma situação muito mais danosa para os trabalhadores para lutar. Uma situação que seria danosa tanto do ponto de vista económico como do ponto de vista ideológico.

Anónimo disse...

Thanks a lot pelo seu gesto,aberto e franco, Pedro Viana!
Eu com a crise- e seguindo as modas radicais californianas do Occupy WS...-ando a ler o Proudhon. Tudo passa por aí, convenhamos,isto é,empenho na luta de ideias e controvérsia(s) salutares.Salut!(o cumprimento hemingwaiano por excelência para si!) Niet

Anónimo disse...

O Golden Dawn vai ganhar as eleições na Grécia. A solução de esquerda é lutar pela permanência dentro da UE, e esperar sentado que apareçam as "condições objectivas" para fazer revoluções mais bem preparadas que os desastres de 1917 e 1958. Não?

Anónimo disse...

"os trabalhadores portugueses poderão encontrar-se numa situação objectivamente pior no dia seguinte a essa rejeição."

Assim sendo, como é que com tal rejeição "esta região da Europa a que chamamos Portugal, tornar-se-ia um foco de instigação da reacção popular europeia ao exacerbar da exploração do Trabalho pelo Capital, elevando o impacto da luta a um novo patamar." ? Ficando objectivamente piores após esta rebelião local, parece-me evidente que estaríamos era a demonstrar aos outros povos ter sido pior a emenda que o soneto e a desincentivar-lhes as lutas...

Mário J. Heleno

Anónimo disse...

Sejamos claros: o programa mínimo de esquerda que tantas vezes se discutiu neste blog que inclui nacionalização da banca é uma coisa impraticável na UE nos nossos dias. Quando o SYRIZA esteve prestes a ganhar as eleições, lembram-se que sinais foram dados a partir da alemanha? Se não se lembram eu deixo-vos a memória mais fresca: "Em dois meses não haverá salários para pagarem a função pública". Dado isto, o que deve fazer a esquerda?

E estou-me cagando para que a taxa de exploração na Alemanha seja inferior à de Portugal. Lá é possível viver tendo um emprego de merda, em Portugal não é.

Rocha disse...

1 - Incapacidade de discutir aspectos económicos é assim que treslês os meus comentários.

Eu discuto aspectos económicos, não faço é a subscrição de mentiras especulativas e vulgares receitas de pseudo-ciência económica neoliberal que é o que nos tens andando a oferecer em citações. São receitas que entre outras falácias partem do pressuposto idiota que os mercados internos dos países deixaram de existir para sempre uma vez entrados na era da globalização.

Estúpido como negar que nada é absoluto ou irreversível. Nem sequer é real para quem perceba um pouco do que é a economia real, que não existe só nas estatísticas.

2 - O joginho das citações é totalmente inútil e serve de mero entretenimento. Quanto ao carácter internacional das revoluções, nenhuma delas se deu devido ao esforço de algum comité internacional, todas elas foram feitas por intermédio de organizações de âmbito nacional e em lutas de âmbito nacional. Porque é preciso partir de uma realidade concreta e é preciso conhecer essa realidade, agir dentro dessa realidade. Que é o que os internacionalistas de secretária não fazem.

3 - Quem tem assuntos tabu és tu João. Quem não se atreve a explicar como foi possível o "nefasto" nacionalismo de esquerda e a soberania nacional como meta ter sido tão crucial em tantas revoluções populares e operárias de carácter libertador és tu, senão vejamos:
- revoluções socialistas,
- revoluções anti-coloniais de libertação nacional,
- revoluções republicanas
- todo o todo o tipo de revoluções progressistas de movimentos operários e camponeses.
Explica como foi possível em Cuba, na Irlanda, no Vietname, na Venzuela de Chávez, no Chile de Allende, no Egipto de Nasser, na China, o tema da soberania nacional ter sido crucial na agenda dos revolucionários? Como foi possível que o tema da soberania nacional ter sido essencial para expulsar o FMI de países da América Latina, repudiar ou cancelar dívidas e renacionalizar empresas privatizadas?

Meio mundo deve estar errado, revolucionários, partidos de esquerda, sindicatos, movimentos populares, todos errados, só tu é que estás certo.

O livro do Lenine sobre o Imperialismo deves tê-lo deitado ao lixo. O próprio conceito de imperialismo e de autodeterminação parecem ter ser tornado ou invisíveis ou irrelevantes, a partir de certa altura parece que deixaram de existir diante um buraco negro intelectual que tu criaste e que apaga tudo, uma coisa a que chamas de internacionalismo.

Miguel Serras Pereira disse...

Anónimo das 00.54

justamente o Syriza assumiu a posição de reivindicar ao mesmo tempo a renegociação da dívida e a permanência na UE e na zona euro, reclamando o apoio da cidadania comum dos outros países da região para esses objectivos. E foi isso que constituiu a sua força e fez dele - e não do KKE, por exemplo - o inimigo principal de Merkel e dos governos ou partidos seus cúmplices.

msp

João Valente Aguiar disse...

O interessante no comentário do Rocha é que consegue repetir as mesmas teses e ampliá-las. Ou para tentar ser mais explícito, o Rocha consegue dar-nos mais motivos para percebermos o nacionalismo que defende.

1) A citação que coloquei é do italiano Corradini que foi o primeiro a defender as teses de uma "nação proletária" no início do século XX. É escusado dizer que ele foi um dos pais ideológicos do fascismo italiano. Mas não é este aspecto que me interessa aqui debater mas demonstrar como a citação dele é perfeitamente aceitável por várias pessoas que se colocam à esquerda. Ou seja, o nacionalismo que percorre grande parte da esquerda não é do tipo "trigo limpo, farinha amparo". Ele é perigoso porque ele canaliza linguagens, discursos e práticas oriundas de meios operários e os transfere para o âmbito da nação.
Por isso é que o Rocha não consegue raciocinar fora do quadro nacional e vê as revoluções do século XX como decorrências estreitas do quadro nacional, ou se se preferir, o "internacionalismo" veiculado pelo Rocha resulta da soma de várias lutas realizadas à escala nacional. O que é deveras bizarro é como no período 1916-23 países tão diferentes como a Rússia, a Finlândia, a Hungria, a Itália, a Alemanha, a França e até a própria Inglaterra (e isto só para falar na europa) sofreram um surto revolucionário relativamente simultâneo. Mas mais do que a sua maior ou menor simultaneidade o que aqui mais interessa à discussão é o critério que cada um aparenta escolher. Porque se as lutas atravessaram as fronteiras nacionais e revelaram potencialidades de internacionalização, o critério que está aqui em cima da mesa já não é o espaço nacional como detonador de revoluções mas, pelo contrário, haverá algo que supera esse aspecto: as revoluções operárias quando ocorrem operam sempre no plano internacional porque o que está em causa é, por um lado, a dinâmica de classe (que, nestes contextos, supera o espartilho das nações) e, por outro lado, a classe trabalhadora desenvolve novas relações sociais solidárias, horizontais e democráticas. O mesmo poderia dizer do período 1968-75 que atravessa países tão diversos como a França, a Itália, os EUA, a China, Portugal, Espanha, etc. Por isso é que reitero como é de facto possível pegar em conjunturas revolucionárias internacionais e conseguir vir o que nelas teve de menos relevante e precisamente um dos factores que foram superados por essas lutas: as nações, tanto ao nível ideológico (o nacionalismo), como ao nível territorial.

João Valente Aguiar disse...

2) Se se acrescentar a isto a menção do Rocha ao "comité internacional" vemos o outro pilar fundamental do nacionalismo: a existência de uma estrutura vertical, hierárquica e potencialmente constituinte de uma nova classe exploradora de gestores. As duas ondas revolucionárias que falei acima desenvolveram-se sem que algum comité as "marcasse". Aliás, até o próprio Lénine era bem menos centralista do que os herdeiros. Ao menos a tese do Lénine era a de que então se viveria num quadro de revolução internacional e que, para isso, os partidos comunistas e as alas esquerdas da social-democracia deveriam levar aquelas massas em ebulição à revolução socialista. Foi essa aliás a grande inovação política das "Teses de Abril" e que chocou a direcção do partido bolchevique. Que a concepção de socialismo do Lénine fosse estatista e que perante o dilema de fechar a revolução na Rússia ou de ir auxiliar os processos revolucionários finlandês, alemão e húngaro, ele escolheu claramente a primeira opção isso é outra história. O que me importa aqui, mais uma vez, é salientar esse lado centralista e que acabou por constituir a base para uma nova direcção política do Estado sobre os trabalhadores. Porque é isso que o nacionalismo "de esquerda" esconde: a possibilidade de as estruturas hierárquicas que o defendem tornarem-se numa classe social dominante que extrai o excedente económico a partir do Estado e das empresas estatais. O que significa que muda a jurisdição das mesmas, mas os mecanismos económicos são, em traços gerais, os mesmos. Por isso é que o Rocha desvaloriza as relações hierárquicas que estruturam a economia.

João Valente Aguiar disse...

3) outra demonstração do interesse do comentário do Rocha para se perceber a fundo as suas concepções nacionalistas encontra-se nas revoluções citadas. «Explica como foi possível em Cuba, na Irlanda, no Vietname, na Venzuela de Chávez, no Chile de Allende, no Egipto de Nasser, na China, o tema da soberania nacional ter sido crucial na agenda dos revolucionários?». Exceptuando aspectos específicos que já vinham das lutas de 1927 na Comuna de Xangai e que mais tarde iriam colocar comités operários de base contra o partido comunista chinês durante o período da chamada "Revolução Cultural", todos os exemplos fornecidos pelo Rocha muito pouco têm de socialista ou, para evitar cair-se no debate meramente terminológico sobre o que é ou não é socialismo, nenhuma dessas revoluções desenvolveu estruturas colectivas de base organizadas e dirigidas pelos trabalhadores. Ainda mais do que no clássico caso soviético, todas elas colocaram claramente a tónica do uso de massas operárias para a edificação de uma nova classe dominante que, a partir do Estado, exploraram a classe trabalhadora, ainda por cima recorrendo a um slogan nacional muito pronunciado. Claro que eu já sei qual a resposta: Cuba, etc. criaram sistemas de saúde e de educação pública, etc. É verdade, mas esse é o critério de avaliação de uma revolução? Outros regimes bem mais à direita e bem mais repressores fizeram o mesmo... Por outro lado, se esse critério é o mais relevante (e nem sequer vou discutir a qualidade desses serviços públicos) então países como a Suécia ou o Canadá demonstrariam uma superioridade do capitalismo sobre o socialismo... Ora, o socialismo ou que quer que se lhe chame é humanamente mais libertador do que o capitalismo por outra questão: porque permite aos trabalhadores controlar as suas vidas e a vida da sociedade a partir das suas próprias decisões colectivas, participadas, democráticas e solidárias. Por isso é que mesmo quando as nacionalizações operam alguma partilha de poder entre os seus trabalhadores e a administração do Estado (mesmo que dito socialista), a tendência sempre foi a de, com o passar do tempo, todo o poder passar para a mão dos gestores, por muito socialistas ou de esquerda que eles se achem e até que por relativamente baixos que sejam os seus salários. Por isso é que o Engels falava no socialismo enquanto o processo de substituição do poder sobre os homens pela administração humana das coisas. Pena que os discursivamente mais férreos defensores do marxismo sejam os mesmos que omitem os contributos mais libertadores dos dois barbudos...

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Não nego que as classes dominantes ao nível nacional possuem características comuns, de tal modo que se pode falar numa classe única de âmbito europeu. Deste ponto de vista, de certo modo todas as classes são trans-nacionais, pois encontram-se as mesmas classes em todas as sociedades (mas não necessariamente englobando a mesma proporção da população). Portanto, o que interessa perceber é mais o grau de interligação e acção coerente ao nível europeu por parte das classes dominantes nacionais (ou fracções nacionais da classe dominante europeia), e quais são as razões para tal. Ora, o que acho é que se há uns anos atrás, antes do eclodir da crise financeira, havia uma clara sintonia de meios e fins entre os membros das classes dominantes, do que resultava uma forte coerência na sua acção em todo o espaço europeu, desde então essa sintonia tem vindo a diminuir, como resultado da intrínseca falta de solidariedade que existe no seio duma classe dominante ou entre classes dominantes. Todos aqueles que chegam a uma posição de dominação sabem que não há equilíbrios estáveis entre aqueles que detêm o Poder: haverá sempre quem queira aumentar ainda mais o seu Poder. É por isso que as classes dominantes cujo Poder assenta no território centro-norte europeu (ainda não chegamos ao nível da completa des-materialização e des-territorialização empresarial), que pressentem a actual situação como uma oportunidade para aumentar o seu Poder no espaço europeu, por exemplo através das privatizações nos países com dificuldades financeiras, neste momento agem, em grande parte, contra o interesse das classes dominantes nestes países. É por isso que se começam a ouvir cada vez mais vozes entre as classes dominantes nos países periféricos, e nos seus apoiantes, em oposição aos ditames vindos das classes dominantes sediadas no centro-norte europeu.

No que se refere à “exportação do conflito" vs. "isolacionismo independentista", não defendo nem uma posição nem outra. O que defendo é uma mudança de políticas ao nível em que ainda temos algum controlo, no âmbito do Estado Português, que podem implicar a emissão de moeda própria, ao que se pode chamar uma re-afirmação de independência ou autonomia na medida em que pela acção nos opomos aos ditames de outros, mas sem deixar de actuar a nível europeu, na verdade incrementando a acção a nível europeu, pela exportação do conflito para dentro das instituições da UE.

Quanto à posição da Syriza, ela foi bastante clara: não queremos que a Grécia saia da zona euro, e muito menos da UE, estamos dispostos a re-negociar com a "troika" as condições do financiamento da economia grega, mas não nos deixaremos chantagear, não aceitaremos imposições que prejudiquem a classe trabalhadora mesmo que isso nos obrigue a "romper com a troika". Os outros partidos, nomeadamente os que neste momento apoiam o governo grego, é que simularam uma exigência de re-negociação, que após as eleições logo desapareceu em face da intransigência da troika. Quando se pretende realmente dizer não, é necessário estar consciente das possíveis consequências e preparado para elas. É que eu tenho tentado explicar.

Um abraço,

Pedro

Pedro Viana disse...

Caro João,

Na prática, o que o João está a defender é que nada deve ser feito que coloque em causa a existência da euro, e em particular a permanência de Portugal na zona euro. Porque quem mais iria sofrer em termos materiais seriam os trabalhadores, pelo menos no curto-médio prazo, e porque levaria à fragmentação da sua luta, restringindo-a ao nível nacional. O que colocaria os trabalhadores em clara desvantagem perante uma classe dominante transnacional, para além de permitir mais facilmente a imposição de soluções autoritárias, se não mesmo de cariz fascista. Daqui o João parece concluir que o melhor é tentar aguentar o melhor possível a presente ofensiva da(s) classe(s) dominante(s), e entretanto fortalecer a consciência transnacional da classe trabalhadora, bem como as suas organizações (horizontais) de base, até à altura em que, numa situação de maior estabilidade sócio-económica, seja possível retirar o poder (pelo menos decisório) à(s) classe(s) dominantes [mas ainda não percebi como tal é possível sem criar instabilidade e uma forte reacção da(s) classes(s) dominantes, voltando a uma situação semelhante à actual]. Mas, esta estratégia parece-me que tem vários problemas, de que destaco três: (1) não é claro para mim que o fortalecimento da consciência transnacional da classe trabalhadora, bem como das suas organizações (horizontais) de base, seja mais provável numa situação de estabilidade socio-económica, porque é nessa altura que os trabalhadores menos interesse têm na sua organização colectiva; (2) a inspiração, que resulta da verificação empírica de que é possível alcançar os objectivos desejados, é fundamental para mobilizar as pessoas para uma luta que lhes exige um grande esforço e possível perdas a nível pessoal (tempo, dinheiro, etc), donde não me parece plausível conseguir convencer uma fracção significativa dos trabalhadores a envolverem-se numa estratégia como a que o João parece defender, e que requer aceitar uma contínua degradação das suas condições de vida com vista a uma inversão futura à qual está associada uma grande dose de incerteza; (3) finalmente, a(s) classe(s) dominante(s) não está/estão interessada(s) em voltar aos equilíbrios sociais anteriores à crise financeira, nem muito menos àqueles que existiam até ao final da década de 60 - aliás a actual instabilidade social é fruto da ofensiva desta(s) classe(s) - do que resulta ser muito provável que as características da situação sócio-económica no final dessa ofensiva sejam tais que a classe trabalhadora fique numa situação de ainda maior impotência e mais desagregada (não é por acaso que quer nos EUA quer na Europa se coloque cada vez mais em causa o direito à greve e ao sindicalismo).

Ou seja, infelizmente, estamos perante dois cenários francamente maus: ou o certo declínio sistemático, se não em termos absolutos, de certeza que em termos relativos, do bem-estar da classe trabalhadora, bem como da sua capacidade reivindicativa; ou uma possível diminuição no bem-estar material da classe trabalhadora, no curto-médio prazo, mas que abre a porta a uma re-construção política e sócio-económica que pelo menos permita a re-distribuição em larga escala e tendencialmente igualitária de recursos. Digo possível, porque não é claro qual será a atitude da classe dominante perante uma forte resistência e mesmo ofensiva da classe trabalhadora face à pressão da primeira sobre a segunda. Cederá, tal como fez após a segunda-guerra mundial, com receio do alastramento do movimento comunista? Ou tentará impôr a sua agenda pela repressão policial e/ou militar, como aconteceu nas décadas de 20 e 30 com a ascensão do fascismo (que de qualquer modo não ocorreu nos EUA por exemplo)?

(continua)

Pedro Viana disse...

Resumiria a minha posição a: o caminho faz-se caminhando para a frente. Ou seja, não me parece de todo desejável diminuir a intensidade da resistência aos ditames da(s) classe(s) dominantes, mesmo que isso leve a rupturas institucionais ao nível europeu. Mas deve ser tornado claro para toda a classe trabalhadora que não é no seu interesse que essas rupturas ocorram, lutando tanto quanto possível pela reconfiguração institucional dessas organizações. Ao mesmo tempo deve ser fortalecida a solidariedade transnacional e horizontal da classe trabalhadora, (re-)criando organizações de base e recusando o recuo da sua luta apenas para dentro de fronteiras nacionais.

Finalmente, não em parece possível determinar empiricamente se o facto histórico das revoluções com sucesso tenderem a ocorrer em simultâneo em diferentes países resulta de ser condição necessária para tal a existência duma classe trabalhadora com consciência transnacional, que só actua quando as condições se tornam propícias a esse nível, ou se essas revoluções ocorrem como resultado do "efeito de dominó", ou seja devido à inspiração que as primeiras a ocorrer geram em outros territórios com condições sociais similares. Em termos abstractos, a primeira hipótese não me parece muito plausível, porque exige um nível de coordenação entre trabalhadores que nunca existiu no passado, a não ser possivelmente entre as "vanguardas" que se auto-intitulavam seus representantes. Para além de exigir um nível de planificação e capacidade de previsão dos agentes revolucionários que não é credível.

Um abraço,

Pedro

Rocha disse...

1 - Para lá de todo esse paleio das teses conselhistas está a tua incapacidade de compreender o verdadeiro significado das características específicas da revolução em cada país a que chamas de "nacionalismo". O capitalismo não é só um sistema de divisão entre classes, é também ao nível global um sistema imperialista que implica enormes divisões entre diversas regiões, países, continentes, etc.

As diferenças de estado de desenvolvimento entre diversos países (e mesmo regiões dentro dos países) sempre existiram e existirão enquanto o capitalismo dominar esses países e os continentes inteiros.

Além disso ao contrário do que acreditavam todos desde Marx e Lenine até aos teus queridos conselhistas, o capitalismo nunca eliminou decisivamente o feudalismo de todas as regiões do mundo. Nesse aspecto a chamada globalização não passa de uma enorme falácia (nesse e em muitos outros aspectos).

Ao contrário do que dizem os economistas da terra plana - que tb concordam contigo na questão do "euro ou o dilúvio" - o mundo totalmente standardizado segundo as teses neoliberais nunca existiu e nunca existirá.

Não só as diferenças de desenvolvimento entre países capitalistas são enormes, como também existe feudalismo em diversas zonas do mundo. Daí que o carácter internacional das revoluções esbarra com a realidade nua e crua de um mundo extremamente desigual, que só pode ser enfrentado de acordo com as características específicas de cada país.

Mas além disso seria fundamental juntar questões históricas humanas e culturais para as quais tu mostras total insensibilidade (regimes de ódio e supressão de culturas, línguas e povos) e que determinam a vontade dos povos por processos de autodeterminação. Essas questões são muitas vezes cruciais na origem do racismo, do qual falas muito mas entendes quase nada, nem sequer entendes a sua óbvia origem imperialista (outra palavra proibida).

2 - E quanto à onda revolucionária de 1916-23 foi pouco mais do que uma série de tentativas falhadas, que foram ecos da revolução de Outubro de 1917 com a excepção da Irlanda que obedeceu a uma dinâmica própria da Irlanda e por isso prosperou.

3 - É revelador o teu desprezo por diversas revoluções libertadoras que permitiram os povos sair de longos sofrimentos causados por fascismos, feudalismos e colonialismos. Mais importante do que as tuas críticas ao socialismo em Cuba é a tua indiferença perante a libertação dos povos de regimes absolutamente brutais e mediavais. Ou seja se não há um socialismo perfeito mais vale permanecer debaixo de um regime tipo a Arábia Saudita. É 8 ou 80.

João Valente Aguiar disse...

Pedro,

«não é claro para mim que o fortalecimento da consciência transnacional da classe trabalhadora, bem como das suas organizações (horizontais) de base, seja mais provável numa situação de estabilidade socio-económica».

A última grande vaga de protestos ocorridos no final da década de 60 surgiu precisamente no pico do Estado Social keynesiano de países como a França, os EUA ou a Itália... Ou seja, grandes lutas ocorreram precisamente num contexto sem grande turbulência económica como o actual... Relembrar que um dos slogans mais importantes do Maio de 68 era que os estudantes não queriam ser futuros gestores ou enquadradores da força de trabalho operária fordista. Portanto, num tempo em que as condições económicas eram relativamente favoráveis ao consumo, ao individualismo, etc. a partir das lutas nas universidades e sobretudo nos locais de trabalho (exemplo: experiências operaistas em Itália), a classe trabalhadora rejeitou o capitalismo. Nas crises económicas, e muito justificadamente, a classe trabalhadora tem medo de perder o emprego, de ficar ainda mais pobre, etc. e por isso mesmo luta comparativamente menos. A atomização operária é inquestionavelmente superior nesses contextos de crise económica.

«não me parece possível determinar empiricamente se o facto histórico das revoluções com sucesso tenderem a ocorrer em simultâneo em diferentes países resulta de ser condição necessária para tal a existência duma classe trabalhadora com consciência transnacional, que só actua quando as condições se tornam propícias a esse nível, ou se essas revoluções ocorrem como resultado do "efeito de dominó", ou seja devido à inspiração que as primeiras a ocorrer geram em outros territórios com condições sociais similares.»

Claro que elas nunca começam exactamente ao mesmo tempo, nem à mesma hora... A questão não é essa, nem nunca foi. Senão eu teria de me referir a um único ano em específico e não a períodos (1917-23, etc.)... A questão da internacionalização das lutas operárias prende-se com o facto de que todas elas durante um período de tempo - sempre escasso e limitado - colocam a estrutura social em causa e tendem a desenvolver dinâmicas partilhadas à escala internacional: colocam em causa o processo de trabalho capitalista, colocam em causa o Estado, colocam em causa as ideologias dominantes. Mas nao se trata ainda de apenas colocar em causa o sistema capitalista no seu conjunto, mas de a própria prática da luta desencadear os germes ou mesmo novas relações sociais de carácter horizontal, com delegados realmente amoviveis e substituiveis pelas bases, etc. Portanto, chame-se dominó ou até elo mais fraco da cadeia como fala o Lénine, tanto faz a figura visual que se queira utilizar. O que interessa perceber e apontar é o facto de que todas elas apresentam características comuns e estruturadas em torno do combate à exploração económica e que, por isso mesmo, se estabelecem num plano internacional. Que nuns casos o processo avance mais do que noutros, nada disso obsta ao estrutural da questão.

João Valente Aguiar disse...

«o caminho faz-se caminhando para a frente. Ou seja, não me parece de todo desejável diminuir a intensidade da resistência aos ditames da(s) classe(s) dominantes, mesmo que isso leve a rupturas institucionais ao nível europeu. Mas deve ser tornado claro para toda a classe trabalhadora que não é no seu interesse que essas rupturas ocorram, lutando tanto quanto possível pela reconfiguração institucional dessas organizações.»

Sobre o caminho fazer-se para a frente. O grandioso João Pinto disse algo parecido com isso "estavamos à beira do abismo e o mister tomou a decisão correcta: deu um passo em frente". Pode parecer extemporânea ou jocosa esta minha observação mas ela diz muito sobre o que a generalidade da esquerda dita anticapitalista faz perante os abismos: dá um passo em frente. O que qualquer pessoa sensata tenta faz é tentar encontrar pontos ao longo da encosta até que se encontre uma passagem para o outro lado. Isso implica contemporizar, aguardar, aferir hipóteses, ir tacteando o terreno. Ora, se há algo que a esquerda nunca teve nos momentos de encruzilhadas históricas anteriores a tragédias foi consciência racional perante o abismo. Tudo isto para chegar ao seguinte. O euro é inquestionavelmente um instrumento ligado à dominação da burguesia e dos gestores sobre a classe trabalhadora. Isso parece-me pacífico. Uma ruptura com o mesmo não significa necessariamente um ganho para a classe trabalhadora porque ela tem sido pensada em dois planos que sempre saíram (e temo que continuarão a sair) furados aos trabalhadores. Por um lado, essa ruptura tem sido pensada num plano nacional, portanto, enfatizando a soberania como instrumento político para a classe trabalhadora e colocando de lado a luta contra a exploração e suas correspondentes relações hierárquicas. Por outro lado, essa ruptura além de nacional(ista) atrela a classe trabalhadora à regeneração da nação, misturando num caldo social trabalhadores, camadas proletarizadas provenientes da burguesia, pequenos e médios capitalistas e dirigentes de partidos ou estruturas hierárquicas. Caldo social típico da comunidade nacional que os fascistas sempre foram construindo. E onde sempre foram muito bem-sucedidos.

O que mais me espanta nisto tudo é que, perante a complexidade da situação em que vivemos, se prefira a fuga para a frente como se de uma qualquer ruptura necessariamente resultassem avanços progressistas ou outros que o valham. Ao mesmo tempo, deveria ser pacífico que o recuo das lutas operárias para espaços nacionais semi-autárcicos facilmente se transforma numa luta entre nações (portugueses vs alemães, etc.), aspecto absolutamente contrário ao desenvolvimento de uma consciência de classe.

Abraço

Pedro Viana disse...

Caro João,

Quando falo em caminhar avançando, não estou a defender qualquer salto no escuro, estou a dizer que entre aceitar o recuo exigido pela classe dominante, para evitar rupturas institucionais e sócio-económicas, e exercer pressão no sentido contrário, a primeira escolha levará inevitavelmente a uma desagregação de tal ordem das classes exploradas (já de si muito mais divididas do que nos anos 50 e 60), que deixará de haver condições para qualquer avanço posterior na re-distribuição de recursos, seja ele liderado pelos próprios trabalhadores ou por uma auto-denominada vanguarda. A situação intermédia, de pseudo-estabilidade, não é possivel, antes de mais porque a classe dominante não está interessado nela, obcecada como está em re-obter quanto antes os níveis de rendimento anteriores à crise financeira. Isso não invalida que o caminho para a frente não seja feito com todo o cuidado, idealmente com plena consciência dos perigos que decorrem de avançar. Aceitando esta premissa, torna-se claro que o que é neste momento mais importante é a reflexão sobre os caminhos alternativos (e existem, como tentei desenvolver no post) que poderemos ter de tomar caso a classe dominante não recue nas suas exigências de (maior) submissão da classe trabalhadora. Não é admissível deixá-los ter a palavra final sobre o que é possível, hoje ou amanhã.

Abraço,

Pedro

João Valente Aguiar disse...

Sobre o livro do "Imperialismo..." do Lénine supracitado pelo Rocha lembrei-me entretanto de uma curiosa passagem desse livro:

«Se por ponto de vista puramente econômico se entende a "pura" abstração, tudo o que se pode dizer reduz-se à tese seguinte: o desenvolvimento vai na direção do monopólio; portanto vai na direção do monopólio mundial único, de um trust mundial único. Isto é indiscutível, mas ao mesmo tempo é uma perfeita vacuidade, como seria o dizer-se que o "desenvolvimento vai" no sentido da produção dos artigos alimentares em laboratórios. Neste sentido, a "teoria" do ultraimperialismo é tão absurda como seria a "teoria da ultra-agricultura,".» http://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap7.htm

Por acaso eu até acho o livro inovador para a época do ponto de vista económico (apesar de claramente ultrapassado pelo tempo no que toca à exportação de capital ou à análise do capital financeiro – mas mesmo aqui ele não caiu completamente na asneira que os seus auto-condecorados herdeiros propugnam como a separação completa e na fantasiosa oposição entre capital industrial e capital bancário, mas essa é outra história) mas este trecho é um exemplo de como Lénine não era um deus ou coisa que o valha. Certamente que quando estava a escrever esta passagem estaria a rir-se dessa possibilidade de se produzir bens alimentares em laboratório. Portanto, não é porque é o Lénine ou o A ou o B que dizem o que quer que seja que um argumento está certo mas ele tem de ser lido à luz da sua coerência interna e à luz do contexto a que ele se aplica.

João Valente Aguiar disse...

Sobre o último comentário do Rocha.
1) Mas alguém acredita que nesta altura em que o capitalismo nunca foi tão hegemónico, ainda exista feudalismo?? Quando até modalidades não-capitalistas estão perfeitamente integradas nos mercados internacionais capitalistas e que são um vaso comunicante com os mecanismos da mais-valia absoluta, como é ainda possível alguém falar em feudalismo em 2012??
2) O Rocha fala ainda que o capitalismo é também estruturado numa divisão em países. Claro que eu não nego a existência dos países. E claro que também existem enormes discrepâncias entre eles. Agora eu pergunto: o que determina essas diferenças? O facto em si mesmos de serem países, estados e nações ou o facto de as dinâmicas dentro e entre os países serem determinadas pelas relações capitalistas de produção e de apropriação da riqueza? Para um marxista a resposta devia ser óbvia…
3) Sobre os economistas da “terra plana”. Pior do que ter liberais a eventualmente “concordar” com a não saída do euro (mas por motivos completamente divergentes e antagónicos), é compartilhar o mesmo terreno movediço que no passado levou aos fascismos e às piores experiências totalitárias. Por outro lado, era bom que a esquerda começasse a interpretar os escritos e discursos das classes dominantes, desde a sua imprensa própria até a manuais e relatórios de algumas das suas instituições (muito deste material está online). Só a partir dessa avaliação se percebe quais os princípios e as orientações efectivas com que a burguesia e os gestores definem as suas práticas. E mesmo com todo esse acervo existem inúmeras zonas brancas que nem a comunicação social dominante, nem as publicações da especialidade dedicam espaço. Enquanto a esquerda anda preocupada com os governos e com o parlamento, as classes dominantes determinam boa parte das suas orientações na sombra e no conforto das suas instituições transnacionais. Achar que tudo o que a burguesia pensa e escreve é pura ideologia é esquecer os processos que permitem a essa classe reproduzir-se e ampliar a sua dominação. Ou aceitamos que o que eles veiculam é pura ideologia e então a dominação só seria explicada do género do filme “Matrix” como uma imensa conspiração, ou então enveredamos por uma compreensão de que boa parte do sucesso dos capitalistas deriva da sua capacidade de auto-organização e de auto-consciência dos seus interesses. Exceptuando os momentos revolucionários, a burguesia (contando aqui os proprietários de capital e os gestores) é sempre uma classe “para si”, uma classe social sempre organizada e sempre reflexiva sobre os desafios e sobre as contradições que a dinâmica de evolução do capitalismo lhes impõe.
4) Sobre a onda revolucionária de 1916-23. Por acaso ela começou nas barricadas francesas onde os soldados começaram a matar os seus oficiais e a içar bandeiras vermelhas. Mais ou menos ao mesmo tempo os russos fizeram o mesmo. Mas achar que situações como a revolução húngara, a finlandesa, a alemã ou as revoltas em Turim que mobilizaram milhões de operários são meros ecos da revolução russa é desconhecer completamente a convulsão social e política daquele período em metade da europa.

João Valente Aguiar disse...

Sobre o comentário do Pedro,

«Aceitando esta premissa, torna-se claro que o que é neste momento mais importante é a reflexão sobre os caminhos alternativos (e existem, como tentei desenvolver no post) que poderemos ter de tomar caso a classe dominante não recue nas suas exigências de (maior) submissão da classe trabalhadora. Não é admissível deixá-los ter a palavra final sobre o que é possível, hoje ou amanhã».
Concordo neste ponto contigo Pedro. Apenas acrescento que não é indiferente fazer a luta num contexto de democracia liberal (mesmo que com aspectos crescentemente autoritários) do que num contexto fascista como se desenhará facilmente no caso de uma implosão da zona euro. Não apenas por causa da já aqui mencionada influência nefasta do nacionalismo, mas porque um agravamento da situação económica resulta num crescimento da atomização dos trabalhadores.

Um abraço

Anónimo disse...

É tempo de olhar para o fundo onde bateu o movimento anti-capitalista. Após décadas de "conquistas" de sindicalismo que realmente elevou os padrões de vida da população, reconheçamos que ninguém se vai bater para o derrubar.

Mas caro JVA, diga-me medidas concretas que podem ser tomadas, como passinhos em direcção ao socialismo! Nacionalizar a banca não deve ser solução... nacionalizar empresas também não... Talvez europeizá-las? Ah, bolas, mas os capitalistas esconderam as fortunas na Suiça. Deixem lá isso, pessoal, vamos mas é dormir e esperar que apareçam as condições objectivas. Condições objectivas essas que foram a coisa em que o Marx se enganou mais redondamente: a educação traria consciência da superioridade do socialismo, nas sociedades capitalistas mais avançadas.

Anónimo disse...

Há um pormenor decisivo no combate contra a dominação de classe do capitalismo que não pode nem deve ser escamoteado: a dominação é fruto da exploração criada pelo sistema produtivo capitalista e a relação burocrática inerente, duplamente. Como sublinho Castoriadis, " a relação de exploração na sociedade contemporânea assume cada vez mais a forma da relação burocrática; e o respeito pelo valor da hierarquia, sustentado pelas organizações " operárias ", acaba por se tornar o mais sério apoio ideológico do sistema. O movimento autónomo dos trabalhadores em luta deve organizar um combate sistemático contra a ideologia da hierarquia sobre todas as suas formas, e contra a hierarquia dos salários e dos empregos nas empresas ". Não sem evitar de ter consciência e prudência, como o autor da " Instituição Imaginária da Sociedade " aponta: " Mesmo quando as lutas na produção atingem uma grande intensidade e um nivel elevado, a mutação para a resolução do problema global da sociedade permanece para os trabalhadores o mais dificil a operar. É nesse dominio que as forças de subversão disfrutam de uma tarefa capital a exercer, que não deve ser confundida com uma espécie de agitação estéril em torno dos incidentes da " vida política " capitalista. Isso implica portanto revelar que o sistema funciona sempre contra os trabalhadores; que eles não poderão resolver os seus problemas sem abolir o capitalismo e a burocracia e reconstruir totalmente a sociedade; que existe uma profunda analogia entre o seu destino de produtores e o da sua vida na sociedade, no justo sentido em que nem um nem o outro podem ser alterados a não ser que se suprima a divisão entre dirigentes e dirigidos ". Salut! Niet

João Valente Aguiar disse...

«É tempo de olhar para o fundo onde bateu o movimento anti-capitalista».

Quando pessoas que acham que é por propostas concretas de governação que alguma coisa se vai avançar, então o movimento anti-capitalista bateu mesmo no fundo... O que não quer que se apresentem algumas medidas concretas, mas achar que é por elas que alguma coisa se conseguirá bem que estamos lixados. Por outro lado, os que acham que isto só lá vai com "medidas concretas" são os mesmos que acham que quando se acham portadores de alternativas acham que bastaria nacionalizar a banca nacional, sair do euro e plantar batatas para "salvar" a nação. Num tempo em que os capitalistas portugueses conseguem colocar capitais em minutos no estrangeiro, achar que se detém a fuga de capitais, ou num país que tem um défice comercial anual de 4 mil milhões de euros só ao nível dos produtos agrícolas e alimentares e de 10 mil milhões ao nível de maquinaria e utensílios mecânicos, etc. vemos que esses mesmos que vivem sofregos por medidas concretas, acham que bastaria meia dúzia de princípios aparentemente muito revolucionários para solucionarem os problemas do país quando, de facto, acabariam por prolongar e aprofundar as políticas de austeridade.

Rocha disse...

Não existe feudalismo na Palestina ocupada?

Não existe feudalismo no narco-Estado e para-Estado da Colômbia dos capos paramilitares?

Não existe feudalismo no Brasil do latifúndio e do agronegócio?

Não existe feudalismo na Índia das castas?

Não existe feudalismo no Butão?

Não existe feudalismo no Paquistão das regiões tribais?

Não existe feudalismo no Afeganistão?

Não existe feudalismo na Somália?

Não existe feudalismo na expansão do salafismo e islamismo com o apoio da NATO pelo Médio Oriente (como na Líbia e na Síria dos "rebeldes" armados)?

Não existe feudalismo nas monarquias do golfo pérsico que apoiam essa expansão da rebelião armada salafista?

Não existe feudalismo no grande continente africano?

As sociedades tribais do Sahara, os Tuaregs sabes como funcionam?

Não existe feudalismo na região oriental da Bolívia?

Não existe feudalismo nas Caraíbas? Não existe feudalismo no Haiti?

Não existe feudalismo na Indonésia?

Nas plantações de óleo de palma da Malásia não existe feudalismo?

Não existe feudalismo em Myanmar?

Na própria Europa, ah a Europa!
A grande e rica Europa! Esse pináculo do capitalismo, esse clube dos ricos e modernos cidadãos europeus!

Na própria Europa não existe feudalismo em fazendas e herdades de Portugal, Espanha, Holanda?
Só para citar alguns exemplos de países onde cidadãos europeus e de outros países foram já encontrados amarrados a cordas e presos com correntes, obrigados a trabalhar pela força.

Para esses milhões ao redor do mundo que ainda desconhecem o que é um salário, o que é um contrato, o que é um Estado do qual fossem cidadãos com direitos - em suma que desconhecem algumas das mais básicas liberdades - vamos dizer que o feudalismo não existe, como tal eles também não existem, é tudo uma grande inventona...

A barbárie não existe. Tudo o que existe são "modalidades não-capitalistas" "perfeitamente integradas" "nos mercados internacionais capitalistas".

Vejo que estás a dominar cada vez a arte da semântica linguística, especialmente na parte dos eufemismos.

Uma enciclopédia habitualmente humorística - urban dictionary - responde à pergunta o que é o feudalismo de uma forma que pode estar muito próxima de uma resposta séria, entre as primeiras definições está: Albânia e Máfia.

Tanto países remotos e esquecidos pelo mundo como a Albânia como essa rede subterrânea e de Estado paralelo dentro do capitalismo que é a Máfia têm em comum a manutenção até aos nossos dias de formas feudais e esclavagistas de exploração.

João Valente Aguiar disse...

Rocha,

todos os casos que citas, eventualmente exceptuando as tribos tuaregues, estão todos integrados nos mercados internacionais. Os narco-traficantes vendem droga para os EUA e para a europa, o agronegócio e o latifúndio no Brasil são claramente parte de um mercado de produtos agrícolas à escala global, and son on...
O problema é tu confundires algumas modalidades não-capitalistas de produção com o feudalismo... Ainda por cima quando esses modos de produção não-capitalistas estão claramente integrados nos mercados internacionais capitalistas.

Mesmo todos os fenómenos de escravatura contemporânea estão inseridos em cadeias de produção internacionais. Por exemplo, há uns dois anos vi um documentário onde uma empresa americana de pneus (creio que a Goodyear) comprava borracha para as suas fábricas no Senegal a plantações com trabalho escravo. Este é tambem um dos dinamismos do capitalismo: compatibiliza facilmente formas qualificadas de trabalho (por exemplo, os engenheiros assalariados que estudam e aplicam a Física ao melhoramento dos pneus) com formas absolutamente aviltantes de trabalho (com milhares de trabalhadores a viver nas condições mais miseráveis e como propriedade de um senhor da terra).
Por outro lado, muito do que tu afirmas ser trabalho "feudal" não é mais do que trabalho assalariado em condições absolutamente miseráveis e desumanas (trabalho infantil que faz bolas de futebol em empresas subcontratadas da Nike, etc.)... Portanto, modalidades de trabalho inseridas nos mecanismos da mais-valia absoluta e que, na sua substância, não se distinguem do trabalho assalariado fabril do século XIX. O que não quer dizer que sejam produto de um fantasioso feudalismo mas trabalhadores assalariados como sempre acontece no capitalismo. Confundir o facto de alguém viver em barracas ou na miséria mas que não têm outra propriedade que não seja a sua força de trabalho e chamar a isso feudalismo é pura propaganda. Aliás, a tendência do capitalismo é claramente para assalariar cada vez mais explorados provenientes de modalidades de trabalho não-capitalistas.

Mas que é que eu hei-de responder se os próprios que se reivindicam herdeiros do marxismo não querem saber dos seus conceitos para nada??

João Valente Aguiar disse...

Outra coisa. Em que é que a máfia é feudal?? Desde quando é que por uma empresa do crime operar na penumbra significa que ela não se reja por princípios de rentabilidade capitalista e de compra e venda de mercadorias para acumular capital?? Lá por vender droga ou armas isso em nada as distingue de outras empresas... Aliás, boa parte do sucesso das máfias deve-se precisamente à sua articulação com empresas ditas normais... Que as máfias, sobretudo as mais antigas, preservam alguns rituais que o Hobsbawm já referia no seu livro "Primitive rebels" isso é inegável. Mas desde quando é que os rituais se sobrepõem à função económica das máfias desde o século XIX-XX? E mesmo nas máfias hoje existentes, a maioria de rituais tem muito pouco... E em nada obstam ao seu papel de empresas do crime...

Miguel Madeira disse...

No caso especifico das mafias italianas e italo-americanas (e, já agora, da Yakuza japonesa), se são realmente como aparecem na ficção, até me parecem muito, se não feudais, pelos menos "imitativas" dos rituais feudais

João Valente Aguiar disse...

Não neguei a existência de rituais mas o que importa é a sua ligação a empresas do crime. Não por acaso em "O Padrinho" o drama de Don Corleone é o de expandir o negócio para o tráfico de drogas e para a prostituição, continuando a achar que se deveria ficar pelo "gambling"... Não por acaso quem perde a contenda são os puristas.
Depois não são só as máfias que têm rituais ou reutilizam reminiscências "feudais" ou pré-capitalistas. A grande burguesia francesa também se foi fundiu, no passado, com membros da antiga aristocracia e ainda hoje tem castelos na província. Fico à espera que me venha dizer que são senhores feudais...

Agora vou acabar de fazer um caldo verde, essa instituição medieval portuguesa. Vêem, se eu comer alguma coisa de origem não-capitalista é porque afinal vivemos no feudalismo... Pena não ter aqui alguma coisa de doçaria conventual para a sobremesa. Aí sim, eu ficaria definitivamente convencido que ainda viveria no feudalismo.

Eu gostava de ter o vosso poder de alcance...

Rocha disse...

"Mesmo todos os fenómenos de escravatura contemporânea estão inseridos em cadeias de produção internacionais. Por exemplo, há uns dois anos vi um documentário onde uma empresa americana de pneus (creio que a Goodyear) comprava borracha para as suas fábricas no Senegal a plantações com trabalho escravo."

Ou seja, segundo dizes o modo de produção e as relações de produção trabalhadores da borracha no Senegal são irrelevantes visto que depois a produção é vendida nas "cadeias de produção internacionais" a escravatura dos trabalhadores do Senegal já não interessa para nada.

Sim, sim realmente só te interessa doce conventual embalado e vendido na grande superfície mas a origem de uma produto que é produzido numa relação de produção de escravatura já não é importante para classificar a sociedade que o produziu. Isto quer dizer que o que não importa é o Senegal - e essa nefasta "soberania nacional" do Senegal assim como os diversos desafios que enfrenta esse povo - e não importa porque o produto é depois vendido pelos capitalistas alemães ou quaisquer outros. Interessa o fim e não interessa a origem, interessa o topo da cadeia de produção e não interessa a base.

E não adianta jogar com as palavras, quando falei em Máfia falei muito concretamente de escravatura e servidão que NÃO são rituais mas sim relações de produção isso sim do feudalismo. Não sabes do que eu estou a falar? Nunca ouviste falar de tráfico de seres humanos, prostituição sob escravatura, etc?

Podes colocar os critérios que quiseres só para evitar classificar países, regiões, organizações, empresas, Estados e sociedades como feudais. O que não podes escamotear é que a escravatura é escravatura, trabalho assalariado é trabalho assalariado. Relações sociais, relações de produção diferentes, uma própria do feudalismo e outra própria do capitalismo.

João Valente Aguiar disse...

Rocha,

Não adianta tentar debater contigo porque cais sempre naquela de atribuir-me coisas que eu não disse. Por isso termino uma discussão com quem não quer debater e só se limita a discorrer sobre coisas que não sabe e, pior, que não se procura informar correctamente antes de escrever. Esse é um dos defeitos mais perniciosos do tipo de formação ideológica e do tipo de (não-)debate político no PCP. Pega-se em meia dúzia de verdades feitas e tudo o que não couber dentro daquele esquema básico ou seria mentira, ou seria maquinação. Que se desconheçam os processos objectivos e que se marimbem para factos, o que importa é propagar a fé e manter a epístola delirante a funcionar.

1) não há feudalismo hoje em dia. Existem outras modalidades não-capitalitas mas elas são claramente minoritárias no quadro mundial. Nem sei qual é a dúvida. Seria curioso um modo de produção que à medida que se tornou hegemónico ter-se-ia encolhido com o tempo. Ainda por cima quando o capitalismo é claramente um modo de produção expansivo.

2) o que ainda vai persistindo já não existe por si mesmo mas como parcela do capitalismo internacional. Se a borracha, ou outra matéria-prima qualquer, é colocada nos mercados internacionais gostava que dissesses quem a quereria se não fossem essas mesmas empresas capitalistas... Ou seja, é o capitalismo que aproveita fenómenos minoritários de escravatura, não o inverso, pois estes não subsistem como modo de produção independente como no passado mas enquanto parte integrante de um sistema mundial capitalista. As modalidades não-capitalistas de trabalho apesar de muito menos produtivas e de produzirem muito menos mais-valia do que as modalidades mais desenvolvidas de capitalismo são, nalguns casos, importantes para o próprio sistema capitalista. Assim é, pois permitem que dentro de um mesmo ramo, e num contexto em que se está a introduzir capital constante a uma taxa superior à taxa de exploração, a transformação dos valores em preços de produção e de mercado, permitem que esse valor proveniente de modalidades não-capitalistas compense temporariamente uma certa desaceleração da produtividade nos locais mais avançados. Mas mesmo isto é circunstancial e cada vez menos frequente. Já para não falar que o diferencial de produtividade entre os sectores mais avançados e mais recuados é tal que estes últimos nunca produzem valor suficiente que compense desacelerações nos primeiros. Por isso mesmo é que o capitalismo avança por via da mais-valia relativa e é isso que lhe dá dinamismo tecnológico e económico e lhe dá capacidade para se expandir. É a mais-valia relativa que lhe dá condições para superar contrariedades no seu percurso.

João Valente Aguiar disse...

3) não sei em que é que o tráfico de droga ou de seres humanos é incompatível com o capitalismo. O próprio capitalismo cresceu e acumulou capital nos seus primórdios a partir de dezenas de milhões de escravos africanos e não era menos capitalista por isso... Por outro lado, reitero o que disse num dos comentários anteriores, muito do que alguns militantes de esquerda chamam de feudalismo ou escravismo não é mais do que modalidades capitalistas de trabalho desenvolvidas em condições miseráveis. O que me espanta neste ponto é, por um lado, os auto-denominados sucessores do marxismo, de tão dialécticos que são, não ligarem puto às relações de produção e ficarem-se pelo lado fenoménico da coisa. Por outro lado, não querem saber para nada das modalidades mais avançadas e mais qualificadas de produção de mercadorias continuando a achar que o capitalismo parou em 1910 e que só o trabalho industrial clássico é que conteria operários. O fetiche das organizações ditas marxistas pelo fato-macaco é tão grande que para os seus militantes só quem trabalha em fábricas de altos-fornos e que pertence à classe trabalhadora... E assim deitam fora todo o estudo das relações de trabalho, pois como ainda subsistem fábricas industriais de tipo fordista, o sonho de uma reedição das experiências capitalistas de estado do passado manter-se-ia de pé...

4) se há aspecto que o capitalismo sempre foi bem-sucedido ele encontra-se no aproveitamento de modalidades monetárias, económicas e outras pré-existentes a seu favor. O próprio padrão-ouro de equiparação de uma determinada quantidade de valor a uma determinada quantidade de ouro vem de modalidades monetárias pré-capitalistas. Certamente não dirás que, por causa disso, o capitalismo seria feudal até 1971, quando se rompem os acordos de Bretton-Woods.

5) eu percebo a tua tese fantasiosa do feudalismo. Ainda se poderia perceber (apesar de erradas) que a III Internacional achasse, na altura, que existiam zonas da periferia como forma de defender revoluções nacionalistas e que terminassem o desenvolvimento burguês naqueles locais. O estranho, para não lhe chamar delirante, é alguém aplicar essas mesmas teses de modo mecânico numa altura em que o capitalismo nunca foi tão hegemónico, inclusive sendo capaz de utilizar o pouquíssimo de trabalho não-capitalista que ainda existe a seu pleno favor, inclusive ligando essa produção aos mercados financeiros...

JMS disse...

Se queremos ser realmente claros, temos de começar por encarar de frente as verdadeiras razões desta crise económica. Se vocês não compreendem o que está a acontecer, como é que podem ter a veleidade de propor soluções? O problema de fundo, a que ninguém alude, porque é aterrorizador e sem solução, é a crise energética e a impossibilidade física do crescimento económico. A única discussão de alternativas válida é a que assume como ponto de partida a inevitabilidade do decrescimento, do empobrecimento e do duro choque com a realidade. Não vale a pena fantasiar mais. É uma perda de tempo. Temos de aprender como gerir equitativamente o decrescimento futuro, mas para isso é essencial reconhecer que "esta crise económica não acabará nunca", como se explica aqui:

http://eumeswill.wordpress.com/2012/10/19/digamos-alto-y-claro-esta-crisis-economica-no-acabara-nunca/



JMS disse...


André Gorz dixit


La Sortie du Capitalism est dejá commencé

[...]

La décroissance est donc un impératif de survie. Mais elle suppose une autre économie, un autre style de vie, une autre civilisation, d’autres rapports sociaux. En leur absence, l’effondrement ne pourrait être évité qu’à force de restrictions, rationnements, allocations autoritaires de ressources caractéristiques d’une économie de guerre. La sortie du capitalisme aura donc lieu d’une façon ou d’une autre, civilisée ou barbare. La question porte seulement sur la forme que cette sortie prendra et sur la cadence à laquelle elle va s’opérer.

La forme barbare nous est déjà familière. Elle prévaut dans plusieurs régions d’Afrique, dominées par des chefs de guerre, par le pillage des ruines de la modernité, les massacres et trafics d’êtres humains, sur fond de famine. Les trois Mad Max étaient des récits d’anticipation.
Une forme civilisée de la sortie du capitalisme, en revanche, n’est que très rarement envisagée. L’évocation de la catastrophe climatique qui menace conduit généralement à envisager un nécessaire “changement de mentalité”, mais la nature de ce changement, ses conditions de possibilité, les obstacles à écarter semblent défier l’imagination. Envisager une autre économie, d’autres rapports sociaux, d’autres modes et moyens de production et modes de vie passe pour “irréaliste”, comme si la société de la marchandise, du salariat et de l’argent était indépassable. En réalité une foule d’indices convergents suggèrent que ce dépassement est déjà amorcé et que les chances d’une sortie civilisée du capitalisme dépendent avant tout de notre capacité à distinguer les tendances et les pratiques qui en annoncent la possibilité.