Há não muito tempo ainda, publiquei neste blogue, uma chamada de atenção para um texto excepcional do João Bernardo, intitulado Ponto Final. Nessa altura, não chegara ainda ao meu conhecimento um texto anterior, de 2009, publicado na revista História Social da Unicamp, Epílogo e Prefácio (um testemunho presencial). Mas acabo de o descobrir ao acaso de uma pesquisa bibliográfica, empreendida entre duas páginas de uma tradução de Diderot, na noite de ontem, e apresso-me, como quem cumpre uma obrigação inequívoca, a recomendar ao viandante que visite estas páginas a sua leitura com o vagar que baste, apesar do entusiasmo que espero que o tome, que o caso não é, como sói dizer-se, para menos. Aqui fica uma pequena amostra para quem duvide:
(…) no capitalismo desenvolvido as derrotas nunca são um esmagamento, mas uma recuperação, operada mediante a perversão dos temas da luta e a inversão do funcionamento das instituições nascidas nessa luta. Os trabalhadores haviam reivindicado o fim do monopólio do conhecimento técnico pelos gestores e haviam mostrado na prática que eles mesmos eram capazes de gerir, começando por gerir as lutas desencadeadas fora dos sindicatos e depressa passando a administrar empresas ocupadas, que podiam mesmo, como em Portugal em 1974 e 1975, representar grande parte do aparelho produtivo de um país. E o que sucedeu? O capitalismo mostrou-se capaz de inserir essa capacidade de gestão nos mecanismos de exploração. Resumido ao essencial, foi assim que se passou do fordismo ao toyotismo. Por seu lado, os estudantes haviam reivindicado a extinção da velha universidade e o fim da divisão clássica do conhecimento, a abertura do ensino superior à classe trabalhadora. E o que sucedeu? Extinguiram-se os últimos traços da universidade de elite e os gestores do sistema académico deram-nos uma universidade de massas vocacionada para ministrar cursos técnicos a uma mão-de-obra qualificada. O trágico é que não foram só os outros a fazê-lo, fomos nós mesmos. Os engenheiros e os administradores de esquerda, que haviam sofrido a influência do movimento estudantil radical, contribuíram poderosamente, nalguns casos decisivamente, para planificar a reorganização toyotista, tal como os professores de esquerda, em cuja cabeça ecoavam os temas da contestação estudantil, auxiliaram a reforma capitalista da universidade, quando não a superintenderam.
É ambíguo falar de derrota e de vitória, porque as há de infinitas variedades. É-se derrotado de uma dada maneira e os vencedores triunfam de uma dada maneira, por isso a vitória de uns tem indelével a marca da derrota dos outros, e sucede às vezes que o peso de certos vencidos sufoque os vitoriosos. Mas o que irremissivelmente perece são os sonhos e os objectivos que não foram realizados e animaram a luta até ela ser subjugada. Hoje restituíram-nos a utopia como vómito. E o que num plano organizativo é o virar do avesso de instituições que, nascidas na luta, passaram a servir o seu exacto contrário, no plano da linguagem é a adulteração das palavras. O lucidíssimo Jean-Paul Marat dedicou um dos capítulos de Les Chaînes de l’esclavage a esta perversão semântica, que nunca dá às coisas os seus verdadeiros nomes. E enfileiradas as palavras, temos a adulteração das ideias. Que Foucault e o multiculturalismo sejam entronizados como expressão directa do Maio de 68 é uma operação do mesmo teor da executada pelo marechal Floriano quando mandou dar o seu nome à cidade cuja rebelião ele mesmo aniquilara.
É, com efeito, quase impossível exagerar a importância deste escrito que enuncia e propõe tudo o que é necessário enunciar e propor em termos políticos como alternativa ao processo de barbarização com o qual o João Bernardo mostra que, para onde quer que nos viremos, estamos efectivamente confrontados. O inventário, não exaustivo, mas mais do que suficiente, que este "testemunho presencial" consegue o prodígio de condensar nuns quantos parágrafos, propõe-nos qualquer coisa como a pergunta "Senão agora, quando?", que serve de título ao singular "romance histórico" de Primo Levi, conferindo-lhe um carácter de urgência, bem vistas as coisas, e presentes embora todas as distinções a fazer, do mesmo teor. É que, se podem ser múltiplos os desfechos que virão a consumar esse processo de barbarização, caso não surjam forças capazes de interromper o seu desenvolvimento auto-sustentado, não deixa também de ser verdade, como a lucidez do João Bernardo nos obriga a reconhecer mais claramente, que não há alternativa à legião das barbáries possíveis que não passe pela democratização das actuais relações de poder, e pela reactivação na acção da nossa existência quotidiana e comum da vontade — só ela afinal e entre todas verdadeiramente razoável — de assumirmos, enfim, as nossas responsabilidades governantes. Ou se se preferir, como Sophia quis dizê-lo, "o gesto criador (…) [d]o nosso rosto voltado para o dia".
1 comentários:
quatro cortes de tecido por uma semana de trabalho
sabiam camaradas que salário vem de sal
agora explica-me porque é que a comissão de trabalhadores era paga em donas marias?
é verdade que era só papel mas mesmo assi...
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