30/01/13

Do "europeísmo manco" do BE segundo o Passa Palavra

Absolutamente prioritária a leitura do excelente artigo "De que serve um europeísmo manco?", assinado pelo colectivo do Passa Palavra, que a revista online do mesmo nome, hoje publica, contendo uma análise serena, mas sem contemplações, do "europeísmo manco" do BE, bem como das suas relações paradoxais com o PCP, geradoras de múltiplas e recorrentes injunções contraditórias ou duplos vínculos, sem dúvida não menos profusamente paralisantes.

Centrando-se embora na "questão europeia", o artigo tem ainda ocasião de recordar, de passagem, outros vícios de fundo que parecem, até prova (isto é, radical transformação interna) em sentido contrário, comprometer fatalmente a credibilidade das proclamações do BE quando tenta apresentar-se como força alternativa à economia política dominante.

Tudo isto faz com que me pareça útil retomar aqui, à laia de contributo e convite para o debate dos problemas absolutamente vitais abordados pelo Passa Palavra, parte de um post que aqui publiquei em Novembro passado —"…Para que serve, então, o BE?"— e cujas conclusões a leitura do texto "De que serve um europeísmo manco?" corrobora sob todos os aspectos mais relevantes.


(…) o BE distingue-se pela indefinição perante a questão europeia, o que, entre outros efeitos mais graves para o cidadão comum, equivale a uma auto-condenação à irrelevância numa matéria política fundamental.

O mal deve ter raízes profundas na história e no modo de existência actual do partido, porque reproduz, na realidade, a mesma indefinição que o caracteriza quanto às questões fundamentais da democracia e das alternativas à economia política dominante. Com efeito, ao mesmo tempo que denuncia as limitações do sistema representativo e que repudia o vanguardismo leninista, que leva o PCP a declarar-se como a direcção histórica e a consciência organizada dos trabalhadores, seu dirigente e seu guia, o BE rende-se na prática ao sistema representativo, organiza-se e hierarquiza-se em função das suas exigências, e não apresenta quaisquer propostas de democratização do exercício do poder alternativas — quer dizer, caracterizadas por lutas que visem, a começar pelo modo como se travam, a extensão da participação governante dos trabalhadores e cidadãos comuns nas deliberações e decisões que os implicam.

Para que serve, então, o BE? Dir-se-á que, apesar de tudo, talvez seja nas suas fileiras ou na sua área que se situam muitos que não se satisfazem nem com as propostas dos partidos de governo nem com as soluções autoritárias e hierárquicas de tipo, digamos assim, "leninista". Mas a justificação é fraca, sobretudo tendo em conta que, na actuação do BE, a recondução das aspirações democráticas difusas à cena política dominante, e à sua economia do poder, tende a primar — e, ao que parece, cada vez mais — sobre a busca de novos caminhos.



15 comentários:

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Estes artigos publicados no Passa Palavra estão cada vez mais previsíveis. É sempre a mesma ladainha: "não, não façam isso, não, não façam aquilo". Parecem escritos pelo Velho do Restelo. Na sua essência, são escritos extremamente reaccionários, lúgubres, que na prática advogam a inação, não oferecendo qualquer tipo de esperança num futuro melhor, qualquer vislumbre do que pode ser uma via alternativa. Atitude bem sintetizada nesta frase: "Nem sequer vamos desenvolver o tópico de que nenhum governo de esquerda representa qualquer tipo de saída possível para além do capitalismo."

Independentemente da validade da crítica, o que ressalta para quem tem acompanhado a publicação destes artigos é a absoluta incapacidade para propor o que quer que seja em termos de acção. Resumem-se a sermões, que não permitem qualquer dúvida, sobre o que (não) deve ser o comportamento dos outros.

Se fosse paranóico, começava a suspeitar que quem os escreve é um "entrista" de Direita, com a missão de convencer quem encontra de que nada deve fazer com o intuito de superar o Capitalismo, porque tal é impossível, e nem sequer (para já e sabe-se lá até quando) é desejável, pois nunca ninguém descobriu um sistema mais eficiente e que permita um tão bom nível de vida à classe trabalhadora.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

julgo que acharás que também os meus posts e posições são convites à inacção, uma vez que, no essencial, penso que a análise do "europeísmo manco" do BE é certeira. Mas não sei como vês um apelo à inacção numa crítica que acusa justamente de falta de capacidade de movimento e de se deixar paralisar pela hegemonia do PCP o actual BE.
Quanto à frase que pescas como argumento, o que diz, e tu distorces, creio que por precipitação, pois não quero suspeitar-te de má fé, é que um governo que aplique o modelo e a estratégia implícitos na equação "estatização + dirigismo económico estatal = socialismo", esquece e reprime aquilo a que há semanas aqui chamei o critério democrático do anticapitalismo. Para combater a economia política da dominação classista, não é de melhores governos hierárquicos que precisamos, mas da generalização e conquista da capacidade de participação governante - na esfera da economia e não só - por parte dos homens e mulheres comuns, contra a divisão classista do trabalho político e das responsabilidades correspondentes. Deste ponto de vista, a crítica a fazer ao BE tem a ver com a sua aposta privilegiada na conquista de posições institucionais no quadro do regime em detrimento da luta por outras formas de governo e da democratização das relações de poder vigentes.
Por fim, paralisante é a posição do BE ou daqueles que no seu interior se opõem por boas razões à saída unilateral do euro e à estratégia que visa a implosão da UE, ao mesmo tempo que se abstém de indicar uma via - que só poderia ser federalista, embora não só federalista - alternativa frente ao nacionalismo económico que justificadamente, como mostra o texto do Passa Palavra, denunciam.

Um abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

A minha crítica não tem a ver com a análise específica do artigo em questão. Incide essencialmente no método escolhido para apresentação de argumentos, o qual é puramente negativo. Não é o teu método, como é claro na tua insistência constante na necessidade de democratização radical dos mecanismos de decisão, que partilho. Neste aspecto, no que me distingo de ti, e ainda mais de quem escreve estes artigos para o Passa Palavra, é que não acho que seja suficiente descrever em traços muito gerais onde queremos chegar, sendo essencial para convencer as pessoas do rumo a tomar, discutir e delinear essa via que nos pode levar daqui até lá. Mais, essa via não pode ignorar os limites que nos são impostas pela realidade política, cultural e sócio-económica. Afirmar que o BE não pode fazer isto (aliar-se ao PCP) ou aquilo (aliar-se ao PS) ou aquele outro (quiçá nem devia concorrer a eleições) ou nem pensar em tentar governar (para quê, se não é possível um governo de esquerda superar o Capitalismo?!). Se isto não é um convite efectivo à inacção, é então o quê?… Há muitas aspectos a criticar no BE, a começar, como tu bem dizes, na aparente ausência de vontade de democratização radical da sociedade. Mas, mais uma vez, o problema está na crítica pela crítica, posição muito confortável, mas que não leva a lado nenhum. Aliás, leva. Ao fascismo. É a crítica destrutiva, que mete todos no mesmo saco, negativa, que induz à destruição, alimentando a espiral derrotista, sufocante, irracional (porque nenhuma saída racional, percepcionada como realista, é apresentada), que desemboca na raiva direccionada contra o Outro, semente da opressão.

Quanto à tal frase, ela não foi retirada do contexto, até porque ele não existe à sua volta (ou seja nada justifica a sua inserção ali), aliás, é logo de seguida afirmado que não têm interesse em desenvolver o tópico no artigo em causa. Mas se caiu do céu neste artigo, para quem leu os anteriores, a frase vem no seguimento duma linha de raciocínio segundo a qual qualquer tentativa de emancipação local ou regional em relação ao Capitalismo globalizado está não só condenada ao fracasso, independentemente da natureza da experiência - estatal, anarquista, conselhista - como efectivamente levará a um retrocesso nas condições de vida da classe trabalhadora.

Quanto ao federalismo, concordo plenamente. Mas não depende apenas de nós. Quando é que paramos de tentar convencer os bombeiros a apagar o fogo e começamos nós a fazer qualquer coisa de prático para impedir que a casa arda? Até pode nem resultar, até pudemos nos queimar, em vez de olharmos de fora. Há um risco associado à acção. A inacção é bem mais segura, no sentido de certa. Já sabemos onde vamos parar. Vivos, mas a morar debaixo da ponte.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Mas, Pªedro, se costumas ler o Passa Palavra, como é possível que afirmes que se trata de uma publicação que recomenda a inacção? Tem dado relevo a diversas lutas, com características muito diferntes - e, mais do que isso, tem, nalguns casos, servido de antena e porta-voz de grupos ou colectivos envolvidos na acção.
Quanto à ideia de que o Passa Palavra ou eu próprio metemos tudo no mesmo saco, nada mais longe da verdade. Não, não metemos tudo no mesmo saco nem apostamos no tudo ou nada. Toda a discussão sobre a questão do euro e do nacionalismo é sobeja demonstração do contrário - o que, de resto, me valeu a mim e ao Passa Palavra sermos acusados de reformismo ou de capitulação.
Por fim, a democratização não é um objectivo final que possa ser oposto aos movimentos reais de intervenção ou à acção política imediata: só pode ser um movimento dotado de sentido, que funciona e se organiza, adoptando formas de organização e relações internas alternativas, seja qual for a parada imediatamente em jogo a cada momento.
Enfim, recomendo-te a leitura do post que hoje publiquei transcrevendo e comentando brevemente uma crónica do Viriato Soromenho Marques - trata-se de purismo, de ignorância dsa mediações, de tudo ou nada, ou de efeitos luminosos que tornem pardos por igual todos os gatos?

Abraço

miguel(sp)

P.S. A crónica do VSM mostra bem de onde vêm os perigos de um reforço autoritário do austeritarismo…

Pedro Viana disse...

A acção colectiva não se esgota no local, ignorando que as sociedades se organizam em estruturas com diferente âmbito, desde o local ao global. É fácil tomar posições sobre questões locais, em particular quando se tratam de movimentos de resistência, de defesa do staus-quo (em contraponto à pro-acção), como é o caso do Assentamento Milton Santos. Mas não basta. Está sobejamente demonstrado pela história que o Capitalismo aguenta bem com experiências locais, a maior parte das quais acabam por desaparecer ou ser incorporadas no sistema. A ideia que estas experiências podem propagar-se e acabar por constituir-se como um sistema paralelo e alternativo, levando à lenta dissolução do sistema Capitalista, é uma ilusão. É necessário um movimento amplo que actue aos vários níveis da estrutura do sistema, desestabilizando-o por inteiro. Mas não é suficiente. Não basta fazer cair o sistema. Se não houver uma massa crítica, preferencialmente uma maioria, que esteja convencida que há uma outra, melhor maneira, de estruturar a sociedade, a desestablização só trará o caos, levando ao surgimento de soluções baseadas na força, de modo a repôr algum grau de previsibilidade no quotidiano. É por isso essencial, essencial repito, demonstrar que um outro sistema é possível, e que existe um caminho daqui até lá. Esta visão positiva da acção deve-se sobrepôr à recriminação, à vigilância do caminho dos outros, que nada, mas mesmo nada, adiciona à discussão e à mobilização colectiva.

Quanto ao artigo do VSM, a opinião que é nela expressa é pura crença. Sintetizada nesta frase "No aprofundamento federal da União encontraremos aliados em todos os países, incluindo na Alemanha." Não há qualquer evidência que apoie esta afirmação. É totalmente gratuita. A não ser que ele queira enganar os seus leitores. Porque a federalização que ele antes impliciteamente defende é total, porque só esta responde aos problemas actuais, incluindo um orçamento federal substancial com mecanismos de estabilização automática (por exemplo prestações sociais de âmbito europeu) e mutualização (pelo menos de parte) da dívida. Mas o VSM sabe que nã há na Alemanha qualquer apoio substancial a tal evolução federal da UE. O que o governo alemão actual, apoiado pelo maior partido da oposição, sob pressão da opinião pública (manipulada é certo, mas é assim que o sistema funciona) quer em termos de federalização é apenas que seja concedido às instituições europeias o poder para efectivamente controlar as políticas fiscais e sociais dos estados-membros. Efectivamente, não é um plano federal que está em cima da mesa, mas sim um plano imperial (em que os súbditos não são conquistados, mas abdicam "livremente" da sua soberania - num mimetismo semelhante ao assalariado que abdica da sua autonomia, da mais-valia do seu trabalho, em favor do detentor dos meios de produção, apesar de em teoria poder optar por ser autónomo). Federação e império são duas coisas bem diferentes, independentemente do rótulo usado. Basta perguntar às "repúblicas" soviéticas, ou às regiões "autónomas" da actual "federação" russa. Nem todos os processos de "integração", ou federalização são benéficos para as populações envolvidas. E isto, não me parece que seja abordado de forma suficientemente clara nos escritos daqueles que defendem a federalização (ou criticam a autonomização, que a meu ver erradamente, reduzem à nacionalização).

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Pedro,
acho que treslês completamente a crónica do VSM, que, sem dúvida, estaria de acordo contigo para dizer que só a federalização integral que citas poderia ser solução. E nada do que escreve a seguir opera marcha atrás: é pelo facto de os grandes partidos lhe serem contrários que a via sugerida é, para ele, "tão difícil como urgente". E o que o VSM defende, em todo o caso, é uma integração política e constitucional, comportando, entre outros, os aspectos que sublinhas.

Quanto à questão de fundo, é fectivamente preciso mostrar que outro caminho é possível - e isso só se pode fazer transformando democraticamente a maneira de agir, de fazer o caminho, de decidir e pensar. E combatendo a lógica do rebanho ou da hierarquia burocrática e militar, a importação pelas organizações que se queiram "anticapitalistas" das concepções e formas de organização da economia política dominante.

Fica-te bem acompanhares a luta dos assentados do Milton Santos - mas não leste nada no Passa Palavra que te falasse de outras lutas - desde a dos estivadores portugueses há pouco, às que se travam no México, passando por questões fundamentais que se põem na África do Sul, em vários pontos da Europa, a propósito de factos, acções, propostas e movimentos diversos? Por fim, é inútil tentares distinguir antagonismo entre as minhas próprias posições e outras que se exprimem no Passa Palavra, que não é, tanto quanto sei, um colectivo monolítico, mas tem uma plataforma clara, e regista nas suas páginas textos assinados por gente da qual - até há pouco, pelo menos - eu te diria muito próximo: além do João Bernardo, do João Valente Aguiar, quetens enfrentado polemicamente nos últimos meses em torno da questão europeia, têm lá publicado textos, por exemplo, o Jorge Valadas, o José Nuno Matos, o Ricardo Noronha e… eu próprio.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Miguel, a afirmação que reproduzi do VSM é cristalina. Não é possível segundas interpretações. E não aprecio esse tipo de "embelezamento" duma posição, que só retira credibilidade, e sabota a utilidade da discussão. O que mais aprecio num interlocutor é a absoluta honestidade e transparência das suas posições, sem tentativas de escamotear os problemas que lhes estão associados, nem esconder consequências menos apelativas. Não aprecio vendedores de ideias. Análise crítica, céptica, mas propositiva, sem cair no negativismo.

Quanto ao que dizes no segundo parágrafo do teu comentário, infelizmente não basta. A democracia é um meio, não um fim. E o que as pessoas valorizam é o fim. Se lhes dizes que o meio de decisão deve ser democrático, perguntam-te aonde isso leva: haverá instabilidade, terei de dar de comer aos meus filhos, levará a guerras, terei de deixar de fazer o meu trabalho? E não lhes será suficiente afirmares que isso estará no seu poder decidir. É preciso demonstrar que com o poder de decisão vem associada a possibilidade duma vida melhor, que necessariamente passa pela demonstração que essa vida melhor é realmente possível no seio dum sistema diferente do actual. Porque se não for assim, perguntar-te-ão: mas, afinal, para que quero o poder de decidir se já vivo no melhor mundo possível? Porque terei de perder tempo com reuniões e mais reuniões se as decisões a que chegar dificilmente serão melhores para mim do que aquelas que outros neste momento tomam?

Quanto ao Passa Palavra, o meu, digamos, problema, tem essencialmente a ver com os textos que lá têm sido publicados anonimamente. E o problema tem, como antes afirmei, a ver não tanto com o que é efectivamente dito, mas sim com o modo como tal é dito, totalmente contraproducente como atrás defendi, e com a ausência de qualquer atitude propositiva e abertamente construtiva. Não sei quanto desses textos têm um contributo do João Bernardo, mas o tom é muito semelhante. E não sou o único a notar os problemas associados a tal "estilo" de argumentação, como a polémica que surgiu na caixa de comentários deste texto

http://passapalavra.info/?p=70843

assim ilustra.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Pedro,
quanto à leitura que insistes em fazer do VSM, creio que te enganas redondamente. Mas, enfim, não posso convencer-te da justeza da minha, e, portanto, vamos deixar as coisas por aqui. Acentuando eu, pelo meu lado, que julgo que a eleição de uma constituinte europeia, a adopção de uma constituição europeia, uma integração política, orçamental e fiscal, poderiam criar condições mais favoráveis à democratização das relações de poder estabelecidas.

A democracia inclui o fim por excelência que é a autonomia - esta está longe de ser apenas um meio, e significa igual liberdade e responsabilidade para todos, independência de cada um na construção da sua própria vida, na esfera alargada de liberdade individual que lhe garante. Claro que, além disto, a democracia tem de assegurar soluções adequadas para os problemas e conflitos da cidade. Mas o ponto decisivo é que, do seu ponto de vista, que Rosa formulou eloquentemente, é preferível que sejamos nós a decidir, podendo enganar-nos e emendar a mão a seguir, a entregar a decisão ao mais esclarecido dos comités centrais ou outra instância "competente". A melhor verdade imposta aos interessados torna-se, dizia Rosa, o mais monstruoso dos erros. E também com isto estamos no plano da "substância" e não dos meios ou instrumentos.

Quanto ao Passa Palavra, terão de ser outros a responder-te, se assim entenderem. Já deixei clara a minha posição e a minha solidariedade com os seus "princípios" ou "plataforma", e acrescento que nunca me pareceu que para lá se publicar se tenha de ser discípulo do João Bernardo ou seja de quem for. Não sei onde queres tu chegar com as considerações finais deste teu comentário. E lamento o tom, admito que involuntário, de "insinuação" que acabaste por imprimir ao teu juízo. Nunca foi teu timbre - desde que te leio - e espero que se trate apenas de um deslize infeliz, no calor da polémica.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

"(...)é preferível que sejamos nós a decidir, podendo enganar-nos e emendar a mão a seguir, a entregar a decisão ao mais esclarecido dos comités centrais ou outra instância "competente".(...)"

Mas é preferível porquê, perguntarão? Terei uma vida melhor ou não? É que a maior parte das pessoas não raciocina com base na ideologia, mas sim avaliando a utilidade, o custo vs.benefício (não necessariamente para o próprio, mas eventualmente para a comunidade onde se insere). Se não forem convencidas de que, pelo menos, é possível uma vida melhor no seio duma democratização radical das relações sociais (na sua definição mais universal), não verão qualquer interesse em apoiar essa via. Para além de que mesmo quando essa democratização está presente, na ausência de alternativas estruturadas e claras, convincentes, que combatam a narrativa cultural hegemónica, não haverá vontade de mudança sistémica. Isso é patente em sítios como os EUA ou Suiça, onde é relativamente fácil convocar referendos vinculativos, mas cujos resultados têm tido até hoje pouco impacto no sistema de relações hierárquicas existente. As pessoas até se podem sentir maioritariamente desconfortáveis com tal situação, mas não vêm alternativas que os convençam que mudando essa situação, não acabarão por perder de outros modos.

Outro exemplo claro é uma instituição como o Montepio Geral. Apesar da política do banco poder ser radicalmente alterada por meio de votação democrática dos seus associados (como é o meu caso), sistematicamente são eleitas direcções cujo único propósito é construir um banco "rentável", exactamente igual aos outros. Se tentares convencer as pessoas a tornar o banco num exemplo e num meio de democratização das relações de trabalho (nas empresas por ele apoiadas), perguntar-te-ão, mesmos os próprios trabalhadores: qual é o risco que isso implica para o meu emprego, para o meu dinheiro? Na ausência de resposta, preferem o diabo que conhecem.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Pedro, por esta é que eu não esperava: ver-te adoptar a concepção do homo economicus e do interesse racional nos termos exactos do imaginário capitalista "teórico". A democratização da satisfação das necessidades e da garantia dos bens é inseparável, indissociável, desde o primeiro momento, da redefinição e transformação de umas e de outros. Se é evidente que lutamos por uma vida melhor, devia ser também que a cultura da autonomia democrática não se propõe fazer "melhor" do mesmo ou "mais do mesmo". A alternativa da democratização é herdeira e terá de ser criadora de uma concepção dialógica da razão, da racionalidadde e do racional que o "cáluclo racional" ou o "interesse racional" dos economistas ignora.

Senão, sugito-te que consideres por um momento esta passagem de Castoriadis, que já citei em mais do que uma ocasião, e que me serve aqui de remate argumentativo mais do que suficiente (Cf."Fait et à faire" [1989], em Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V, Paris, Seuil, 1997):

"A armação das racionalizações e das justificações da 'ciência económica' ruiu sob os golpes dos melhores representantes dessa mesma 'ciência' ao longo da década 1930-1940 (Sraffa, Robinson, Chamberlin, Kahn, Keynes, Kalecki, Schackle e vários outros) […] A ['ciência económica'] nada tem a dizer sobre a repartição do rendimento nacional. Nunca poderá explicar, e menos ainda justificar, a diferenciação dos salários e dos rendimentos. Tem de reconhecer que não há, espontaneamente, equilíbrio macro-económico e pleno emprego sob o capitalismo. […] Pressupõe - como Marx - que é possível uma imputação rigorosa do produto aos diferentes "factores" e "unidades" de produção - quando essa ideia é estritamente desprovida de sentido, o que destrói toda a base para uma diferenciação dos rendimentos, que não seja a das situações adquiridas e das relações de força (que regulam, objectivamente, a actual repartição do e dos rendimentos).
[…]
Devemos dizê-lo mais claramente ainda: o preço a pagar pela liberdade é a destruição do económico como valor central e, de facto, único. […] Quem pode crer que a destruição da Terra poderá continuar por mais um século ao ritmo actual? Quem não vê que essa destruição seria ainda mais acelerada se os países pobres se industrializassem? E que fará o regime quando deixar de poder conter as populações fornecendo-lhes constantemente novos gadgets?
Se o resto da humanidade tiver de sair da sua miséria insuportável, e se a humanidade inteira quiser sobreviver neste planeta num steady and sustainable state, será necessário aceitarmos uma gestão de bom pai de família dos recursos do planeta, um controle radical da tecnologia e da produção, uma vida frugal. […] para assentar as ideias, podemos dizer que já seria bastante bom que pudéssemos garantir 'indefinidamente' a todos os habitantes da Terra o 'nível de vida' dos países ricos em 1929.
O que pode ser imposto por um regime neofascista; mas pode ser também livremente feito pela colectividade humana, organizada democraticamente […] abolindo o papel monstruoso da economia como fim e voltando a pô-la no seu lugar adequado, de simples meio da vida humana. Independentemente de muitas outras considerações […], é nesta perspectiva, e como momento desta transformação de valores, que a igualdade dos salários e dos rendimentos surge como um aspecto essencial".

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Mas Miguel, quando falo de utilidade não estou a reduzir o termo àquilo que é quantificável, ao domínio da economia, mas sim a dar-lhe um significado mais geral, equivalente a interesse. Algo é útil, tem interesse para alguém, se leva à concretização dum aspiração ou objectivo dessa pessoa. O que pretendi com a menção do conceito de utilidade, foi vincar o facto da generalidade das pessoas estar mais interessada no resultado da acção do que no processo através da qual ela foi decidida. Parece-me claro que um processo decisório que não consiga demonstrar, pelo menos, que consegue levar em igual medida (mas diferente nos detalhes) à satisfação das aspirações e objectivos da generalidade das pessoas, à obtenção do que percepcionam como útil, estará condenado a permanecer a utopia duma minoria.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Muito bem, Pedro. Mas, então, diz-me se é concebível um regime mais favorável do que o democrático - em que todos participam igualitariamente - à garantia e à própria produção criadora do "interesse geral", bem como à ponderação por cada um das condições gerais que melhor assegurem a possibilidade de buscar os seus "interesses" próprios (excepto os que consistam em apossar-se de uma posição hierárquica que lhe permita exercer uma dominação sobre os outros).

Abraço

miguel(sp)

João Valente Aguiar disse...

Caros Pedro e Miguel,

os vossos comentários já vão num sentido um pouco desfasado (apesar de relacionado) com o artigo do passa Palavra. Irei abordar apenas o primeiro comentário do Pedro Viana. E irei abordá-lo porque parece que eu li um determinado texto e o Pedro teria lido outro...

Sobre este comentário do Pedro apetecia-me começar por uma expressão um tanto ou quanto forte mas foi a primeira reacção quando li o referido comentário: "Passaste-te, ou quê?". Pardon my French mas leste o artigo em condições? Impressionante como o facto de, por um lado, se criticarem as ambiguidades do BE sobre a questão do euro e sobre a sua relação com o PC e, por outro lado, se chamar a atenção para a permanência de uma sociedade capitalista de Estado no caso do projecto do PCP te levar a imputar todo o tipo de aberrações ao texto...

Mas o pior de tudo isto é que a esquerda praticamente não tem qualquer reflexão crítica sobre si mesma e sobre as suas várias correntes. Como é possível hoje em dia não haver quase ninguém à esquerda que aspire a uma sociedade auto-gestionada, não-hierarquizada, controlada democrática e colectivamente pelos trabalhadores. etc. como alternativa ao capitalismo? Podes dizer que é um princípio abstracto e que não mobiliza as pessoas... Mas não se trata aqui do velho estilo bolchevique de achar que serão apenas as organizações de esquerda a injectar a consciência "correcta" nos trabalhadores. Pelo contrário, essa auto-gestão (chama-se o que se quiser) apenas é concebível no plano teórico porque foi um princípio praticado pelos trabalhadores nos contextos de luta. Que hoje essa autonomia de acção da classe trabalhadora não se expresse no nosso quotidiano isso só demonstra o real perigo dos dias de hoje e é algo que o site do passa Palavra me parece estar a chamar a atenção. É porque não existe uma acção autónoma dos trabalhadores criando novas instituições que o estatismo enquanto organização ainda mais hierarquizada e repressora da sociedade pode aparecer enquanto horizonte (na minha opinião, igualmente mau) para as nossas vidas.

Curioso ver a esquerda de hoje que no passado relacionava sempre o Estado como parte integrante dos aparelhos de dominação das classes exploradoras, hoje em dia preferir contrapor o Estado ao mercado... Pois, na URSS foi o que se viu: um Estado operário que mais não foi do que a operacionalização da repressão sobre os trabalhadores numa escala só superada pelas experiências totalitárias à direita.

A crítica do Estado e do mercado, ou se preferirem, a crítica da política e da economia capitalistas devem ser indissociáveis. E lá porque, por exemplo, o PCP critica o mercado não quer dizer que o Estado seja propriamente um melhor actor (se é que é possível os estados nacionais hoje podem voltar a deter o grau de estruturação da sociedade e da economia que tiveram no passado, mas essa é outra história).

Um abraço,
João

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Concordo contigo, claro. Eu já me convenci de tal. Mas eu sou, em grande parte, idealista: consigo visionar como poderia tal ideal ser aplicado na prática, e convencer-me de que teria as consequências desejadas. Mas reconheço-me como diferente da grande maioria das pessoas, mais reticentes em acreditar na bondade da mudança na ausência da prova histórica de que tal conduz a um incremento do seu bem-estar (no sentido mais geral). Sem tal prova, só as podemos convencer construindo cenários plausíveis, racionais e realistas, de vias para a mudança. Proclamações idealistas não bastam.

Um abraço,

Pedro

Pedro Viana disse...

Caro João,

"Mas o pior de tudo isto é que a esquerda praticamente não tem qualquer reflexão crítica sobre si mesma e sobre as suas várias correntes."

Concordo em absoluto. Mas não se aplica apenas "aos outros", mas também "a nós". E é isso que não vejo nestes textos anónimos no Passa Palavra. O que passa é uma arrogância relativamente a outras correntes na esquerda, própria de quem se sente detentor da Verdade. Em nada diferente do que se tem passado em outros períodos históricos. Arrogância essa que se torna mesmo nalguma má-fé, quando não se reconhece como possível no Outro os mesmos objectivos. Por exemplo, quando os dirigentes do PCP afirmam que a emancipação da classe trabalhadora requer um Estado forte, em vez de se admitir que eles possam estar a ser sinceros, e que até poderão em alguma medida ter razão (mas não quando todas as consequências de tal proposta são consideradas), o que é mais ou menos explicitamente dito é que tais dirigentes estão a ser falsos, porque sabem muito bem que um Estado forte necessariamente oprimirá os trabalhadores, e por isso o que querem na verdade é ter lacaios ao seu serviço. É bom não esquecer que o que descreves como "uma sociedade auto-gestionada, não-hierarquizada, controlada democrática e colectivamente pelos trabalhadores" não é mais do que o ideal comunista, partilhado por todas as correntes revolucionárias de Esquerda. Estas não diferem no seu objectivo final, mas sim no modo de lá chegar e na necessidade ou não de estágios intermédios, bem como na sua duração. Por isso, não me parece "razoável", e um claro obstáculo ao diálogo construtivo, estar a imputar a outras correntes na esquerda objectivos "escondidos". E isto vale para todas, inclusivé para os marxistas-leninistas do PCP que olham para as outras correntes da esquerda como idealistas perigosos e inconsequentes, cúmplices efectivos da Capitalismo, porque obstáculos à sua capacidade de "mobilização" da classe trabalhadora.

Quanto à auto-gestão, na verdade ela está bem viva e recomenda-se. Os sectores cooperativo e informal/auto-emprego têm um peso significativo em muitas economias, reunindo centenas de milhões de pessoas a nível mundial. O que não existe, mesmo entre quem devia ser mais sensível ao argumento, é a percepção que tal forma de "governo" é passível de ser generalizada a todas as estruturas sociais (i.e. de coordenação). O que tenho tentado argumentar com o Miguel é que tal se deve à inexistência duma narrativa coerente que demonstre como possível ir daqui (do sistema em que vivemos) até lá (ao sistema a que queremos chegar), sendo este um lugar onde claramente gostaríamos de estar.

Um abraço,

Pedro