Os acontecimentos
ucranianos, a ocupação da praça de Kiev e o massacre que levou ao afastamento de
Yanoukovitche do seu bando não foram fáceis de seguir por quem procura
compreender o mundo onde é obrigado a viver! Isto sobretudo se tivermos em
conta as poucas informações directas e fidedignas de que dispomos e o poder da
propaganda pró-UE e pró-democrática produzida pelos media europeus. Fomos também confrontados com o descontrolo habitual
daqueles que se deixam rapidamente seduzir por qualquer confronto de rua com a
polícia. Ora, ver nas barricadas e nos confrontos violentos com os mercenários
do regime um sinal de radicalidade revela uma grande falta de sentido crítico, do
mesmo modo que atribuir um conteúdo democrático à revolta em função da
reivindicaçãode integração na UE padece de uma perspectiva errada.
Qualquer revolta
social que permaneça confinada ao domínio da política terá o seu futuro moldado
pelos interesses das forças capitalistas e das relações intercapitalistas. Sabemos,
e pudemos constatá-lo em concreto, que a relação entre os interesses do
capitalismo europeu – em particular do seu núcleo alemão –e os do capitalismo
russo se encontra no cerne da crise ucraniana. Mas um movimento social capaz de
desequilibrar as relações políticas no interior de um Estado introduz
inevitavelmente factores de imprevisibilidadee pode influenciar a lógica
friadas relações intercapitalistas. É por isso que a compreensão da natureza e
dos projectos das forças políticas que actuam no interior do movimento
ucraniano é indispensável para ver mais claramente o que se passa.
Na revolta da Euromaidan, houve duas forças políticas
organizadas que se destacaram desde início contra o regime de Yanoukovitch e o
seu Partido das Regiões. A par dos
partidos democráticos liberais pró-UE, uma outra força política ganhou
progressivamente influência no decurso dos acontecimentos. Trata-se da corrente
ultranacionalista e nacional-socialista, representada sobretudo pelo partido Svoboda quetem uma real implantação epoder
de mobilização em Kiev e na Ucrânia ocidental. Por razões de oportunismo e de
interesse político, os democratas ocidentais e os seus escribas decidiram
minimizar, e mesmo ignorar, a sua intervenção, a sua ideologia e o seu projecto
político. Ora, este não é o mesmo que o das forças pró-UE, na medida em que
esta corrente fanaticamente nacionalista se opõe, pelo menos em teoria, simultaneamente
ao domínio russo e ao da Europa, vista como uma zona de valores decadentes e sujeita
aos «interesses judaicos internacionais».
A existência em
Kiev de pequenos grupos que têm uma perspectiva crítica do mundo e dos
interesses capitalistas em jogo constitui um trunfo precioso para nos
orientarmos no nevoeiro da Euromaidan.
Neste âmbito, há diversos textos disponíveis na Internet, designadamente uma
entrevista realizada por uma rádio livre da Carolina do Norte (EUA), Ashville Fm Radio, com um camarada
anarco-sindicalista da União Autónoma dos
Operários da Ucrânia (1). No site
deste grupo (2), podemos igualmente ler, em inglês, uma outra entrevista (3) e um
debate (4). Um texto menos interessante e mais ideológico, do Sindicato Autónomo
dos Trabalhadores de Kiev encontra-se disponível em francês (5).
Não se trata de aceitar estes textos como se
traduzissem A verdade sobre a situação na Ucrânia. Tendo em conta a confusão
reinante e os aspectos contraditórios e em constante evolução da situação, é
legítima a ocorrência de diferenças de análise, e estas devem ser expressas. Trata-se
de ler estes textos respeitando a inteligência daqueles que intervêm e daí
retirar elementos que nos permitam prolongar a reflexão e compreender um movimento
que não caminha necessariamente na direcção dos nossos desejos e expectativas.
Com efeito, como tem acontecido com outras evoluções nas sociedades saídas do
desmoronamento do bloco do capitalismo de Estado, estas revoltas são portadoras
de tendências profundamente reaccionárias perante as quais as correntes
emancipadoras se encontram em minoria, e mesmo ameaçadas.
Vejamos agora
sucintamente alguns dos aspectos abordados por estes camaradas ucranianos.
A composição social
dos manifestantes presentes na Euromaidanevoluiu
ao longo dos meses. Inicialmente, a maioria dos manifestantes eram membros das
classes médias pró-ocidentais, apoiantes dos partidos da oposição ao regime de Yanoukovitch.
Depois, com o desencadear da repressão policial e a chegada de elementos das
classes mais populares, a composição da multidão na praça diversificou-se. A
relação de forças entre os partidos presentes também se modificou e o papel dos
partidos extremistas nacionalistas e racistas, sobretudo o partido Svoboda, ganhou peso. Segundo esta
análise, as classes médias da juventude estudantil de Kiev constituem a principal
base de recrutamento de quadros e militantes de partidos extremistas como o Svoboda e o Pravy Sektor, que aliás se encontram também fortemente implantados
entre os trabalhadores da Ucrânia ocidental. Podemos pensar que muitos trabalhadores,
jovens e desempregados, seduzidos pela histeria nacionalista, foram depois
recrutados por grupos paramilitares e enviados para o combate. Mais apática e
menos militante, a grande massa dos trabalhadores vê estes grupos como
uma«vanguarda» que protege o povo contra uma classe dirigente corrompida. De um
modo geral, fazem notar estes camaradas anarco-sindicalistas, a presença
dominante dos partidos neonazis corresponde ao ambiente geral na Euromaidan, onde as ideias nacionalistas
uniam em grande medida os ocupantes.
Um outro aspecto
que ilustra os limites do movimento é o facto de, fora da Euromaidan e das ruas limítrofes, a vida ter seguido o seu curso
«normal» em Kiev. Bem entendido, em todo o lado, nas empresas, na cidade, na
Ucrânia ocidental em geral, os confrontos na Euromaidan estavam no centro de todas as conversas e preocupações. Porém,
não terá havido qualquer movimento de solidariedade colectiva nem greves. O
apelo, lançado por algumas organizações liberais de esquerda, a uma greve
política não teve qualquer eco, e inclusivamente a greve dos trabalhadores dos
transportes da cidade, em Janeiro, desenrolou-se sem ligação com a agitação na
praça. Uma tentativa de greve na Universidade foi abafada pela intervenção de
grupos neonazis.
Segundo
informações fornecidas por estes camaradas,o conjunto da ocupação da praça permaneceu
dominado pelos aparelhos dos partidos, desde os partidos da oposição até aos
partidos nacional-socialistas. Estes últimos asseguraram e dominaram o
essencial das actividades práticas e de organização da ocupação. Pela sua
própria natureza militarista e machista, impuseram-se desde início como«os especialistas»
da violência e encarregaram-se da «autodefesa» da Euromaidan. Apesar de a ocupação ter durado mais de dois meses, as
práticas de acção independente e de auto-organização foram quase inexistentes, e
foram os chefes e as hierarquias que dominaram e decidiram. Não houve
assembleias nem tomadas de decisão colectivas, e os debates limitaram-se às
questões nacionalistas e estritamente políticas. As tentativas de abordar a
questão social chocaram de imediato com a oposição dos chefes neonazis, que as
denunciaram como uma «provocação». É certo que a vida interna da praça eramuito
diversificada, mas as organizações fascistas mantiveram o controlo do lugar. Os
grupos paramilitares, os Sotnia, continuaram
sob a direcção de chefes nacional-socialistas, alguns dos quais tinham estado
ligados a sectores da polícia. Trata-se de grupos constituídos exclusivamente
por homens, em que os valores machistas são especialmente vincados. Assim, não
admira que, logo a seguir a Yanoukovitch e o seu clã terem sido lançados borda
fora, estes grupos se tenham assenhoreado de Kiev e dos edifícios oficiais,
misturados com a polícia de Kiev que se pôs ao lado das forças da oposição.
Os pequenos grupos
de radicais foram marginalizados, excluídos da organização da ocupação da praça,
com excepção dos grupos de ajuda médica, onde muitos radicais e mulheres
puderam inserir-se. Logo que tentaram exprimir as suas ideias ou levantar
questões de carácter social foram violentamente atacados e expulsos da Euromaidan, acusados de serem «provocadores».
Ousar pôr em causa o mito pró-UE dos partidos da oposição e relembrar que a
Europa é também sinónimo de austeridade social equivalia a ser-se apelidado de
partidário da Rússia…Alguns radicais bem tentaram agrupar-se e formar um Sotnia independente, mas as milícias do Svoboda atacaram-nos imediatamente e
expulsaram-nos da Euromaidan, acusando-os
de serem um grupo «racialmente impuro». De acordo com informações fornecidas
por estes camaradas, os raros anarquistas e radicais que se conseguiram
integrar nos Sotnia acabaram por se
resignar, por razões tácticas ou por oportunismo, a aceitar os valores
nacionalistas e racistas dos chefes! O mesmo é dizer que, ao fazê-lo, renunciaram
aos seus valores e princípios e suicidaram-se politicamente. A confusão e a
força do nacionalismo são tais que a própria figura de Makhno é hoje adulada
pelos nacional-socialistas. Dado que lutou contra os bolcheviques, é
apresentado como um verdadeiro nacionalista ucraniano…
Os três textos acima
referidos abrem o debate acerca de uma questão importante: as causas e os fundamentos
da expansão da ideologia nacional-socialista e do racismo nas sociedades do
antigo bloco capitalista de Estado. Tudo se passa como se o vazio ideológico deixado
pelo desmoronamento dos regimes totalitários comunistas tivesse sido
substituído pela expansão do nacionalismo, e a velha ideologia do «socialismo
científico» tivesse sido substituída pela do «nacionalismo científico». A
passividade, o individualismo e o seguidismo actual dos trabalhadores perante
os partidos populistas estão ligados à cultura da submissão reinante nos países
do «socialismo realmente existente». Para efeitos dos seus interesses e da sua
propaganda, o poder russo esforça-se por reduzir todo o movimento da Euromaidan a uma tomada do poder pelos
fascistas. Ora, no leste da Ucrânia, o Partido
Comunista Ucraniano desempenha o mesmo papel populista que o partido
neonazi no oeste do país. Organiza as suas próprias milícias paramilitares e fomenta
um nacionalismo pró-russo feroz e belicoso.É o fascismo castanho contra o
fascismo vermelho e vice-versa.
Os acontecimentos
bárbaros a que assistimos inscrevem-se na orientação do que foi o antigo
sistema opressivo da exploração, que erigiu os nomes do socialismo, do marxismo
e do comunismo em cobertura ideológica. Não será nos próximos anos que sairemos
desta liquidação.
Ao animador da rádio
livre norte-americana que pergunta que forma concreta de solidariedade podemos
pôr em prática para com os anarco-sindicalistas ucranianos, o camarada entrevistado
responde: «O melhor que podem fazer é o que estão a fazer, ou seja, tentar
desmistificar a situação actual, pois é natural que muitos anarquistas nos
países ocidentais tenham tendência para sentirem um optimismo excessivo acerca
do que se passa na Ucrânia.» A solidariedade internacional
não pode olhar para uma situação complexa de maneira simplista. Parece evidente
que estamos a assistir, não a um movimento que estabelece as premissas de uma
emancipação social, mas, pelo contrário, a um movimento maioritariamente
controlado por formações políticas autoritárias e animado por ideologias
mortíferas e reaccionárias. É provável que, nas zonas de sombra e nos raros
espaços não ocupados pelos chefes nacionalistas e racistas, existam germes de
uma outra maneira de ver o mundo e de outras formas de acção. Mas, na evolução
da situação, tudo aponta para que estejamos ainda longe do caminho da
emancipação social. Reconhecer isto é dar provas de solidariedade para com os
nossos camaradas que no local da acção tentam fazer-se ouvir em condições
adversas.
4 4) http://avtonomia.net/2014/02/20/maidan-contradictions-interview-ukrainian-revolutionary-syndicalist/
3 comentários:
http://colectivolibertarioevora.wordpress.com/tag/ucrania/
Jorge, antes de mais, excelente texto. Comecei por escrever aqui um comentário mas este cresceu tanto que acabei por transformá-lo num post entretanto publicado. Perante algo tão complicado como o que se passa na Ucrânia é difícil ter divergências significativas, a não ser com quem insiste em tomar posições definitivas e maniqueístas. Espero não ter treslido alguma coisa do que escreveu. Um abraço
Salud compas!
Os dejamos un enlace a la traducción al español del artículo de Jorge Valadas:
http://www.alasbarricadas.org/noticias/node/28923
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