11/11/16

Da confusão entre a esperança e o pesadelo

Não me apetece escrever sobre a vitória de Trump. Tão pouco me apeteceria escrever sobre a vitória de Clinton. Imagino as loas que se teceriam, caso a primeira mulher tivesse vencido uma eleição presidencial americana.
No entanto causa-me alguma perplexidade o texto que o Pedro Viana aqui divulga da autoria de Richard Heinberg.  Acho o texto de Richard Heinberg uma elaboração tipica de um adiantado mental. Muitas vezes a roçar a mais implacável imbecilidade politica.
Os pesos que ele coloca nos dois pratos da balança, com que, supostamente, avalia a situação, mostram-no em toda a sua crueza. Num dos pratos coloca parte dos aspectos potencialmente sinistros da futura  presidência de Trump - questão ambiental, com a anulação do acordo de Paris, a apologia das teorias negacionistas da ameaça climática, abertura de alguns dos famosos parques naturais ao investimento no imobiliário, disponibilização de todas as terras para a construção e para o atravessamento por infraestruturas destinadas à sobreexploração dos recursos naturais, nomeadamente os fósseis, desinvestimento nas energias renováveis, etc.
Estranhamente Heinberg esquece o anúncio da implosão do sistema de saúde que Obama, apesar da oposição dos republicanos, estava a implementar. Estamos a falar directamente de 30 milhões de pessoas, que pela primeira vez tiveram acesso a cuidados de saúde públicos. Ignora igualmente as anunciadas politicas xenófobas e contra a imigração ou a clara diabolização dos muçulmanos.
Mas, pronto, o homem valoriza muito o fim dessa ameaça que a terrível Clinton simbolizava: a próxima guerra contra a Rússia. Ufa, do que nos livrámos. Ainda assim Trump deve ir agora reforçar as relações com Putin e talvez tomar chá com o líder do  Irão, para falarem de viva voz sobre o programa nuclear iraniano. Ou introduzir no conflito do médio oriente uma posição equilibrada, que não ceda aos falcões israelitas. Nada disso ocorreu ao apóstolo Heinberg.
Notável é que, colocado perante esta balança por ele próprio idealizada, o homem lhe vire costas e se prepare para enfrentar o futuro carregado de optimismo.
Devemos ter como ele uma atitude de grande esperança no futuro? Afinal Trump é, diz ele, o fim do neoliberalismo do partido democrata. Será?  Reagan, afinal, foi um democrata e Carter um Republicano. Isto estava tudo trocado, ainda bem que Heinberg, falou. Com este presidente, com esta maioria no Congresso, com o aparelho politico nas mãos do Partido Republicano,  quem pode ter menos do que muita esperança?
Vamos ver se Trump resiste à pressão dos neocons - seus adversários, é verdade - para implodir o incipiente sistema social americano, para instalar as ideias de Adam Smith em todo o seu esplendor. Vamos a ver se Nozick não ressuscita das trevas em que estes anos de Obama o confinaram, apesar das incapacidades várias da liderança do primeiro afro-americano a presidir à América. Vamos ver como o corte de impostos sobre as empresas vai, outra vez, fazer disparar o défice, como aconteceu com Bush.
Claro que Clinton era uma péssima candidata, por todas as razões já evidenciadas mas que Robert Parry, citado por Heinberg [nem tudo é mau] descreve com rigor. Era necessário um candidato que fosse capaz de representar um corte com o establishment, capaz de renovar as esquerdas e colocar o combate à desigualdade no centro da politica. Isso não tem nada a ver com Trump, nem com os horrores que aí espreitam. Não tem nada a ver com uma expectativa de um futuro progressista. Antes pelo contrário. A extrema direita xenófoba europeia recebe um forte apoio do lado de lá do Atlântico.  Não se trata, como muito bem refere o Miguel, no seu comentário ao post do Pedro Viana, de aplaudir o fim da democracia representativa, porque não é de todo isso que aconteceu. Trump ganhou e ganhou com uma votação disputada taco a taco. Numa América na qual os movimentos sociais -por força da fragilidade do estado Social - são fortíssimos, os mais fortes a nível global. Numa América que é provavelmente o país em que a parte do poder detido pela democracia participativa é maior à escala global. Mas numa América na qual, como denunciava Chomsky no seu último livro, a falta de estruturas partidárias ou sindicais activas em termos nacionais, permite a atomização desses movimentos e o seu sistemático isolamento e contenção.

5 comentários:

Miguel Madeira disse...

"Vamos ver se Trump resiste à pressão dos neocons - seus adversários, é verdade - para implodir o incipiente sistema social americano, para instalar as ideias de Adam Smith em todo o seu esplendor."

Os neocons não são liberais económicos (o "neo" está lá por alguma razão) - eles são contra a Great Society do Johnson mas a favor do New Deal do Roosevelt; entre as várias variantes do conservadorismo norte-americano, os "neos" são os que são mais a favor do "estado social", defendendo apenas que ele deve ser alterado para incentivar a família tradicional em vez de (como os neocons alegam) incentivar o divórcio e as famílias monoparentais.

Compara-se, pegando nas primárias republicanas, Marco Rubio (apoiado pelos neoconservadores) com Ted Cruz (que era mais um conservador sem prefixo) - o discurso de desmantelar o estado social vinha muito mais do segundo.

Pedro Viana disse...

Caro José,

Heinberg apenas se limitou a constatar alguns aspectos potencialmente positivos da vitória de Trump, tal como alguns dos mais negativos. Não vamos a lado nenhum pintando o mundo a preto e branco. Aliás, é exactamente essa atitude que Trump tem estimulado, e que vem no seguimento de décadas de polarização política (artificial) crescente, que muitas das vezes mais não serviu do que para evitar discutir questões efectivamente mais relevantes para maioria da população dos EUA. Um dos exemplos mais óbvios nos EUA é a chamada “guerra cultural”, que durante décadas serviu aos dois partidos dominantes, e às elites que os controlam (cada vez menos), para evitar falar das divisões de classe nos EUA, e no modo como se foram agravando durante essas décadas.

Quanto ao “lado bom”, é inquestionável que Clinton é considerada um “falcão” em termos de política externa, tendo-se rodeado duma equipa onde pontuavam vários conhecidos neo-conservadores, russófobos, partidários duma linha agressiva perante a política externa russa. O que poderia levar a uma situação de conflito, inclusivé directo, vide situação na Síria, entre as duas superpotências nucleares no planeta. Não me parece que seja algo de memorizar. Quanto a Israel, apesar de ambos serem seus apoiantes incondicionais, o simples facto de Trump ter (aparentemente) tendências mais isolacionistas faz com que seja mais perigoso para a política israelita. Ou seja, estará à partida menos disposto a contribuir com dinheiro, material ou apoiar militarmente qualquer aventura israelita. Ainda, o José não menciona a vertente económica. Clinton é uma neo-liberal. Ardente defensora dos tratados de comércio livre, em grande parte responsáveis pela destruição social nos EUA e Europa que hoje alimentam personagens como Trump. Este é (aparentemente) completamente oposto a tal tipo de tratados, sendo que devido a isso o TTIP está morto, o TPP igualmente porque não será enviado para ratificação no congresso, e é possível que o NAFTA venha ser pelo menos renegociado. Finalmente, a questão do neoliberalismo no partido Democrata. Acho que percebeu, só pode ter percebido o que Heinberg pretendeu dizer. Basta olhar para o que aconteceu no Reino Unido, com a reconfiguração do Partido Trabalhista na sequência da derrota nas últimas eleições gerais. Onde estaria Corbyn se Miliband se tivesse tornado primeiro-ministro? O que será preferível; Corbyn na oposição ou Miliband no governo? Eu não tenho qualquer dúvida em preferir a 1a situação (mas também é verdade que não vivo no Reino Unido…).

Quanto ao “lado mau”, é verdade que Heinberg não menciona o “Obamacare”. Não acho que tal seja motivo para crítica tão áspera ao seu texto. Até porque o Obamacare não é nenhum mar de rosas, e até pode ser defendido que a sua existência é um obstáculo a que apareça um maioria em favor dum sistema público de saúde, como Sanders defende. Já não é verdade que Heinberg ignora o efeito duma presidência Trump sobre minorias (o que inclui imigrantes e muçulmanos). Acaba a descrever o lado mau com (…) Estes serão tempos terríveis para mulheres e minorias.(…)

No texto de Heinberg não leio de modo algum qualquer tipo de optimismo relativamente à vitória de Trump, ou relativamente ao futuro. O que vejo nesse texto é optimismo, ou crença, na capacidade para as pessoas, em comunidade, conseguirem melhorar as suas vidas, e arranjar soluções para os seus problemas, incluindo os muitos que a vitória de Trump irá criar. A acção colectiva não começa, nem acaba, nos instrumentos do Estado. E quanto menos destes depender mais resistente será aos choques políticos, sociais e económicos que nos esperam.

Abraço,

Pedro

José Guinote disse...

Meu caro Miguel. Agradeço os teus comentários sobre a distinção entre os neoliberais e os neoconservadores na América. Se recuarmos aos anos sessenta do século passado a diferença que tu referes julgo fazer todo o sentido. No entanto, ela foi perdendo relevância com o passar dos tempos. Julgo que faz todo o sentido defender, hoje em dia, que os neoconservadores conjugadamente com os neoliberais, mas com o predomínio politico dos primeiros, estão a modelar uma nova forma social na América que se caracteriza por uma radical des-democratização da sociedade. Os mandatos de Obama, por força da perda do controlo politico das duas Câmaras do Congresso, não conseguiram inverter esta tendência, pese embora algumas importantes iniciativas. Investigadoras como Wendy Brown ou Lisa Brawley refectiram sobre essa mudança, tendo concluído que o neoconservadorismo sempre obscureceu a importância do neoliberalismo nos EU. Apesar do famoso Consenso de Washington ter sido resultado da adopção pelos republicanos e democratas do conjunto central de ideais neoliberais, que foi depois adoptado na Europa pelos partidos do centro direita e pelos partidos socialistas e social-democatas, nos Estados Unidos a posição dos neoconservadores aproximou-se mais das posições da direita mais radical e não apenas por força das posições hiper conservadoras sobre a família. A verdadeira razão para essa aproximação radica na posição que defendem relativamente à politica externa e à defesa dos interesses americanos à escala global.
Brown denunciava nos ínicios do século a crescente importância do neoconservadorismo, atribuindo essa importância ao facto de estar a cavalgar a profunda desvalorização das instituições democráticas, acompanhada pela imposição da figura do cidadão empreendedor e do Estado como uma firma. Neste contexto o estado social como o conhecemos passa a ser uma vaga recordação de um tempo longínquo. O sucesso ou insucesso de cada um, a forma como lida com odesemprego, a velhice ou a doença, é uma questão que passa para o domínio da responsabilidade individual, não tendo o estado nada a ver com isso. Trata-se como defendem ambas as investigadoras da mais radical despolitização da desigualdade estrutural, que é ao mesmo tempo acompanhada da defesa do reforço do poder autoritário do Estado. Os Neoconservadores, que defenderam desde sempre uma posição belicista que esteve, por exemplo, na origem da intervenção no Iraque após a eleição de Obama perderam alguma influência. Julgo que a identificação feita no texto de Heinberg entre Clinton e uma eventual guerra com a Rússia deve - se ao facto de um destacado neocon - Robert Kagan - ter manifestado o seu apoio à candidatura da democrata. Kagan entendia que Clinton era muito mais próxima das posições dos neoconservadores do que Obama - nunca terá admitido que Trump ganharia - e que com ela seria possível endurecer a posição de apoio aos países vizinhos da Rússia, ou em conflito com eles, caso da Ucrânia. Não tenho dúvidas que Trump vai estabelecer excelentes relações com esta gente e que não irá virar as costas aos inimigos de Putin, pese embora as boas relações que tão glosadas tem sido ao longo dos últimos meses.
Um abraço
Guinote

Pedro Viana disse...

Caro José,

Não era apenas Kagan. Leia por exemplo (Julho 2016):

theintercept.com/2016/07/25/robert-kagan-and-other-neocons-back-hillary-clinton/

Abraço,

Pedro

José Guinote disse...

Meu caro Pedro Viana, referi o Kagan porque é representativo, entre eles. Também li esse texto. Mas os neoconservadores andam há muito incomodados com a falta de uma nova cruzada que permita expandir a fé e os negócios das armas. Pensem eles o que pensarem e digam o que disserem não acho que tivessem condições para estimular um conflito com a Rússia, caso Clinton tivesse ganho.
Acho que o condicionamento dos democratas faz-se pela esquerda e no caso de Clinton seria Sanders o principal condicionamento. Como escrevi aqui no Vias, com Sanders como candidato Trump teria sido claramente derrotado. Não esqueça, meu caro Pedro, que a abstenção foi maior no campo democrata e favoreceu Trump. Muita dela desiludida pela escolha dos democratas.