12/09/12

Da "Grande Transformação" de Karl Polanyi à reiteração de uma "reivindicação razoável" e unitária para os dias que correm


A publicação pelas Edições 70, na justamente prestigiada colecção "História e Sociedade" dirigida por Diogo Ramada Curto, de uma minha tradução de A Grande Transformção. As Origens Políticas e Económicas do Nosso Tempo de Karl Polanyi é para mim motivo de satisfação, sobretudo porque, tal como alguns outros, entre os quais é justo destacar vários ladrões de bicicletas, por várias vezes, ao longo dos últimos dez ou quinze anos, me esforcei por chamar a atenção para a importância histórica e política da obra e para as razões que recomendavam torná-la mais acessível na região portuguesa.
Aproveitando a ocasião para agradecer ao José Maria Castro Caldas o apoio que me deu generosamente sempre que o confrontei com alguma dificuldade surgida ao longo da minha tarefa de tradutor (agradecimento que, de facto, constava de uma nota prévia do tradutor que, infelizmente, por lapso editorial, não chegou a ser incluída no volume agora posto a circular), gostaria de levantar aqui uma questão politicamente decisiva, que insiste, digamos assim, ao dobrar da esquina da tese central do ensaio de Karl Polanyi.

Pois bem, como se sabe, segundo Polanyi, a novidade e a excepção históricas do capitalismo remetem para a autonomização, ou "desincrustação", "desincorporação", da economia que deixa de ser governada ou de se integrar na arquitectónica institucional e política da sociedade para se assumir como instância de direcção ou regulação de si própria. Ora, esta emancipação da economia só é possível através da subordinação das outras esferas e finalidades da vida social à direcção hierárquica da economia como instituição central. A economia não passa a ser regulada pelo mercado - ninguém mais do que Polanyi insiste no carácter ideológico ou utópico do mercado auto-regulado: é a sua direcção que tendencialmente se transforma na direcção política do governo e das instituições da sociedade. Assim, poderíamos dizer — mais explicitamente do que o faz o próprio autor de A Grande Transformação — que a desincrustação da economia acarreta a regulação política do conjunto da vida social pelas instâncias governantes da actividade económica. A "infraestrutura" continua a ser institucional e a regulação institucional continua a ser política, mas é a nova economia que reivindica o lugar de instituição central e as suas prerrogativas governantes.

É por isso que a reincrustação ou reincorporação da economia como meio e produção dos meios necessários ou, antes, implicados pelos fins e valores resultantes da deliberação e decisão dos cidadãos organizados de uma sociedade democrática — ou, se se quiser, autónoma —, quer dizer, a redefinição do lugar da economia na arquitectura de uma sociedade de iguais, não pode, pelo menos depois da "grande transformação" estudada por Polanyi, deixar de começar pela democratização das relações de poder politicamente decisivas de que ela é lugar.

Com efeito, na medida em que a economia é a instância dominante ou o campo de relações de poder que decide do governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar pela sua democratização. Esta democratização da economia tem vários níveis, em cuja consideração detalhada não vou aqui entrar, mas é indispensável esclarecer que implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica.

Como escrevi há tempos noutro lugar: "Trata-se, na realidade, de um ponto de importância capital, uma vez que, embora não saibamos talvez o que seria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político, pois boa parte deste é hoje exercido na esfera económica, e, mais ainda, a componente "direcção da economia" tende a primar cada vez mais no governo efectivo da sociedade sobre a parte que cabe ao aparelho de Estado propriamente dito". Assim, retomando noutros termos uma tese fundamental do João Bernardo,"deveríamos falar não tanto do poder político e do poder económico da oligarquia governante, como de um poder político oligárquico que se exerce ora sob a forma da organização hierárquica da economia, ora sob a forma de controle dos aparelhos do Estado".

A regulação democrática da actividade económica exige, não o "Estado Estratego" de que fala um economista como João Rodrigues, mas bem mais do que isso o tipo de "reivindicação razoável" que, há um pouco mais de dois anos, ilustrei nos seguintes termos: "A resposta democrática à precariedade, à expropriação e à subordinação hierárquica do trabalho e do conjunto da actividade económica parece, em todo o caso, bastante simples, e pode traduzir-se numa reivindicação razoável, que não pressupõe descobertas científicas novas no campo da economia, da sociedade ou da história, não depende de soluções tecnológicas milagrosas, não implica a construção de direcções políticas qualificadas, nem a assunção de competências extraordinárias por agentes privilegiados e profissionais do governo dos outros. Bastaria que, em contrapartida de um determinado montante de trabalho - estabelecido  pelo poder democrático igualitariamente exercido pelos cidadãos -, fosse garantido a todos um rendimento igualitário e condições de igualdade perante o mercado. Precise-se somente que esta política de igualização dos rendimentos não poderia deixar de ser acompanhada da democratização das condições de exercício da actividade económica e da divisão (política) do trabalho em vigor - consequência óbvia da transformação democrática da actual divisão hierárquica do trabalho político.
Tal seria o resultado da adopção de uma proposta do tipo da reiteradamente apresentada nesta matéria por Castoriadis, em termos que poderiam unir numa mesma plataforma tanto os precários rebeldes como os restantes trabalhadores cada vez mais precarizados. E poderia acrescentar-se que essa plataforma seria também uma via de saída para a crise global que a ordem estabelecida não para de reproduzir e agravar a todos os níveis e à escala planetária".

No fundo, é da prioridade da democracia e da política sobre a economia que se trata. Como escreve Castoriadis (Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V, Seuil, Paris, 1997): "Devemos dizê-lo mais claramente ainda: o preço a pagar pela liberdade é a destruição do económico como valor central e, de facto, único […] abolindo o papel monstruoso da economia como fim e voltando a pô-la no seu lugar adequado, de simples meio da vida humana. Independentemente de muitas outras considerações […], é nesta perspectiva, e como momento desta transformação de valores, que a igualdade dos salários e dos rendimentos surge como um aspecto essencial".

Adenda & Emenda: 1. O Pedro Bernardo — das Edições 70 — chama-me a atenção para o facto de o agradecimento ao José M. Castro Caldas não ter sido, afinal, omitido. Aparece, com efeito, na página 117 da obra, em nota de pé de página — e acontece que eu esperava encontrá-lo como nota à parte, destacada, ou de página inteira. Aqui fica, pois, a rectificação. 2. O Diogo Ramada Curto e, de novo, sempre atento, o Pedro Bernardo pedem-me também que rectifique outro lapso, mais grave, e no qual eu incorri pela precipitação carcaterística que preside à redacção/publicação de um post. Na realidade, a colecção em que aparece a obra de Polanyi é dirigida, não só pelo Diogo Ramada Curto, mas também, e com iguais responsabilidades, por Nuno Domingos e por Miguel Bandeira Jerónimo. Rectificado o erro, aos dois últimos deixo aqui a expressão da minha simpatia e as minhas mais sinceras desculpas.

2 comentários:

Anónimo disse...

O que existe de comum e é partilhado no pensamento e acção teórica de Polany, Castoriadis,Adorno/Horkheimer, Ivan Illitch, Lukäcs, Ellul, entre outros? Um dispositivo insofismável, claro e transparente pela autonomia política e social através da critica multimoda do capitalismo. No caso de Castoriadis, a crítica do capitalismo prolonga/envolve a crítica do sistema burocrático e do totalitarismo.
A autonomia define-se/ projecta uma guerra histórica, aponta Castoriadis num texto farol de finais de 1977, a sinalizar a mutação do seu pensamento. Recorda,de início, que a existência do Estado é inseparável da existência da escravatura, " dizia Marx com razão ", sublinha. Seguidamente indica: " O socialismo significou sempre a supressão da exploração e da opressão, a eliminação da dominação de qualquer grupo social particular, a destruição das instituições ( económicas, políticas, culturais) que são instrumentos dessas relações de dominação. Mas, indica com perspicácia," há uma guerra histórica, iniciada pelo demos grego e pelos primeiros filósofos da Jónia, que conhece prolongados eclipses, que se reanima periodicamente, e que é no nosso período histórico, retomada pelas secções pariseenses de 1792 e 1793, pelos operários ingleses que fundam as primeiras unions, pela Comuna de Paris, pelos operários e pelos intelectuais de Budapeste. Guerra contra a subordinação a um grupo dominante, contra os mitos, contra todas as ideias simplesmente já feitas, contra a instituição estabelecida da sociedade enquanto instituição da heteronomia. Enquanto a sociedade continuar dividida assimétrica e antagonicamente esta guerra não acabará. Cabe a cada um escolher o seu campo ". A tradução do livro de Polany, que o MS. Pereira tinha preconizado no Vias logo de início, deve alargar-se, pois,a outros volumes do autor, os Ensaios,por exemplo, que contem textos indispensáveis sobre o advento do nazismo e do austro-fascismo percursor.Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Salut, Niet.
Boa sugestão final a tua. Não sei com que resultados, mas já apresentei aqui e ali a proposta de tradução e publicação de alguns ensaios escolhidos de Karl Polanyi, cuja edição se torna ainda mais oportuna, dado o acesso facilitado pelo lançamento da tradução da sua obra principal.

Bom vento.

msp