19/09/12

Sobre a blasfémia da revista Charlie Hebdo

Quando foi informado de que, na sequência da fatwa de Khomeiny, tinha a cabeça a prémio por se ter atrevido à apostasia dos Versículos Satânicos, Salman Rushdie comentou que só lamentava não ter feito pior ("Gostava de ter sido mais crítico").

Mas a atitude dos nossos governantes liberais é outra. O governo francês declara que publicar caricaturas de Mafoma, depois dos protestos e acções de vindicta violenta a que deu lugar o filme A Inocência dos Muçulmanos, é uma "provocação". Pelo seu lado, Obama afirma-se estupefacto e declara que considera com "reservas" as intenções da revista Charlie Hebdo ao publicar as caricaturas. Um passo — ou algumas semanas mais de protestos dos "muçulmanos piedosos" ofendidos — e é de recear que se intensifiquem os projectos de limitar a liberdade de expressão na UE, nos EUA e nalguns outros países que dela ainda gozam com mais extensão, em matéria religiosa, a pretexto de imperativos de segurança (inter)nacional e de respeito pelas identidades culturais.

Em posts anteriores — aqui e aqui — já deixei dito o que me parece sobre o fundo da questão: não podemos censurar a blasfémia sem mutilar mortalmente a liberdade de expressão e o livre-exame, sem criminalizar o próprio projecto da autonomia democrática e os direitos que nos instituem, não como fiéis ou súbditos, mas como cidadãos. Tendo-o presente, deixo de novo a palavra a Rushdie, para subscrever também o seu ponto de vista, reiterando o que já escrevi sobre A Inocência dos Muçulmanos: "Uma das dificuldades de defender a liberdade de expressão é que muitas vezes temos de a defender para gente que, em última análise, achamos ofensiva, desagradável e repugnante".

Quanto à comoção causada pela "blasfémia" de Charlie Hebdo, só prova que, quanto mais pressentem a tentação de aquiescerem com as suas (des)razões que os nossos governantes liberais alimentam, mais decididos se mostram os fanáticos a ajudá-los à restrição de liberdades sem as quais a dominação oligárquica, também nas nossas regiões, se sentiria mais à vontade, mais reconfortada nos desígnios de reabsolutização do poder e de redução dos cidadãos a súbditos ou fiéis que boa parte dos seus sectores de vanguarda de novo tendem a acarinhar.




5 comentários:

joão viegas disse...

Caro Miguel,

Um ponto importante, factual, que a noticia que v. cita na imprensa espanhola não repercute :

Que eu visse, pelo menos em França, o primeiro ministro e julgo que também o Fabius, lamentaram a provocação, mas fizeram questão de sublinhar que a França é um Estado de direito onde é protegida a liberdade de expressão (pelo que não cabe ao governo mas apenas aos tribunais sancionar excessos se for caso disso).

Não morro de amores pelo governo actual, mas acho importante ser rigoroso.

E também acho preocupante que esta parte da noticia tenha ficado de fora no artigo citado.

Faz toda a diferença quanto a mim : a liberdade de expressão não impede que se critique um discurso, ou uma publicação, contando que esteja claro, como aparentemente esta, que a critica não se socorre de mais nada para além da voz da razão.

Boas

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
agradeço o seu contributo e esclarecimento. Mas creio que nada tenho a emendar na minha leitura. O que V. diz é verdade, mas é verdade também que a "tentação" a que me refiro (atenuada embora pela reafirmação dos direitos constitucionais) tem um sintoma inequívoco no uso do termo "provocação". É mais fácil preparar o terreno para a repressão de futuras "provocações" do que declarar que se pretende amordaçar a liberdade de expressão…
O problema, quanto a mim, põe-se nos termos seguintes: perante as reacções e as acções de vindicta violenta que reclamam a criminalização das blasfémia e a adopção de medidas de censura religiosa pelo poder temporal, a única resposta democraticamente válida é dizer que exigimos a garantia de que os jornais e outros meios de comunicação continuarão a publicar sem restrições as caricaturas, artigos satíricos, críticas filosóficas ou políticas que entenderem, tenham por alvo o islão ou outros credos. Qualquer outra atitude é encorajar o fanatismo e os princípios dos censores.

Seja como for, creio que, quanto ao fundo da questão, estamos de acordo. Não lhe parece?

Caloroso abraço

msp

pvnam disse...

-> Não faz sentido andar a perder tempo com pessoal que não se preocupa em construir uma SOCIEDADE SUSTENTÁVEL (média de 2.1 filhos por mulher)... que critica a repressão dos Direitos das mulheres e em simultâneo, para cúmulo (!!!), defendem que se deve aproveitar a boa produção demográfica proveniente de determinados países [aonde essa 'boa produção' foi proporcionada precisamente pela repressão dos Direitos das mulheres] para resolver o deficit demográfico na Europa!
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-> De década em década numa alegre decadência 'kosovariana'... não obrigado!
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SEPARATISMO-50-50!

Miguel Serras Pereira disse...

Um tanto afascistado, parece-me, o seu comentário, pvnam. Mas, de tão confuso, dele não virá mal maior ao mundo. Mas pense melhor no assunto, que será excelente para si e talvez benéfico também para os outros…

joão viegas disse...

Caro Miguel,

Estamos completamente de acordo no essencial, tanto quanto percebo.

A censura não se esgota na proibição legal, mas a questão da autocensura é sempre melindrosa, uma vez que é sempre possivel imaginar situações em que é oportuno, por razões objectivas a que deveriamos todos subscrever, abster-se de falar ou de caricaturar.

Não digo que seja o caso aqui (embora tenha duvidas). Digo apenas que "autocensura" ha sempre e não vejo como poderia deixar de haver. Pensar antes de falar é ja, do ponto de vista analitico, uma forma de autocensura.

No caso do Charlie Hebdo, confesso que não sei muito bem o que pensar. Um argumento que me parece convincente é dizer-se que, neste caso particular, é um bocado hipocrita, e politicamente problematico, defender que as reacções arabes representam uma ameaça séria para a liberdade de expressão, que justifique que se saia para rua defendê-la. Portanto não me parece despiciendo dizer-se que as caricaturas estão a dar às reacções que criticam uma importância e uma dimensão que elas não têm e, que acabam por ser um tiro no pé (a não ser, claro, a nivel comercial). Ha aqui um circulo vicioso e uma aliança tacita entre posições fracas : "preciso do teu protesto para fazer ouvir a minha reivindicação". A liberdade de expressão não devia ter de se socorrer de meios como esse.

Mas admito que, se a liberdade de expressão estivesse sériamente em causa (mais uma vez, não me parece ser o caso, pelo menos em França, ninguém procurou proibir o Charlie Hebdo ou defendeu que devia ter sido proibido de publicar, apenas se lamentou a linha escolhida, não tanto em razão do conteudo, como em razão do momento), então seria plenamente justificado, e importante, combater em sua defesa.

A minha (modesta) opinião numa matéria dificil e na qual julgo que a hesitação é natural.

Abraços a todos