11/01/13

A Dívida

Não será coincidência que os famosos 4 mil milhões de euros por ano que o actual (des)governo do Estado português quer cortar no montante que re-distribui pela sociedade, sob a forma de serviços públicos, seja muito semelhante ao valor que ao Estado português vai ser exigido para pagamento da sua dívida, em resultado da rectificação (com o apoio do PS) pelo Parlamento da República Portuguesa do Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (vulgo "pacto orçamental"). Esta ligação deve ser constantemente realçada, impondo a discussão da real necessidade de pagar essa dívida (ou qualquer outra) como elemento central de qualquer abordagem à questão que nos querem impor.

É por isso muito importante o trabalho que tem vindo a ser efectuado no seio da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida, cujo primeiro Encontro Nacional terá lugar no próximo dia 19 de Janeiro.


Um dos oradores convidados é Nick Dearden, membro da Jubilee Debt Campaign, que defende a anulação, pura e simples, da dívida (em particular no que respeita aos Estados com menos recursos à sua disposição). Esta ideia tem também sido defendida por David Graeber, um dos organizadores originais da ocupação de Zuccotti Park em Nova Iorque que deu origem ao movimento Ocuppy. David Graeber defende o cancelamento total de toda a dívida (ler o seu artigo intitulado "After the Jubilee" no número 3 da revista Tidal), algo que já teve lugar várias vezes ao longo da história humana, como amplamente documentado no seu livro Debt: The First 5000 Years (ver também este artigo). Este livro tem tido um forte impacto nas discussões sobre a melhor estratégia a seguir perante a ascendência, um pouco por todo o mundo, da servitude que decorre da dívida. Revisões bastante extensas podem ser encontradas aqui, aqui e aqui. Dum ponto de vista mais político, o livro também mereceu a atenção de alguns colectivos, como o libcom: I e II.

Um texto de David Graeber, intitulado "The Greek debt crisis in almost unimaginably long-term historical perspective", que antecipa os temas que posteriormente iria abordar no livro mencionado pode ser encontrado no livro Revolt and Crisis in Greece, cuja leitura recomendo.

Um dos resultados mais óbvios do trabalho de pesquisa desenvolvido por David Graeaber é a constatação de que o Capitalismo é apenas o último numa linhagem de sistemas de dominação através do qual uma oligarquia explora, extraindo uma renda, as classes submissas. A dívida, mesmo que sem pagamento associado de juros, seria uma das formas mais antigas, senão mesmo a mais antiga, de submissão. Aliás, uma das associações mais interessantes que David Graeber faz é entre escravatura e dívida. O primeiro conceito teria aparecido em virtude da necessidade de pagar dívidas, tendo de início sido aplicado no interior da sociedade em causa, tornando-se escravo o próprio devedor ou familiares, e depois levado ao aparecimento da guerra (em parte) como forma de angariar escravos e espólio que podiam ser utilizados para aliviar de forma generalizada as dívidas no interior da sociedade invasora, diminuindo as tensões sociais no seu interior.

O que me parece cada vez mais claro é que a generalização da dívida, e obviamente das instituições necessárias à sua promoção e gestão, é a resposta da oligarquia quer à diminuição da mais-valia relativa obtida directamente através da exploração do factor trabalho (como resultado da competição crescente decorrente da globalização) quer à resistência das classes oprimidas a uma diminuição do seu rendimento absoluto (medido em termos de salários e serviços públicos). Isso é patente no facto da parte dos lucros (mais-valia) totais que cabe ao sector financeiro, a nível global, ter vindo a aumentar nas últimas décadas. O juro da dívida não é mais do que uma renda que efectivamente, mesmo que de modo indirecto, aumenta a mais-valia extraída da produção de bens tangíveis. Ou seja, ao nível macro, não existe realmente nenhum confronto no seio das classes dominantes. Estas apenas alteraram a sua estratégia de acumulação, apostando cada vez mais na dívida. Em vez de investirem em novos meios de produção, parte dos lucros foi investido na extracção duma renda por via do juro.

Resulta daqui que a destruição do mito da impossibilidade do não-pagamento da dívida é uma via estratégica óbvia para a desestabilização do sistema Capitalista. Sendo assim essenciais movimentos como o Strike Debt!.

1 comentários:

Anónimo disse...

Então, a IAC agora é pela suspensão do pagamento enquanto audita ou continua com a linha da renegociação(ou seja, continuar a pagar uma dívida, da qual desconhece os detalhes em que foi contraída, sendo a auditoria uma natural consequência do desconhecimento)?
O line-up parece interessante, mas custa-me imenso levar a sério quem se pauta pelo contraditório e apresenta uma cara séria quando o faz, e insiste em continuar a fazer cara séria em quanto continua a fazer do contraditório o seu modus operandis.
As bocas aqui mandadas não têm como intenção desmoralizar o autor do post, muito pelo contrário.