21/01/13

A moeda que vale um milhão de milhões de dólares



Discute-se por estes dias nos EUA a possibilidade do governo emitir uma ou mais moedas (em platina) com um valor facial de um milhão de milhões de dólares cada uma. De seguida depositaria essa(s) moeda(s) na Reserva Federal, na prática obrigando esta a pagar qualquer credor do governo dos EUA até ao montante assim depositado. Esta via pouco ortodoxa resulta do facto de apenas a Reserva Federal ter o direito de criar dólares sob a forma de notas ou bits (ie. electronicamente), sobrando para o governo dos EUA apenas a capacidade de emissão de dinheiro sob a forma de moedas (em montante regulado pelo Congresso dos EUA, excepto no que respeita à emissão de moedas de platina, que habitualmente possuem carácter apenas comemorativo). O governo dos EUA também pode emitir títulos de dívida, mas na prática apenas até um certo montante, regulado pelo Congresso dos EUA. Como o governo dos EUA possui um déficit operacional, a sua dívida tem aumentado continuamente, originando complexas batalhas políticas no Congresso, que tem uma das câmara (a dos Representantes) dominada pelos eleitos pelo Partido Republicano, sempre que o montante máximo efectivo de endividamento (debt ceiling) autorizado ao governo precisa de ser aumentado (o que terá de acontecer daqui a poucos meses).

O que mais interessa salientar nesta situação é o contraste entre a capacidade ilimitada de emissão de dinheiro por parte da Reserva Federal, entidade parcialmente controlada por representantes dos bancos (privados) com sede nos EUA, e os limites existentes a essa emissão por parte do governo dos EUA, em princípio representante do interesse público. No seio da União Europeia (UE), se por um lado o Banco Central Europeu (BCE) é formalmente controlado por representantes dos governos dos Estados da UE que participam na união monetária por via do euro, por outro, segundo os tratados que constituem esta união, não só não pode comprar directamente dívida emitida por esses governos (algo que a Reserva Federal pode relativamente a dívida emitida pelo governo dos EUA) como não admite qualquer possibilidade de emissão de moeda legal (legal tender) por parte desses governos. Portanto, numa situação em que o BCE se torne, de facto, representante dos interesses do sistema bancário (privado), como na verdade sempre aconteceu desde a sua constituição, o controlo efectivo do sistema financeiro e económico, como resultado da capacidade de emissão de moeda (directamente, ou sobre a forma de dívida), acaba por estar mais firmemente nas mãos da oligarquia europeia do que no caso dos EUA.

O que está em causa é relembrado de modo muito simples no artigo referido no início deste post: 

"(...)Lincoln was assassinated, however and,the greenback program was quickly discontinued. Repeated popular attempts to revive it failed. In 1872, according to Lynn Wheeler in Triumphant Plutocracy: The Story of American Public Life from 1870 to 1920, New York bankers sent a letter to every bank in the United States, urging them to fund newspapers that opposed government-issued money. The letter read in part:

"Dear Sir: It is advisable to do all in your power to sustain such prominent daily and weekly newspapers . . . as will oppose the issuing of greenback paper money, and that you also withhold patronage or favors from all applicants who are not willing to oppose the Government issue of money. Let the Government issue the coin and the banks issue the paper money of the country. . . . [T]o restore to circulation the Government issue of money, will be to provide the people with money, and will therefore seriously affect your individual profit as bankers and lenders."

Bank-created money (which now includes electronic money) could be rented at a profit to the people. The “people’s money” was limited to coin, which today composes less than one ten-thousandth of M3, the broadest measure of the money supply.

Lincoln’s assassination and the abandonment of debt-free greenbacks effectively marked the exchange of one type of slavery (race-based) for another (wage- and debt-based). As a result, the American government and American people are so heavily mired in debt today that only a radical overhaul of the monetary system can free us."

4 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Pedro,

«o Banco Central Europeu (BCE) é formalmente controlado por representantes dos governos dos Estados da UE que participam na união monetária por via do euro».

1- formalmente são membros dos bancos centrais nacionais que vão para a direcção do BCE, não "enviados" dos governos. Os bancos centrais detêm muito mais poder do que os governos. o que me leva ao ponto seguinte:

2- creio que quanto mais nos preocupamos com os governos menos falamos e pensamos à esquerda nas instituições de real organização e de real tomada de decisões das classes dominantes. Não nego o papel dos governos mas ele é claramente secundário (mais ainda no caso de países como Portugal) perante instâncias como o BCE, o BIS, o FMI, etc.

3 - Por outro lado, mesmo quando falamos dos estados nacionais mais poderosos (Brasil, China, EUA), temos sempre de dar conta do facto de que eles são acima de tudo empresas que organizam aspectos da organização das classes dominantes. Creio que as esperanças ingénuas no facto de que o governo A ou B não representariam os "interesses dos portugueses", dos chineses, seja do que for, só contribui para que se amarrem as lutas sociais à espera messiânica por um governo "competente", bem gerido e preocupado com o bem comum...

Estas três notas, nomeadamente a última, derivam da leitura do teu texto e são mais para lembrar o que me parecem ser algumas coordenadas de discussão sobre a esfera política na actualidade.

Um abraço,
João

Pedro Viana disse...

Olá João,

Tens razão quanto ao ponto 1, devia ter sido um pouco mais rigoroso. De qualquer modo, julgo que quase todos os bancos centrais europeus são controlados por pessoas nomeadas pelos governos, apesar de formalmente depois não lhes serem subordinadas. Alguns bancos centrais, como o alemão, também incluem no seu executivo membros nomeados pelo poder legislativo. Mas julgo que nenhum possui membros nomeados pelo sistema bancário privado, como nos EUA.

Quanto ao ponto 2, o post pretende exactamente demonstrar quanto algo tão fundamental como a emissão de moeda (ou dívida) está directa ou indirectamente nas mãos de interesses privados, esvaziando o poder dos governos dos Estados ditos soberanos (donde, potencialmente, também dos cidadãos que os pretensamente "controlam através do voto").

Quanto ao ponto 3, suponho que terei contigo a mesma discordância com o Miguel Serras Pereira quanto ao significado de conceitos como Governo e Estado. Ainda estou para ser convencido que houvesse uma ruptura radical nas funções exercidas por um governo territorial (vulgo Estado), caso os princípios do autonomismo ou concelhismo passassem a ser partilhados pela esmagadora maioria da população e esta os pudesse implementar. Não tenho dúvidas que a governação (democrática) seria então radicalmente diferente da actual, mas suspeito que tal já não se passaria, como antes disse, com as funções dessa governação (ex. muito provavelmente chegar-se-ia à conclusão que seria útil emitir moeda, nem que fosse apenas como meio de troca). Ou seja, não acho que devemos esperar por um governo "competente", mas acho que continua a ser útil chamar a atenção para o que um governo na posse das chamadas funções soberanas pode efectivamente fazer, em particular se fôr democraticamente construído por todos nós.

Um abraço,

Pedro

Anónimo disse...

Recomendo:

https://www.youtube.com/watch?v=3QkmLnNEvdU

Aqui tens um bocado mais da mesma entrevista:

https://www.youtube.com/watch?v=ol3mEe8TH7w

A federal reserve não é parcialmente controlada por bancos privados. É totalmente controlada por bancos privados.

E o bce segue pelo mesmo caminho, até porque tendo em conta a realidade factual, poucos ou talvez nenhum banco nacional europeu tem em conta qualquer preocupação dos governos que não seja a de beneficiar os privados.

Já existe por aí muita investigação feita acerca deste tema. Sugiro pesquisa mais aprofundada para assegurar informação mais precisa.

Bem haja

Pedro Viana disse...

Formalmente a Reserva Federal é gerida por um grupo de 7 pessoas nomeadas pelo governo dos EUA, e confirmadas pelo Senado. No entanto, o comité que na realidade controla a política monetária dos EUA também inclui, para além dessas 7 pessoas, 5 representantes dos 12 bancos regionais de carácter federal (é um sistema bastante arcano...). E estes são escolhidos pelos bancos privados. Portanto, em princípio, o governo dos EUA poderia tentar controlar a Reserva Federal através da nomeação das 7 pessoas acima mencionadas (que incluem presidente e vice-presidente da Reserva Federal). Na prática todos os membros desta nomeados pelo governo dos EUA já antes passaram pelo sistema bancário privado, sendo portanto na verdade também representantes dos interesses desse sistema. Aliás, por lei, o governo dos EUA é obrigado a assegurar que as 7 pessoas que nomeia constituem "a fair representation of the financial, agricultural, industrial, and commercial interests and geographical divisions of the country"...