21/01/13

"Ecologistas" e "defensores dos direitos dos animais" - não é a mesma coisa

É possivel que, nos próximos tempos, eu escreva mais alguma coisa sobre estes assuntos (ou talvez não, porque muito provavelmente haverá temas mais urgentes e importantes nos próximos tempos).

Mas, como preâmbulo ao que eu talvez vá escrever, vou tentar esclarecer um ponto em que por vezes me parece haver alguma confusão - "ecologista"/"ambientalista" (eu gosto mais do primeiro nome, embora o segundo esteja mais na moda) e "defensor dos direitos dos animais" (ou mesmo do "bem-estar animal") não é a mesma coisa. Inclusive, na polémica sobre o Zico, li algumas referências a "ecologistas", quando, que eu saiba, nem a Liga para a Protecção da Natureza, nem a Quercus, nem as outras associações do género se pronunciaram sobre o assunto.

Bem, e então qual é a diferença? A mim, parece-me que a grande diferença é que os "ecologistas" são "colectivistas" e os "defensores dos direitos dos animais" são "individualistas": isto é, os "ecologistas" preocupam-se com a preservação da natureza, de determinados habitats, das espécies ameaçadas, etc.; já os "defensores dos direitos dos animais" tendem a preocupar-se com o bem-estar e/ou com os "direitos" de cada animal como individuo. Em principio, um "ecologista" não terá qualquer problema com a morte de um animal que não pertença a uma espécie em perigo, coisa que muitos "defensores dos direitos dos animais" (que ao longo do post designarei como "animalistas") abominarão.

Diga-se que a posição "animalista" tem contradições lógicas que a "ecologista" não tem - é perfeitamente possivel defender a preservação dos linces enquanto espécie e aos mesmo tempo a dos coelhos enquanto espécie, etc.; afinal, a preservação das presas é condição necessária para a preservação dos predadores, e normalmente a existência de predadores não põe em perigo a existência das presas enquanto espécie. Já defender os "direitos" de cada lince individual e ao mesmo tempo de cada coelho individual levanta contradições filosóficas, já que a sobrevivência de cada lince implica o sacrifício de coelhos; os "animalistas" tentam resolver o problema argumentando que só os humanos têm que respeitar os "direitos dos animais", mas isso é expulsar a "excepcionalidade humana" pela porta da frente e voltar a metê-la em casa pela porta das traseiras.

Além disso, os "animalistas" têm que fazer uma distinção entre "animais dotados de direitos" e "outras coisas que não tem direitos", coisa que a posição "ecologista" (mais preocupada com o equilíbrio natural no seu todo) não tem fazer - essa distinção parece fácil comparando um chimpanzé com um rosmaninho, mas já é mais complicada se formos comparar uma esponja com uma amiba. P.ex., há uns tempos, o esquerda.net publicou um artigo sobre os "direitos dos animais" em que a autora, usando uma taxonomia de escola primária de meados do século passado, dizia que animais eram todos os seres que não fossem vegetais nem minerais - ficamos assim a saber que fungos e bactérias (que não são vegetais nem minerais) são "animais" (essa "definição" também implicaria considerar os protozoários como "animais", mas isso talvez seja menos disparatado, já que efectivamente há semelhanças entre protozoários e animais - por alguma razão têm lá o "zo").

Finalmente, há uma questão em que as alas mais radicais do "ecologismo" e do "animalismo" tendem, na prática, a ser opostas: a glorificação que alguns ecologistas radicais fazem das sociedades de caçadores-recolectores pré-agrárias com a apologia que, cada vez mais, os "animalistas" fazem do vegetarianismo. Em teoria essas duas posições não são contraditórias (poderíamos ter uma sociedade pré-agrária que fosse apenas recolectora, não caçadora, alimentando-se apenas de frutos silvestres) mas na prática são-no, já que objectivamente a passagem das sociedades primitivas às sociedades agrárias tornou-nos muito mais vegetarianos.

Dando um exemplo concreto, nenhum "vegan" concordaria com Edward Abbey (considerado por muitos como o inspirador do movimento ecologista radical Earth First!) quando este escreveu "The real work of men was hunting meat. The invention of agriculture was a giant step in the wrong direction, leading to serfdom, cities, and empire."

[Na prática, suspeito que muitas mais espécies animais foram extintas por agricultores quase-vegetarianos do que por caçadores carnívoros; afinal, estes últimos têm interesse em preservar as suas presas e por isso tendem a estabelecer regras comunitárias para impedir a caça ou pesca excessivas, enquanto os primeiros não têm qualquer problema em destruir os habitats selvagens para expandir as suas culturas - basta ver quem quase extinguiu o bisonte norte-americano: não foi o povo que os comia]

14 comentários:

nando disse...

A sugestão colectivistas vs. individualistas parece-me muito acertada. Os "partidos pelos animais" surgiram historicamente muito depois dos partidos ecologistas e são o espelho da ideologia dominante, cada vez aceite com mais unanimidade ("a sociedade não existe, o que existe é o indivíduo").

Finalmente, apesar de o seu artigo ter uma excelente conclusão deixo um comentário: tomemos a pesca como exemplo, e suponhamos que esta actividade existia em mercado livre e não em mercado regulado, com quotas, como acontece de facto. Apesar de os consumidores, bem como as empresas em competição também dependerem do peixe, ele poderia ser pescado em excesso e levar à destruição de dadas espécies... o que levou à utilização do sistema de quotas. (Já agora, sabe se os teóricos do mercado livre se pronunciaram sobre esta matéria?)

Anónimo disse...


A questão da excepcionalidade do ser humano parece-me obedecer em parte à mesma lógica que vedou durante décadas a igualdade de direitos entre os próprios seres humanos (branco vs. outras etnias, homem vs. mulher, com rendimentos elevados e com estudos vs. sem propriedades e analfabeto). Por outro lado, quanto ao próprio ser humano, há indivíduos que pelas suas características podem ser considerados ininputáveis ou em que a responsabilidade pelos seus atos é transferida para outros indivíduos (por exemplo, menores de idade ou crianças ou pessoas com graves perturbações mentais), sem contudo serem privados de direitos. A ideia de que só pode ter direitos quem puder ter deveres não me parece ser aplicável indiferenciadamente. Apenas dois comentários.

Miguel Madeira disse...

"Já agora, sabe se os teóricos do mercado livre se pronunciaram sobre esta matéria?"

Muitos deles são entusiastas do sistema islandês de quotas de pesca transacionáveis; curiosamente, muitas vezes são os mesmos que reclamam do "estatismo" do Protocolo de Quioto e medidas afins, que são exactamente a mesma coisa aplicado às emissões de CO2 (criando quotas de poluição transacionáveis)

Anónimo disse...

Olá Miguel!

É bom que as pessoas escrevam sobre isso mas dar informações erradas é que é um bocado chato.

A Ecologia pode englobar a proteção animal (ou direitos dos animais, como você chama).

O Ambientalismo não necessariamente. Fico com a ideia de que acha que ecologismo e ambientalismo é a mesma coisa... todo o resto está um bocado confuso.

É um tema interessante mas requer uma melhor clarificação dos conceitos e ideologias por quem escreve.

Boa Sorte!

nando disse...

MM: pelo menos em Portugal, os liberais que rejeitam o Protocolo de Quioto fazem-no por acreditarem que o aquecimento global antropogénico ainda não foi correctamente validado pelo meio académico. Já o desaparecimento de espécies por pesca demasiado intensiva é uma relaçao causa-efeito fácil de comprovar. Fico contente que ao menos admitam que o problema das pescas não possa ser resolvido em "liberdade".

Miguel Madeira disse...

"Fico com a ideia de que acha que ecologismo e ambientalismo é a mesma coisa"

A minha ideia é que o substantivo "ecologista" e o substantivo "ambientalista" são praticamente sinónimos; ou, mais exactamente, "ambientalista" significa a mesma coisa que há uns anos era deignado por "ecologista".

Imagino que a mudança de nome seja para evitar a confusão entre a posição normativa que valoriza a proteção do ambiente natural (o "ambientalismo", antes conhecido por "ecologismo") e a ciência que estuda os equilibrios naturais (a "ecologia").

Anónimo disse...

Precisamente, equilíbrio entre todas as partes da natureza incluindo a humanidade e esse equilíbrio inclui também a relação entre humanidade e animais. Ambientalistas normalmente se refere ao ambiente, sem essas partes. Daí... Ecologistas e defensores (do fim da exploração sobre) de animais podem ser a mesma coisa, sim.

O texto começa com desinformações já no titulo.

Abraços.

Anónimo disse...

que grande confusão vai nessa cabeça, miguel.. ou as visão de "escola primária de meados do século passado" sobre o que chamas "animalismo" é propositada?
já agora, era pedir muito para usares referências bibliográficas quanto te referes às posições dos "animalistas"? é que sem isso, eu digo que tu inventaste essa ideologia "animalista" anedótica na tua cabeça.

Miguel Madeira disse...

"Ecologistas e defensores (do fim da exploração sobre) de animais podem ser a mesma coisa, sim."

É possivel ser-se as duas coisas ao mesmo tempo, sim. O meu ponto é que não há uma ligação necessária entre as duas coisas.

Já que estamos a falar sobre animais, uma analogia: a categoria "aves" e a categoria "animais voadores" não são a mesma coisa, ainda que seja perfeitamente possivel pertencer simultaneamente às duas.

Anónimo disse...

esta tentativa de mostrar os "animalistas" como idiotas "de escola primária de meados do século passado" é, no mínimo, "de escola primária de meados do século passado"..
alguns esclarecimentos (já que o autor do post não fez o trabalho de casa):
- é óbvio que os "animalistas" não defendem os "direitos" dos animais em condições naturais (como a história do lince e do coelho tenta impingir). o "animalistas" defendem o fim da exploração animal. e isso não é nenhuma contradição filosófica.
- a "distinção entre "animais dotados de direitos" e "outras coisas que não tem direitos"" tem sempre que ser feita, quer se seja animalista ou não. a questão (mais geral) é "a partir de onde é que deixo de ter em conta os interesses dos outros?". há quem ponha essa fronteira nas pessoas da mesma religião, outros põem nas pessoas da mesma raça, da mesma família. em relação ao que comemos, a fronteira é variável e depende do contexto cultural, podendo incluir até a própria família. entre os "animalistas" uma fronteira muito comum é entre animais sencientes e não-sencientes, ou seja, que têm reacções fisiológicas quando expostos a situações de dor, perda, stress, etc. é uma fronteira como outra qualquer.. não percebo qual é o problema do autor do post com isto.
- actualmente a exploração animal (também designada por indústria agro-pecuária) constitui uma das maiores fontes de problemas ambientais e de saúde. ao comer porco, vaca, frango, ovos, leite, etc, há uma probabilidade muito grande de esses produtos virem de uma exploração intensiva e, desse modo, está-se a contribuir para a degradação do ambiente e da saúde humana. logo, dificilmente se pode ser "ecologista" e consumir produtos de origem animal provenientes de explorações intensivas (que são quase todos).
- há muitos "ecologistas" (aqueles que sabem do que falam, não os que se dizem ecologistas como o autor do post) que, por princípio, não se opõem ao consumo de produtos de origem animal, embora geralmente não o façam porque sabem as implicações que isso tem para o ambiente. a maneira mais eficaz e mais comum de o conseguir é o vegetarianismo.
- para concluir: cada um põe a sua fronteira onde quer (é uma questão pessoal e cultural) e come em conformidade; hoje em dia é praticamente impossível ser-se "ecologista" e não se ser vegetariano, uma vez que a esmagadora maioria dos produtos de origem animal implica consequências ambientais gravíssimas.

Miguel Serras Pereira disse...

Anónimo das 20 e 30

Pois, mas creio que se esqueceu de concluir o seu raciocínio: não decorre dele que poderemos ser ecologistas sem ser vegetarianos, contanto que nos tornemos canibais, ainda que limitando a nossa antropofagia aos vegetarianos?

É verdade que há outra via, mas insuficientemente subversiva, creio, do seu ponto de vista: a transformação das produção agro-pecuária.

O que, em contrapartida, não me parece é que a primeira via, por mais que agrade, talvez, a certos animalistas profundos, resolva a questão ecológica. Quanto à segunda, duvido que satisfaça as reivindicações do conjunto da tribo animalista.

msp

Anónimo disse...

- não me esqueci de concluir o raciocínio. essa conclusão (é perfeitamente possível ser-se ecologista e não se ter, por princípio, nada contra o consumo de produtos de origem animal) está no penúltimo parágrafo. mas numa sociedade moderna dificilmente se conseguem obter produtos de origem animal que não tenham um impacto ambiental desastroso, daí a extrema dificuldade de se ser ecologista e se consumir de produtos de origem animal.
- do mesmo modo, também se pode, por princípio, não consumir produtos de origem animal e não se ser ecologista.
- uma analogia: pode-se ser a favor dos direitos dos operários e comprar produtos made in china? sim, mas então fica-se limitado a uma percentagem ínfima desses produtos..
- manter os níveis de produção actuais da indústria agro-pecuária implica a exploração animal intensiva, com os correspondentes custos ambientais. há (pouquíssimas) explorações agro-pecuárias "animal-friendly" (em que os animais vivem em boas condições sanitárias e o transporte e o abate é realizado de modo a reduzir ao mínimo o sofrimento do animal e do grupo) e os níveis de produção são relativamente baixos. no entanto, em termos ecológicos, estas são as explorações mais sustentáveis.

(será que ninguém faz uma revisão bibliográfica antes de escrever um post?)
(não percebi a referência ao canibalismo)

Miguel Madeira disse...

« o[s] "animalistas" defendem o fim da exploração animal.»

Portanto, são contra a criação de coelhos para comer (ou apenas contra a criação intensiva?) mas não contra caçar coelhos?

[note-se que, em certas cirncustâncias, até sou capaz de me imaginar a concordar com essa posição]

"não os que se dizem ecologistas como o autor do post"

Eu por acaso até me considero "ecologista" ou "ambientalista", ou o que lhe queiramos a chamar, mas até acho que em momento algum do post me identifiquei como tal.

Anónimo disse...

"são contra a criação de coelhos para comer (ou apenas contra a criação intensiva?) mas não contra caçar coelhos?"
depende de cada um e da situação em particular. como é que ainda não percebeste isso?
há quem não consuma qualquer produto de origem animal porque acha que não é aceitável causar qualquer tipo de sofrimento a um animal. há quem ache que é aceitável consumir produtos de origem animal desde que se assegure o bem estar do animal em vida e se cumpram as melhores práticas ambientais (o que exclui imediatamente os produtos da indústria agro-pecuária moderna). há quem não consuma produtos de origem animal de exploração intensiva, por questões ambientais, mas que, por princípio, não tem nada contra o consumo desses produtos ou contra a pecuária ou a caça, desde que ecologicamente responsáveis.
a questão é "a partir de onde é que deixo de ter em conta os interesses dos outros?". a resposta de cada um, no que respeita à alimentação, depende de factores culturais e, principalmente, ambientais - que é o motor da diversidade e da evolução dos hábitos alimentares.
a tua confusão (e a de muita gente) sobre conceitos como vegetarianismo (nos seus diferentes graus e motivações) e ambientalismo vem de desconhecerem a relação entre ecologia, cultura e hábitos alimentares (nesta ordem). as adaptações das sociedades a alterações ecológicas profundas passam por mudanças culturais que reequilibram essa sociedade com o ambiente em que se integra. os hábitos alimentares são apenas uma das facetas dessas mudanças culturais. hoje em dia, a produção de bens de origem animal é, tal como a utilização dos combustíveis fósseis, completamente insustentável em termos ambientais e a única solução é reduzir-se abruptamente o consumo destes produtos. logo, alguém que se assume como ambientalista deve ter isto em conta quando escolhe o jantar, ou quando escolhe ir de carro ou de bicicleta.
se estiveres interessado em ler qualquer coisa leve sobre o assunto (o que devias ter feito ANTES de publicar o post) sugiro-te os livros de diculgação científica do Marvin Harris ou do Jarred Diamond, ou qualquer um que relacione a história da alimentação com a cultura e a geografia humana.

quanto ao comentário (cientificamente desastroso..) acerca da responsabilidade dos "agricultores quase-vegetarianos" na extinção dos grandes mamíferos, sugiro-te uma simples visita à wikipedia (espero que não seja exigir muito, já que o nível de preparação que mostras sobre os assuntos que escreves é assustadoramente baixo) onde podes ver a cronologia da sedentarização, da expansão para o continente americano, das extinções dos grandes mamíferos, etc.
quem tem curiosidade sobre as coisas e quer realmente percebê-las e debatê-las informa-se antes de escrever e não escreve um post destes.