11/05/14

Atenção à 3ª Parte do Manifesto "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" no Passa Palavra

O João Bernardo acaba de publicar no Passa Palavra a terceira parte do seu ensaio-manifesto "Sobre a Esquerda e as Esquerdas". Aqui fica a devida chamada de atenção, que este comentário que deixei no Passa Palavra, a par do debate a que as partes anteriores do texto deram lugar aqui no Vias, talvez ajude a justificar.


João,

subscrevo todas as ideias mestras desta terceira parte do teu Manifesto. As poucas observações que se seguem devem, portanto, ser lidas como propostas de desenvolvimento e explicitação de certos pontos da tua análise que creio dever sublinhar.

1. O facto de as relações pessoais estarem presentes em qualquer forma de organização política não permite reduzir a organização e muito menos a política de que ela pretende ocupar-se a relações pessoais ou "intersubjectivas". Ao mesmo tempo que a redução às relações interpessoais ou intersubjectivas da organização acaba por equivaler à tendencial recusa ou desvalorização desta última como necessariamente inautêntica ou opressiva.

2. Um outro aspecto desta deriva é que faz perder de vista que tanto a "pessoa" como as "relações pessoais" são institucionalmente configuradas, e garantidas por suportes social e historicamente instituídos. E estas instituições e suportes institucionais não são por seu turno produtos da subjectividade inter-pessoal, mas suas condições sociais e históricas (relevando da acção política).

3. O "fetichismo" que descreves tem assim por consequência escamotear a questão do poder que aquilo a que chamas — e muito bem — a "democracia revolucionária" não pode deixar de pôr sem renunciar a si própria. Ou melhor, quando não escamoteia a questão do poder, representa este como o domínio do mal por excelência, ao qual só poderíamos resistir, em nome da "cultura de si" ou da autenticidade intersubjectiva, mas sem reivindicarmos o seu exercício, necessariamente impessoal, enquanto cidadãos governantes, e não enquanto esta pessoa, e mais esta, e mais esta, membro desta ou daquela rede afinitária particular. Que se esqueça assim que a melhor garantia da liberdade subjectiva, e das relações pessoais afinitárias escolhidas por cada um, é justamente a participação de todos e de cada um, enquanto ninguém em particular, no exercício político do poder que governa as condições comuns de existência de todos e cada um — tal esquecimento é um efeito particularmente perverso do "fetichismo" que assinalas. Com efeito aproxima certas concepções e práticas da esquerda "pós-moderna" da célebre divisa de Margaret Thatcher, quando afirmava que a sociedade não existia, mas só existiam indivíduos e famílias (se dissesse "grupos afinitários", a coisa viria a dar quase no mesmo) — ao mesmo tempo que, através do exercício do poder instituído e da transformação das instituições, se esforçava, com o afinco que se sabe, por "validar" a sua ideia, através da “conversão das almas”.

Espero que estes meus sublinhados do teu Manifesto não te pareçam excessivos ou demasiado equivocados.

Abraço

miguel serras pereira

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