19/05/14

O papel histórico da abundância (por João Bernardo)

Admito que a dialéctica de Hegel seja teleológica, embora a de Fichte não. Mas a dialéctica de Marx e de Engels não o é, ou não o é obrigatoriamente. Afirmar, como Marx e Engels afirmaram, que o desenvolvimento das forças produtivas proporcionado pelo capitalismo cria as condições para o comunismo não significa colocar um fim à história, já que ambos consideravam o comunismo precisamente como o fim da pré-história da humanidade — eram as palavras deles — e a abertura de uma época histórica cheia de possibilidades.

O cerne da questão reside, na minha opinião, e é nisto que sempre tenho insistido, na noção de forças produtivas. Trata-se somente de forças produtivas materiais? Ou, definindo eu a tecnologia como a materialização de relações sociais, devem as forças produtivas ser entendidas na perspectiva das relações sociais de produção? Marx oscilou entre estas duas alternativas e Engels oscilou menos, inclinando-se para a primeira. Há em O Capital (Livro I, 4ª secção, capítulo XIV) uma nota fascinante em que Marx citou Darwin na comparação entre os órgãos naturais e os utensílios das forças produtivas. (Recordo que O Capital seria dedicado a Darwin se ele não se tivesse escusado com a desculpa de que a esposa era muito religiosa e não lhe queria ferir os sentimentos.) Seria difícil afastar mais do que naquela nota as relações sociais das forças produtivas. Aliás, o modelo darwiniano da evolução, que é de uma simplicidade brilhante, começa a falhar quando se trata de analisar os animais sociais: formigas e abelhas.

Mas entender as forças produtivas como contendo as, e sendo determinadas pelas, relações sociais de produção não significa que as forças produtivas e o nível de produção que estas permitem não sejam um factor decisivo. Toda a discussão sobre o socialismo num só país, por exemplo, uma das discussões mais letais da história do movimento operário, rodou em torno dessa questão. Quem impõe a abundância são os trabalhadores quando reivindicam maior poder de compra e são eles ainda quem impõe o aumento da produtividade quando reivindicam a redução das horas de trabalho. E esta é uma questão de relações sociais de produção e não de votos num referendo.

Será muito difícil entender o que significa abundância no contexto em que emprego a palavra ou o desentendimento resulta apenas da má vontade de quem não encontra melhores argumentos? O que digo acerca do punk-rock devia servir de esclarecimento suficiente sobre a minha concepção de abundância, que reside nos antípodas da proliferação da futilidade. O problema central é que não se trata de satisfazer uma oferta limitada. O desenvolvimento histórico cria a necessidade de novos produtos e, portanto, de nova oferta. E se for exacto que uma sociedade sem classes corresponderá a uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico — senão não valeria a pena lutar por ela — então a noção de abundância tornar-se-á ainda mais importante.

Agora, peço que invertam a ordem dos termos do que acabei de afirmar. Verão assim que tudo o que trave a abundância implica um retrocesso social. E voltamos ao problema central do socialismo num só país. Daí a minha insistência na questão. Aliás, a insistência não é minha, pois se o fosse pouco valia. A insistência é da classe trabalhadora que, como sublinho no § 21 do Manifesto sobre a esquerda e as esquerdas, prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria. Há muito quem tenha tentado convencê-la do contrário, mas sem o conseguir.

É certo que a classe trabalhadora está convencida também de outras coisas, de que deve ler a revista Caras e similares, assistir ao folhetim, ver o futebol e sei lá do que mais. Mas desde há muitos anos venho a repetir que os trabalhadores levam duas vidas, uma que cria e multiplica o capital e outra que luta contra o capital. É precisamente esta a contradição que está no centro do capitalismo e por isso Marx considerava que a classe trabalhadora, quando destruísse o capitalismo, se ultrapassaria a si mesma, destruindo-se também. Mas creio que a questão das duas vidas é mais complexa, porque as palavras e as mensagens são ambíguas e o que alguém lê na Caras, vê no folhetim ou com que se empolga no futebol não é o mesmo que afectaria outra pessoa. As duas vidas podem coexistir e articular-se num todo devido à capacidade dos trabalhadores para ruminarem em silêncio, que evoquei no § 7 daquele meu Manifesto. A crescente abstenção eleitoral é um sintoma disso e, quando vejo o que se chama esquerda, o aparente desinteresse e a apatia dos trabalhadores é para mim um dos raros factores de optimismo.

João Bernardo

1 comentários:

Libertário disse...

Continua sem explicar o que é isso do "socialismo da abundância", será uma sociedade de consumo vermelha? E essa abundância é a dos EUA, da Suécia, de França ou de Portugal? Porque nisto da "abundância" mesmo actualmente temos para todos os gostos...

O bem-estar nas sociedades humanas, e uma vida que merece ser vivida, tem a ver com o acesso ilimitado a bens de consumo?
Já agora podia descer à Terra e explicar qual seria o consumo per capita nessa sociedade de energia e proteínas...

O João Bernardo consegue passar por cima, ignorando-as, de muitos das reflexões mais interessantes do século XX seja sobre este capitalismo baseado no consumismo, seja sobre as questões ecológicas: Marcuse, Illich, Ellul, Castoriadis, Gorz, para já não falar nos anarquistas. Ou seja, assume ainda o velho marxismo arrogante e auto-suficiente que achava que havia um "socialismo científico". Voltamos aos sovietes electrificados de Lenin que nos deixou os desastres de Baku e as filas no Ikea de Moscovo!