16/06/15

David Mourão-Ferreira: 24.02.1927—16.06.1996


Estrela de David

Em memória de David Mourão-Ferreira
reconhecidamente *

Trocámos ao balcão do bar o santo e a senha
e fomo-nos os dois como um dia hei-de morrer
tu a cavalo   para onde?   eu por mar   para espanha
em busca uma vez mais do verão de trinta e seis

Dizer que desde então não te soube lembrar
mas só   já mate embora   não esquecer que esqueci

ou tentar decifrar o vento rente ao voo das aves

se é aí que nos queres experimentando o vazio


do que nos perdeu tanto talvez só por minutos

pois te deixei recado sem saber o meu nome

ou continuei em casa andavas tu na rua

perseguindo o arlequim de um teatro de sombras


Mas de que porto partes?   Em que porto me partes

e em que partes do tempo para sempre explodidas

das praças insurrectas à ressaca de te amar
de rastos no degelo de cronstadt caindo

antes de cair póstumo todo o século em peso 

contra a esquina do nada onde o pó de israel

que guerrilha semeia   ou que só desespero

porém ainda ardente de uma alegria sem véspera?


Depois nem eu sei como as britânicas bebidas

do brinde de david a valery larbaud

em royaumont irromperam para me embrigar de ti

pela voz de rivas   Mas nunca mais foi hoje


nem então   entre as árvores do parque de uma tarde

nem à luz que dispara o silêncio insepulto

desta carne que um dia não chegaste a tocar

e que me entaiparia mais fundo que o futuro


se não voltasses sempre   por foz côa ou abrantes

ao magma dos instantes cuja vaga desfralda

um manancial de estrelas   inundando a manhã

do teu ventre de estrela da manhã manancial


* Em O Mar a Bordo do Último Navio, Lisboa, Fenda, 1998

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