17/06/15

Europa. O fim de uma bela ideia?

As lideranças neoliberais da Europa concluem nos próximos dias o epitáfio que há cinco meses começaram a escrever. Este epitáfio celebra o fim da Europa enquanto ideia política construída sobre os valores da democracia política, da cooperação entre os povos e do desenvolvimento equitativo.  Este epitáfio celebra o triunfo, em todo o espaço europeu, das velhas ideias -  ressuscitadas do meio do século XVIII  - que "equipam" os seus actuais dirigentes, treinados durante décadas nas madrassas do neoliberalismo, do tipo Goldman-Sachs.
Os radicais que dominam a Europa odeiam a democracia. Odeiam um sistema político que possibilite a escolha livre aos seus cidadãos. Odeiam todos os que pensam de forma diferente, mas, sobretudo, não admitem que quem deles diverge possa ter acesso ao poder.  Odeiam a justiça social e além dos direitos da propriedade não reconhecem nenhum outro.
Ninguém como Robert Nozick no seu livro mais famoso, "Anarchy, State and Utopia", estabeleceu o quadro ideológico em que se movimentam os extremistas. Sendo ele o supremo ideólogo do libertarianismo que abomina o Estado social e redistributivo, compreende-se que entre as suas permissas, como salienta Thomas Nagel no prefácio à edição de 2013, assuma a negação de que existam quaisquer príncipios morais independentes, aplicáveis por instituições políticas ou colectivas, que não sejam resultado dos direitos naturais dos seus membros individuais e, "last but not the least", recuse a  existência de  alguma razão moral para mitigar a desigualdade económica e social.
Na Grécia, as instituições europeias - que dominam a Europa a partir da tomada dos partidos do centro político - estão a concluir o trabalho que visa punir, para lá do suportável, todos os gregos, castigando-os pelas opções políticas que fizeram através do exercício do direito de voto. Forçando-os à capitulação.
Faz todo o sentido que a Troika imponha cortes de pensões e aumento de impostos. Faz todo o sentido que a Troika não aceite contrapartidas de igual montante em redução de despesas militares ou em ganhos de eficácia na luta contra a corrupção e a evasão fiscal. A construção da sociedade da desigualdade tem um léxico próprio, nada de confusões. Os meios interessam.
Nestes dias que correm não há mais espaço para o dialogo  ou para a negociação. É tempo de resisitir e de lutar recorrendo a todas as armas possíveis à escala global. É tempo de dizer as palavras certas, com a sua crueza, despojadas dos adornos da diplomacia. Contrariamente ao que por aí se vai escrevendo não me parece que a situação na Grécia confirme a tese de que é impossível governar à esquerda na Europa. Antes pelo contrário. Mostra-nos que são necessários governos de esquerda,  comprometidos com os valores da democracia política, para construir a Europa dos cidadãos e da democracia. Aquela que os carrascos da Troika querem sepultar começando pela Grégia, a pátria fundadora da democracia.


 
 

11 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

E a cereja em cima do bolo, meu caro, é a criação por Marine Le Pen de um novo grupo parlamentar em Bruxelas com o objectivo confesso de "destruir a UE a partir de dentro", sem que isso cause alarde de maior nas fileiras dos "disciplinadores" da Grécia.

Abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

Bom texto, corajoso e certeiro. No entanto, os USA estão alarmados com as hipóteses de falência grega, tendo o Sec. do Tesouro falado ontem ao telefone com Tsipras, advertindo para o perigo " de uma incerteza geral " para o futuro da Europa e da Economia Mundial, caso não se chegue a uma plataforma de acordo entre as partes. O Financial Times diz hoje que tudo se pode " compôr " e aposta nas reformas estruturais como solução...O braço-de-ferro crescente dos ultimos dias entre o FMI e o Eurogrupo, de um lado, e o Governo do Syrisa ,de outro, depemde também da atitude da direcção do Banco Central Europeu, onde Draghi se mostra invulgarmente muito hesitante e sibilino no que se refere ao desbloquear das " ajudas financeiras de úrgência ".Parece que anda toda a gente a jogar falso e com bluff sedicioso, onde as razões politicas cavam fundo e constroem cenários de" ou tudo, ou nada ". De qualquer modo, há cinco longos meses que o drama helénico se desenrola no interior da U.Europeia, fazendo lembrar um dos preceitos-chave de Maquiavel, que sublinha que mesmo na perfidia que vence o totalitarismo, pelo menos à Pyrrhus, isso pode degenerar, mais cedo ou mais tarde, numa derrota, pela força e determinação do vencido temporariamente...Niet

joão viegas disse...

Ola,

Não sei se concordo. No fundo, os radicais criticados no texto não têm grandes queixas em relação às poucas regras democraticas que aceitaram para a Europa, uma vez que foram elas que acabaram por fortalecer os conservatismos e por cortar as asas à ideia de uma Europa dos povos. Por que razão deveriam eles detestar a democracia ? Não vejo...

A verdade é que a esquerda democratica e as forças progressistas não souberam encontrar a dinâmica que poderia permitir um aprofundamento da democracia europeia. O resto é conversa.

Dir-me-ão que as regras estavam pervertidas, que a democracia era artificial e que era impossivel porque as cartas estavam mal distribuidas. Bom, a meu ver, este é que é o verdadeiro problema com que as forças de esquerda se deparam : estão à espera que os amanhãs comecem a cantar por obra e graça do Espirito Santo. Conhecem alguma revolução que tenha esperado que façam armas à sua medida, em vez de começar a bater-se com as armas fabricadas pelo adversario ? Eu, não.

Abraços



José Guinote disse...

João Viegas não sei se concordo completamente com o comentário. Eu sou dos que penso que a democracia na Europa se degradou. Quero eu dizer que na Europa assistimos, nas últimas décadas, ao esmagamento da componente participativa da democracia pela componente representativa. A contrapartida para a despolitização da democracia - é disso que se trata - foi o acesso indiscriminado ao consumo através do crédito fácil. Penso igualmente que há vários graus de democracia dentro da Europa. Por exemplo o facto de mais de 70% dos trabalhadores Dinamarqueses serem sindicalizados e de os trabalhadores alemães terem uma representação na Administração das grandes empresas, é um outro nível de democracia. O facto de existirem políticas públicas de habitação em países como a Holanda, a Alemanha ou na Filândia, é outro nível de democracia. Claro que os radicais não se podem queixar das regras actuais, sobretudo daquelas que impõem aos periféricos. Quem se queixará de poder, em nome das instituições representativas, discutir com um governo eleito em eleições democráticas, propondo-lhe -um eufemismo - que aceite cumprir o programa do seu principal adversário [a Nova Democracia] copiosamente derrotado nas urnas. O que eu acho é que os radicais levam a cabo a sua revolução. Isso passa por tornar a democracia apenas uma fachada, um cenário. Independentemente do que cada um decide há a vontade de quem manda.
Já quanto às responsabilidades nesta degradação que se devem atribuir às forças de esquerda subscevo aquilo que diz.
Um abraço

joão viegas disse...

Ola,

Julgo que, no fundo, concordamos bastante mais do que v. admite. Com efeito, o meu comentario é principalmente sobre responsabilidade.

Por um lado, o facto de termos regras incipientes e imperfeitas que se prestam à perversão, não nos deve impedir de as utilizar ao maximo das suas possibilidades, com vista a aprofundar a logica democratica de que elas se reclamam. Temos feito isso ? Julgo que não, e os exemplos que v. da apontam para isso mesmo.

Por outro lado, imputar a responsabilidade da perversão das regras aos inimigos da democracia é um erro estratégico e um erro de fundo. Acreditar na democracia é também acreditar (e trabalhar para) que a logica democratica deve neutralizar as pulsões demagogicas que a ameaçam. Isto por vezes é menos obvio, mas se invertermos a logica da frase, percebemos que não ha outro caminho : com efeito, ninguém no seu perfeito juizo defende que a democracia deveria ser abandonada uma vez que apresenta grandes riscos de ser pervertida por demagogos (isto é o que defendem as ideologias fascistas e fascizantes). Falar no "défice democratico" da Europa não chega. E' necessario acrescentar que o problema do "défice democratico" somos nos, os democratas, e que não ha "aprofundamento da democracia" que não comece por utilizar as regras que temos...

Neste momento, em França, o governo de F. Hollande esta a apresentar de forma autoritaria medidas completamente reacionarias, ao mesmo tempo que abdica completamente dos objectivos de reforma fiscal com que foi eleito. Porque é que ele pode permitir-se comportar-se desta forma inqualificavel ? Porque é composto de seres abjectos e imorais ? Talvez, mas esta não é a razão principal. Eles podem permitir-se fazer esta politica de merda porque a esquerda esta completamente desorganizada...

Abraços

José Guinote disse...

Sim, parece-me desde o ínicio que concordamos no essencial. Eu também sou dos que entendo que é à esquerda que devemos encontrar os principais responsáveis pela degradação da democracia. Ninguém nos dará aquilo que não formos cpaazes de construir por nós próprios. O príncipio da responsabilidade, tal como o João o coloca, agrada-me. A minha divergência resume-se - e admito que isso não seja de somenos - ao facto de eu tender a não relativizar a importância política da acção dos que detêm o poder. Acho que os inimigos confessos da democracia, como eu lhes chamo, são-no de facto, na justa medida em que abominam a participação política dos cidadãos, ainda que esta se resuma, apenas e só, ao acto de votar e escolher em eleições. Os inimigos confessos não aceitam "decisões erradas" e não hesitam em usar os seus meios de pressão e chantagem para as "corrigir". O caso da Grécia ilumina este "modus operandi".

Miguel Serras Pereira disse...

Meus caros,
a mim, parece-me que a pergunta a fazer para clarificar a questão é se podemos dar de barato uma maior inclinação geral dos que se afirmam de esquerda pela salvaguarda já não direi da democracia, mas dos direitos e liberdades fundamentais secularmente conquistados pelos trabalhadores e cidadãos comuns da Europa. É que se por "esquerda" entendermos os movimentos, forças e propostas que visam a democratozação efectiva das relações de poder e a participação igualitária do conjunto dos cidadãos comuns no seu próprio governo, teremos de excluir dela, por combaterem activamente essa democratização, boa parte das "esquerdas" realmente existentes. Querem um exemplo? No momento actual da crise grega, o PS da nossa região diz, não que é necessário chegar a acordo com o governo de Atenas e desistir de impor cortes de pensões e de outros direitos, mas que o PS terá de rever à la baisse o seu programa no caso de a Grécia sair da zona euro. Sigmat Gabriel, o vice-chanceler alemão, membro do SPD, diz pior: que se opõe a que os trabalhadores alemães paguem os custos do radicalismo (?) do Syriza. E acaba por ser Angela Merkel a intervir para moderar os ímpetos normalizadores destas e doutras figuras (algumas, sem dúvida, e das mais destacadas, da sua área política), insistindo na possibilidade e na desejabilidade de um acordo com o governo de Atenas — talvez por ter descoberto que, caso contrário, "a destruição da UE a partir de dentro" visada por Marine Le Pen e os seus aliados nacionalistas, será o resultado inevitável da intransigência dos seus pares.
Abraços

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola,

Concordo completamente, caro Miguel. O drama actual é que os partidos que se reclamam formalmente da esquerda não dizem (nem fazem) coisa com coisa e, ao que parece, abdicaram completamente, não apenas de propor programas de esquerda, mas mesmo de parecerem de esquerda. Isto aplica-se aos partidos ditos "socialistas" (ou "social-democratas") que se renderam completamente à logica liberal, mas também às correntes nauseabundas que, por vezes no extremo oposto, proclamam despudoradamente que o essencial é proteger os trabalhadores contra outros trabalhadores, estrangeiros, apresentados como uma ameaça.

Democratização real, igualdade efectiva, redistribuição consequente. Quem é que propõe isto hoje em dia ? Que organização politica reivindica estes principios, que são os unicos que permitem separar a esquerda da direita ? Em vez disso, temos o discurso absurdo e irresponsavel da renovação, do fim das ideologias, do "esquerda e direita ja não quer dizer nada" e outras balelas. Trinta anos a retroceder, contra todas as evidências. Trinta anos durante os quais as desigualdades aumentaram exponecialmente nos paises ditos "desenvolividos", deixando à margem quantidades cada vez mais impressionantes de pessoas, aqui sob a forma de desempregados, acola sob a forma de trabalhadores precarios com medo do desemprego.

Alguém duvida que as pessoas genuinamente cansadas desta situação são suficientes para ter peso politico ? Eu não. Portanto a questão é mesmo a nossa incapacidade para as federar. Admito que, como diz o José Guinote, extistem forças reacionarias cinicas que sabem muito bem como paralizar o movimento popular. Mas isso não chega como explicação. Ha também uma falta de lucidez, e uma falta de organização, que faz com que não consigamos identificar um projecto federador. Isto é que explica a dispersão contraproducente das forças de esquerda e a sua permeabilidade às piores tendências demagogicas.

Isto é grave porque é mais do que uma mera capitulação. Trata-se, no fundo, de uma traição ou, mais propriamente, de uma desitência. O que vemos por todo o lado, neste momento, é uma esquerda que desiste, e que desiste de si mesma. Eis o que é perfeitamente insuportavel !

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
temos preocupações muito comuns. E venho tentando de há bastante tempo para cá propor a discussão de uma plataforma de acção comum no sentido da democratização. Lembro aqui dois textos dos últimos anos, que publiquei no Vias tentando lançar o debate a que tu agora também convidas: http://viasfacto.blogspot.pt/2010/11/da-democratizacao-como-plataforma.html e http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/que-movimento-por-que-democracia.html

Abraço

miguel(sp)

José Guinote disse...

Miguel, tenho denunciado sistematicamente as posições dos socialistas, particularmente do SPD alemão. Aqui no Vias já me debrucei sobre essse famigerado Sigmar Gabriel. Um asco. Essas declarações que referes são do piorio. São lepenianas. Estou certo que a esquerda formal, como refere o joão Viegas, é apenas - para usar uma expressão de um urbanista, o Alain Bourdin - o pilar esquerdo da estrutura que suporta o neoliberalismo europeu. Veja-se, como propõe o Miguel, as posições do PS sobre a situação na Grécia. De forma calculista todos se tentam colocar a salvo das consequências do previsível descalabro. Revisitem-se as declarações no amanhecer da vitória do Syriza e veja-se a "flexibilidade" desta gente.
O problema é que neste momento - tomando Portugal como exemplo - não se perfila nenhuma força política de esquerda que proponha um programa de governação democrática e de esquerda credível. O BE cristalizou-se como força de contestação, incapaz de propor uma plataforma de governação da sociedade. Não o consegue fazer, porque não tem reunidas as capacidades para isso. Não foi capaz de construir um projecto político sensato e entendível pelos cidadãos, capaz de promover uma democratização da sociedade. Aproveitaram o poder que tiveram para alimentar grupos de acessores e de eminências pardas que se mediatizaram. As pessoas não os reconhecem como tendo essa capacidade trasnformadora da sociedade. O PCP está cristalizado no seu projecto de conquistar o poder numa lógica de substituição integral da sociedade capitalista pela sociedade socialista, tal como eles a entendem. Têm todo o tempo do mundo. Até lá vai gerindo a sua fatia de poder, sobretudo ao nível local, e vão contestando, "segmnento de mercado" em que lideram claramente. Os restantes projectos, tipo Livre, são veículos para o governo e para o poder, propostas utilitárias, top to bottom até à medula, que nada dizem aos grandes desafios que estão pela frente. Por exemplo, pensando nas propostas do PS, alguém já leu alguma referência ou alguma autocrítica aos mecanismos que a sua governação introduziu no sistema de contratação pública e que objectivamente promoveram a corrupção e o tráfico de influências? Ou algum dos partidos foi capaz de até agora apresentar alguma reflexão, com dois dedos de testa, sobre os custos para o país, do processo de urbanização selvagem que assolou o pais, nas últimas décadas? Quais as propostas que os diferentes partidos de esquerda apresentam para sair do buraco em que estamos metidos, por exemplo com as autarquias arruinadas e com territórios ingovernáveis?
Que sentido faz hoje falar de meritocracia e de sistemas de saúde e de educação públicos quando o PS aquilo que propõe é apenas uma visão mais humanizada do que a direita propõe, mantendo intocável o quadro de referência austeritério?

Anónimo disse...

Esses textos do MS.Pereira ( e comentários adstritos)abrem imensas perspectivas; sendo um momento alto da vida do blogue, anos 2010/2011, não por acaso coincidentes com momentos de grande actividade do proletariado em luta com greves e ocupações de alto nivel de combatitividade. Mas,convém notar, no entanto,o
seguinte: como indica Rosa Luxemburgo não se deve confundir consciência revolucionária com consciência intelectual dos revolucionários profissionais, de tipo leninista. Segunda a maravilhosa Rosa, apenas é importante, segundo a sua opinião, a consciência em acção, a consciência actuante das massas que nasce e se desenvolve sob a pressão da necessidade: as massas conduzem-se revolucionariamente em situações onde não podem agir de outro modo e se vêem constrangidas à acção, como refere num texto sobre as divergências de principios entre Rosa e Lénine, Paul Mattick no seu livro fundamental " Integração capitalista e ruptura operária ". N.