28/11/15

Humilhação e violência

A edição de hoje do jornal Público contém um artigo extremamente útil para perceber o que realmente motiva aqueles que se juntam ao Estado Islâmico (EI) com o intuito de executar actos de violência, seja onde for. A conclusão do artigo é clara: aqueles que o fazem, vêm na violência um exercício de catarse da sua raiva interior, auto-justificada com a pretensa defesa do "Islão". Colam-se à etiqueta EI para auto-engrandecerem os seus actos. Percebendo isto torna-se evidente o erro em que incorrem todos aqueles que perante actos de violência cometidos em nome do "Islão/EI", pressupõem que a motivação desses actos é o fanatismo ou fundamentalismo religioso.

É sempre a raiva, o ódio, que alimenta o exercício da violência. Mas a raiva, o ódio, nunca são gerados apenas pela percepção da existência do Outro. Esta pode, no máximo, gerar desconforto, medo, sentimentos negativos, mas defensivos nas acções que desencadeiam, ou seja, levam ao retraimento, podem originar uma fuga. A raiva, o ódio, resultam antes, na maior parte das vezes, de um dos sentimentos mais poderosos que um ser humano pode sentir: a humilhação. Neste outro artigo discute-se como a humilhação, sentida por todas as partes envolvidas num conflito, alimenta a espiral de violência. Ora, a humilhação quotidiana é uma parte integral da esmagadora maioria das sociedades existentes neste planeta. Está presente em todas as sociedades onde existem hierarquias impostas, seja através do uso da força, seja pelo condicionamento cultural e social. Em particular, as sociedades assentes no modo de produção capitalista são pródigas na diversidade dos meios utilizados para induzirem humilhação, que vão desde as acções perpetradas pelos agentes do Estado, passando pelas relações de produção/trabalho, pela valorização da propriedade e associada desvalorização de tudo o que não é quantificável, e portanto que não é passível de mercantilizar. Vale a pena ler este artigo, onde se exemplifica com um caso concreto, como a humilhação sentida em resultado do embate com o Capitalismo levou à raiva, que também neste caso se transmutou num pretenso "radicalismo religioso".

Erradicar a humilhação que produz a raiva que alimenta o conflito e a violência só é possível a partir do momento em que nos vejamos verdadeiramente como iguais, como igualmente merecedores de respeito. Uma sociedade assente neste princípio só pode ser radicalmente democrática e comunista.

14 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
os pontos que sublinhas merecem reflexão e devo reconhecer que têm um grão de verdade. Mas a tua análise parece-me insuficiente e insuficientemente crítica. A questão é a seguinte, muito esquematicamente: porque é que a resposta à humilhação é, não só a violência, como também a religião. Se a possibilidade da violência sem propósito ou reivindicação de um sentido, precisa de um "pretexto" religioso, para ser uma resposta à "humilhação", talvez a religião ou o sentido religioso seja mais do que um pretexto. E há, depois, outra questão maior: se a humilhação é produzida pela dominação hierárquica, a resposta violenta que analisas não se faz contra ela, mas — "pretextualmente", dirás tu — reprodu-la sob forma agravada através da integração dos violentos num exército e num Estado não menos hierárquicos e opressivos.
Por fim, haveria ainda que discutir o que significa ao certo aquilo que tens em mente quando escreves:"Erradicar a humilhação que produz a raiva que alimenta o conflito e a violência só é possível a partir do momento em que nos vejamos verdadeiramente como iguais, como igualmente merecedores de respeito. Uma sociedade assente neste princípio só pode ser radicalmente democrática". Porque há religiões que — pretextuais ou não —, não só têm como traço essencial e distintivo a afirmação de que os outros valores, comportamentos, códigos do bem e do mal, não são "igualmente merecedores de respeito", como consideram uma abominação punível com a morte, a servidão ou a inferioridade o pôr em questão da sua lei. Ora, por um lado, a autonomia democrática só pode construir-se assentando ou caminhando sobre o princípio da dessacralização e questionamento sempre possível das instituições ou leis do momento, mas, por outro lado, não pode afirmar que as outras respostas religiosas ou culturais, assentes na sacralização do poder hierárquico e das suas leis, sejam formas que merecem igual respeito. Ou não será assim? Para o EI, é a própria ideia de democracia que é sacrílega e, por isso, a sua resposta não merece mais respeito do que a de outros regimes que criminalizam a ideia ou a prática da democratização.

Um abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...


Caro Miguel,

“Se a possibilidade da violência sem propósito ou reivindicação de um sentido, precisa de um "pretexto" religioso, para ser uma resposta à "humilhação", talvez a religião ou o sentido religioso seja mais do que um pretexto.”

A violência não precisa necessariamente dum pretexto, mas tê-lo ajuda a ultrapassar eventuais obstáculos internos de natureza moral. Não precisa é dum pretexto religioso, como é defendido no artigo publicado no Público. Ao longo de milénios, e no presente, infelizmente, não é rara a violência extrema executada sob todo o tipo de pretextos não-religiosos.

“E há, depois, outra questão maior: se a humilhação é produzida pela dominação hierárquica, a resposta violenta que analisas não se faz contra ela, mas — "pretextualmente", dirás tu — reprodu-la sob forma agravada através da integração dos violentos num exército e num Estado não menos hierárquicos e opressivos.”

Concordo. A resposta individual baseada na raiva e no ódio gerados pela humilhação pretende “curar” a ferida através da humilhação daquele(s) que se julga responsáveis pela humilhação que se sente. Tal acção apenas gera um ciclo vicioso de retribuição, e incita ao aparecimento e aprofundamento de estruturas colectivas assentes no exercício hierárquico do Poder, que vão por sua vez gerar, quer no seu seio quer nas acções por si desencadeadas, ainda mais humilhação. É um ciclo infernal, extremamente difícil de parar.

“Porque há religiões que — pretextuais ou não —, não só têm como traço essencial e distintivo a afirmação de que os outros valores, comportamentos, códigos do bem e do mal, não são "igualmente merecedores de respeito", como consideram uma abominação punível com a morte, a servidão ou a inferioridade o pôr em questão da sua lei.”

Sinceramente, acho que não há religiões. O que há são corpos ideológicos partilhados, por vezes por milhões de pessoas, mas cuja interpretação individual, da qual se deriva as consequências práticas da crença nessa ideologia, varia de forma muito substancial. A crença, amplamente divulgada, de que há religiões, só interessa às hierarquias que se arrogam de únicos interpretes desses corpos ideológicos. São aliás essas mesmas hierarquias, às vezes conhecidas por clero, que enfatizam no seio do corpo ideológico em causa a necessidade de diferenciação entre aqueles que partilham desse credo e os outros. Essas hierarquias precisam que se acredite que há apenas um modo de interpretar um dado corpo ideológico, ou seja que há religiões, corpos ideológicos rígidos no seio do qual não são (não podem ser) admitidas interpretações contraditórias. Aliás, um dos objectivos do EI é exactamente fazer crer a todos os que partiilham, em maior ou menor grau, o corpo ideológico “islâmico”, que são diferentes dos outros, que são vistos como diferentes pelos outros, e que devem unir-se numa mesma interpretação desse corpo ideológico, aquela que melhor os defenda perante a hostilidade dos outros, ou seja a interpretação do EI.

Ou seja, como é possível constatar pelo simples contacto pessoal, não é pelo facto de alguém acreditar numa ideologia, seja ela de origem “religiosa”, ou não, que podemos deduzir que essa pessoa vê os outros, os que não partilham das suas opiniões, as suas “crenças”, como sendo menos merecedores de respeito. Quem quer que assim se pense, são as hierarquias que necessitam de dividir para melhor impor o seu domínio. É por isso que a maior ameaça a estas hierarquias é o mero contacto pessoal entre as pessoas simples, que tendo opiniões diferentes reconhecem instintivamente no outro um seu semelhante.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Bem, Pedro, vamos lá por partes. Dizer que não há religiões, mas apenas sistemas de crenças partilhadas, sob a direcção de hierarquias organizadas, é uma opção terminológica discutível. Mas, enfim, quando falei em "religiões", tinha em mente "religiões organizadas", "instituições religiosas". Aqui, as nossas posições podem aproximar-se sem problema.
Saúdo, também, o teu acordo com o meu segundo ponto.
Mas já não me parece que acertes quando escreves: "Ou seja, como é possível constatar pelo simples contacto pessoal, não é pelo facto de alguém acreditar numa ideologia, seja ela de origem “religiosa”, ou não, que podemos deduzir que essa pessoa vê os outros, os que não partilham das suas opiniões, as suas “crenças”, como sendo menos merecedores de respeito. Quem quer que assim se pense, são as hierarquias que necessitam de dividir para melhor impor o seu domínio". A menos que estabeleças uma distinção muito precisa entre "acreditar" e "praticar" — distinção que as igrejas ou "corpos ideológicos" instituídos, de resto, condenam e combatem —, não vejo como poderás sustentar que o contacto pessoal opera os milagres que dizes. Se assim fosse, não haveria opiniões e práticas que consagram a hierarquia sexual que resistissem à constituição da família nem crentes que obedecessem aos dirigentes do EI, etc., etc. A verdade é que os corpos ideológicos a que te referes condicionam e limitam os contactos pessoais "legítimos" e não lhes permitem senão opções individuais limitadas. É possível que "quem … assim pense, s[ejam] as hierarquias que necessitam de dividir para melhor impor o seu domínio" — sim. Mas o problema é que as hierarquias, impondo a sua lei, fazem com que também os seus súbditos ajam em conformidade com as representações e injunções dominantes e as reproduzam juntamente com a sua própria subordinação. Ter em conta uma certa espessura singular irredutível dos seres humanos bem como a nossa humanidade comum é, sem dúvida, necessário — nomeadamente na acção política que visa a autonomia. Mas, por necessário que seja, é também politicamente insuficiente.

Um abraço

miguel(sp)

Sérgio Pinto disse...

Pedro Viana,

Felizmente que este artigo e o anterior, de Jorge Valadas, aqui aparecem. Trazem uma bem necessaria sanidade ao debate que parece dominado pelos que, ainda nem a poeira assentou, e ja' berram furiosamente contra a esquerda cuja prioridade nao e' mais uma intervencao militar. Para esta especie de convertidos neoconservadores, as decadas de continuada intervencao, assassinios, golpes militares, ocupacao, e/ou bombardeamentos, bem como a implicita desumanizacao das populacoes alvo, nunca sao suficientemente graves para serem prioritarios. Nao faltara' muito para termos umas declaracoes inspiradas por Hitchens, outro grande defensor da democracia, a rejubilar com o uso de bombas de fragmentacao em paises de maioria muculmana.

E tudo se resolve, claro, com mais uma campanha militar dirigida por governos encabecados por personagens como Cameron, Obama, Hollande, e afins, coligados com regimes sempre recomendaveis, como os dos EAU ou da Arabia Saudita; estes ultimos, de resto, estao ja' ha' largos meses a trabalhar arduamente no sentido de libertar o Iemen, transformando-o num paraiso democratico. Tudo gente com um impecavel percurso anti-imperialista e promotor de direitos humanos (incluindo, naturalmente, o da igualdade entre todos os individuos). E depois de mais um bombardeamento? Ah, logo se ve. O imperio ate' e' benevolente...

Anónimo disse...

Entendem agora, através do teor e da natureza dinâmica do vosso diálogo, a impossibilidade do que quer que seja "uma sociedade(...)radicalmente democrática e comunista"?

Miguel Serras Pereira disse...

Anónimo das 7 e 22 de 29-11

O Pedro Viana responderá o que entender, se entender responder. Por mim, não vejo em que é que a ideia de uma "sociedade radicalmente democrática" sai infirmada pelo que escrevi. Pelo contrário, a concepção e proposta de autonomia subjacente a cada linha dos meus comentários é a de somos nós que nos damos as nossas próprias leis e instituições e que queremos a democracia para o fazermos o mais lúcida e responsavelmente possível. Na mesma ordem de ideias, sugiro também que, ao nível individual, a afirmação da autonomia requer e pressupõe condições arquitectónicas e de socialização/formação que são de ordem política — ou seja, a presença activa no horizonte social-histórico da instituição da cidadania democrática, estipulando o meu direito e dever de participar igualitária e responsavelmente no exercício do poder governante cujas decisões me vinculam.
Quanto a saber se devemos ou não chamar "comunista" a esta concepção da democracia, depende do que entendermos por "comunismo": se uma democratização radical efectiva, se a fantasia de uma sociedade sem instituições e sem leis, transparente e definitiva e, no fundo, tão "acósmica" como Max Weber considerava o cristianismo primitivo.

Cordialmente

msp

Pedro Viana disse...


Caro Miguel,

Concordo totalmente quando afirmas

(…)ao nível individual, a afirmação da autonomia requer e pressupõe condições arquitectónicas e de socialização/formação que são de ordem política — ou seja, a presença activa no horizonte social-histórico da instituição da cidadania democrática, estipulando o meu direito e dever de participar igualitária e responsavelmente no exercício do poder governante cujas decisões me vinculam.(…)

Esta nossa opinião comum é também um corpo ideológico. Acreditamos que é este o objectivo que enquanto indivíduos e colectivo devemos ter no nosso horizonte. Mas, não acho que tal seja de todo incompatível com outros corpos ideológicos, em particular com alguns daqueles habitualmente classificados como religiões. É, no entanto, incompatível com a subordinação a uma hierarquia constituída tendo a um dado corpo ideológico de “cariz religioso” como desculpa. Repara que o que acabei de afirmar é válido para os corpos ideológicos tradicionalmente considerados como religiosos, mas também para outros. Por exemplo, suponho que não defenderás que o corpo ideológico comunista (talvez deva adicionar: interpretado num sentido lato, ie. a crença na possibilidade duma sociedade radicalmente igualitária) é incompatível com o que afirmas no extracto que retirei do teu comentário anterior. No entanto, entre as muitas milhões de pessoas que partilham esse corpo ideológico uma fracção considerável subordina-se a uma hierarquia (ao “comité central do Partido”) que se constitui tendo esse corpo ideológico como justificação. Não quero com isto afirmar que a constituição deste tipo de hierarquias, associadas a corpos ideológicos, é sempre movida pelo interesse pessoal, pela vontade de exercício do Poder sobre outros. Haverá também a auto-justificação assente na necessidade de coordenar a acção com vista a defender e melhor implementar o preconizado pela ideologia em causa. No entanto, invariavelmente, as hierarquias acabam por ter como objectivo supremo a expansão do seu Poder, tornando-se a auto-justicação uma máscara usada pelos membros da hierarquia para manter o domínio sobre aqueles que se lhes submetem. Temos visto, ao longo da História, inúmeros exemplos deste processo.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Portanto, a pergunta é: devemos centrar a nossa crítica no conteúdo de certos corpos ideológicos de “cariz religioso” ou nas hierarquias que se arrogam como únicos interpretes desses corpos ideológicos? Quando nos apercebemos que o problema está na existência das hierarquias, sendo estas que incitam e coordenam as acções que visam prejudicar, incluindo matar, outros, torna-se (julgo) claro que a crítica deve estar centrada nestas. No entanto, poderia-se argumentar que sem uma crítica também ao conteúdo desses corpos ideológicos de “cariz religioso”, nunca será possível erradicar as hierarquias associadas. Não creio que assim seja. Antes de mais, não creio que seja possível erradicar da experiência humana a propensão, talvez mesmo a necessidade, de construir corpos ideológicos que ajudem a dar sentido à existência. E, como tenho tentado defender, não há um distinção clara entre o que é e não é um corpo ideológico de “cariz religioso”. Portanto, acho que o que devemos tentar é criar condições para que alguém que “acredite” num certo corpo ideológico não “ceda à tentação” de se subordinar a uma hierarquia que se auto-intitula como única defensora e intérprete desse corpo ideológico. Julgo que essas condições passam pela promoção da pluralidade na interpretação dos fundamentos dos corpos ideológicos. Ou seja, devemos promover a heterodoxia e a dissensão, instalar a dúvida sobre a melhor interpretação, com o objectivo último de convencer todos os que partilham um dado corpo ideológico que devem confiar antes de mais na sua própria interpretação, e desconfiar daqueles que se arrogam como únicos intérpretes do corpo ideológico em questão. Isto é muito diferente de criticar, de desvalorizar, de negar os fundamentos dum dado corpo ideológico. Fazer tal implica, de certo modo, colocar-mo-nos na mesma posição em que se colocam os membros da hierarquia: só existe uma interpretação possível para os fundamentos dum dado corpo ideológico. Ao colocar-mo-nos nessa posição obrigamos os “crentes” a optar entre estas duas posições antagónicas, no sentido em que uma “é contra e outra a favor”, o que inevitavelmente levará a que haja uma fracção significativa de crentes a subordinar-se à hierarquia, colocados como que “entre a espada e a parede”. Ou seja, a constituição dum “campo do contra” é um factor que potencia o crescimento dum “campo do a favor”, e o fortalecimento das hierarquias que se arrogam como únicas defensoras desse “campo”.

Em resumo, acho que uma sociedade como a que defendemos é compatível com a existência duma grande diversidade de corpos ideológicos no seu seio, alguns que se poderiam etiquetar como de “cariz religioso”. É, no entanto, incompatível com a existência de qualquer tipo de hierarquias (auto-)impostas, com a subordinação. Estes dois pressupostos são eles próprios compatíveis, porque não acho que a existência de corpos ideológicos diversos no seio duma sociedade leve necessariamente ao aparecimento de hierarquias. Em termos históricos, existem muitos exemplos de comunidades, mais ou menos extensas, onde ideais igualitários (iguais nos direitos e deveres perante a vida em comunidade) e a governança partilhadas coexistem com corpos ideológicos diversos de “cariz religioso”. A “religião”, por si não promove hierarquias, estas é que promovem a (sua interpretação diferenciadora da) religião para seu benefício.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
o grande problema agora é que apresentas uma versão da religião extremamente contra-factual. São inumeráveis os casos em que as religiões impõem como condição de adesão, não só o respeito pela hierarquia, como a adeopção de códigos de comportamento e de concepções incompatíveis com o igualitarismo democrático. Ora, acontece que as hierarquias, os regimes classistas e hierárquicos, são sempre e necessariamente acompanhadas por aquilo a que chamas "corpos ideológicos", do mesmo modo que estes são parte integrante da organização hierárquica. É por isso que um "corpo ideológico", que se apresente como "comunista", mas promova um modo de organização hierárquico — assente na divisão estrutural e permanente entre governantes e governados, dirigentes e executantes, etc. — deve ser combatido e denunciado sem equívocos por quaisquer concepção e organização cometidas com o projecto de autonomia ou de democratização radical. Tudo isto poderia sintetizar-se numa tese sucinta que várias vezes sustentei nos últimos anos (por exemplo, http://viasfacto.blogspot.pt/2010/04/carta-frei-bento-domingues.html ): a democratização das instituições e a autonomia democrática têm como uma das suas condições necessárias a destituição política da religião.

Abraço

miguel(sp)

Miguel Serras Pereira disse...

Bem, Pedro, devo ainda acrescerntar o seguinte, para explicitar melhor a minha posição, recorrendo a excertos de posts que publiquei no Vias

1. "Resta acrescentar que, do meu ponto de vista, e discordando dos que tendem a declarar secundário o problema político da religião, a importância da reabertura democrática da "questão religiosa", da denúncia da consagração de uma religião, que o consagra em contrapartida, pelo poder político, é um ponto de partida que, uma vez seriamente assumido, nos leva bastante mais longe do que à exigência da destituição política da religião. Porque, por coerência com essa exigência e através do seu aprofundamento, nos conduz à rejeição preliminar de qualquer concepção da sociedade e da história que santifique, sacralize ou magnifique a lei ou instituições do momento, fundando-as numa razão superior que pretenda subordinar e substituir à democracia um poder político acima da vontade e da capacidade de deliberação e decisão dos cidadãos" ( http://viasfacto.blogspot.pt/2010/05/sobre-campanha-cidadaos-pela-laicidade.html ).

2. "Não há problema — bem pelo contrário — na denúncia das perseguições ou discriminações que visam aqueles que professam uma religião ou uma fé, pelo facto de a professarem. Mas há um problema enorme em não combater implacavelmente como antidemocrática qualquer versão religiosa — cristã, islâmica, satânica, o que se queira — que imponha a revelação como limite à liberdade de pensamento, expressão e deliberação democrática da praça da palavra. Se negar o direito de cidade a uma versão da fé islâmica que pretende ditar as leis e as decisões que democraticamente só os próprios cidadãos têm, igualmente e entre iguais, o direito de se dar, rever, formular de novo, é islamofobia, pois bem, não teremos outro remédio senão assumir o dever de ser islamófobos. O que significa, também, que não poderemos deixar de opor a mesma "fobia" a qualquer versão do cristianismo, do judaísmo, dos mitos nacionais ou da adorçaão do diabo mais velho que pretenda despojar-nos da liberdade e da responsabilidade de nos governarmos a nós próprios, sem "vontade de Deus" ou "leis da natureza" que condicionem a nossa deliberação e livre exame das questões da vida em comum. Sem dúvida, não basta a destituição política da religião para garantir a plenitude da cidadania governante, mas nem por isso o combate pela autonomia democrática deixa de ter nessa destituição uma condição preliminar" ( http://viasfacto.blogspot.pt/2015/01/islamofobia.html )

miguel(sp)

José Lapa disse...



Em 2013,na altura em que era publicado em França o seu livro « Meursault, contre enquête » Kamel Daoud o autor, argelino nascido em 1970, dizia numa entrevista : « O que hoje me impede de respirar, já não são os ditadores, mas o peso da religião. ( Os deuses matam no nosso país) (…) Quando eu era criança, tinha as minhas melhores notas quando desenhava uma bandeira com uma kalashnikov, um vulcão ou cadeias que se rompem. Hoje quero desenhar outra coisa, escrever outra coisa.

Wassyla Tamzali, argelina nascida em 1941, vinte anos ao momento da independência,
dizia o seguinte num livro publicado em 2007 « Une éducation algérienne » :
« Na escola, os professores da instrução primária zeladores, interrogavam os alunos para se informarem se os seus pais faziam o Ramadan. Pior ainda, armavam uma cilada pedido-lhes pedindo-lhes que trouxessem rolhas para a classe, que brandiam, diante da cara dos alunos com medo, como a prova de que os seus pais bebiam vinho.
(…) A religião tornou-se duma importância nacional, e o país inteiro deixou-se pouco a pouco vergar pela pressão. Os cafés da cidade, como quase todos os do país fechavam durante a quaresma. Alguns estabelecimentos próximos da faculdade, resistiram durante alguns anos, pequena resistência face ao processo de islamisação que se tinha instalado desde o princípio da independência. »

Pergunta : será que os países colonizadores serão responsáveis até à eternidade de todas as decisões tomadas pelos novos patrões ?

Pedro Viana disse...

“São inumeráveis os casos em que as religiões impõem como condição de adesão, não só o respeito pela hierarquia, como a adeopção de códigos de comportamento e de concepções incompatíveis com o igualitarismo democrático.”

Caro Miguel,

Por definição um corpo ideológico, mesmo de cariz religioso, não impõe nada por si. É uma entidade abstracta, constituída por um conjunto de postulados. Quem pretende impor seja o que for é sempre “um sujeito”, nomeadamente uma hierarquia que usa a sua pretensa exclusividade na interpretação dum dado corpo ideológico como meio de controlo. Mais concretamente, o que impede alguém de afirmar-se católico ao mesmo tempo que não reconhece ao Papa a exclusividade na interpretação do corpo ideológico, isto é dos textos, habitualmente associado ao catolicismo? Nada. Na verdade, possivelmente a vasta maioria daqueles que se consideram católicos possuem a sua própria interpretação do que é ser católico, a qual diferirá em maior ou menor grau (nalguns casos bastante) da interpretação do Papa. O “problema” do islamismo não é o corpo ideológico que lhe está associado, mas sim o facto de uma fracção muito significativa daqueles que o reconhecem (pelo menos em parte) como fazendo parte do seu próprio corpo ideológico, viverem ainda sob o jugo de hierarquias. O objectivo deve ser emancipá-los dessas hierarquias, não exigir que abandonem parte do seu corpo ideológico pessoal. Como tenho defendido, não só tal é desnecessário para que essas pessoas possam participar na construção duma sociedade radicalmente igualitária, como é contra-procedente.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Concordo totalmente quando afirmas que é necessária a “destituição política da religião”. Mas quem é que usa “a religião” para fazer política, para influenciar o governo comum? As hierarquias que a usam para exercerem poder na sociedade. A “destituição política da religião” implica a, e limita-se à, destituição política das hierarquias que promovem a sua interpretação dum dado corpo ideológico de cariz religioso em prol da sua ânsia por Poder. Quem está interessado em promover uma

“(…) concepção da sociedade e da história que santifique, sacralize ou magnifique a lei ou instituições do momento, fundando-as numa razão superior que pretenda subordinar e substituir à democracia um poder político acima da vontade e da capacidade de deliberação e decisão dos cidadãos(…)”

e

(…) a revelação como limite à liberdade de pensamento, expressão e deliberação democrática da praça da palavra (…) que pretenda despojar-nos da liberdade e da responsabilidade de nos governarmos a nós próprios, sem "vontade de Deus" ou "leis da natureza" que condicionem a nossa deliberação e livre exame das questões da vida em comum.(…)

são sempre hierarquias. Ao cidadão comum o que interessa é resolver os seus problemas concretos no dia-a-dia, tentando no processo manter alguma compatibilidade com o seu corpo ideológico pessoal, sem deixar de ser pragmático quando necessário. Mesmo que um dado corpo ideológico, nomeadamente de cariz religioso, inclua (partes de) textos que explicitamente advogam contra a democracia tal como a entendemos, nada impede a sua interpretação figurada, como aliás acontece com muitas passagens em textos associados a todas a religiões. Ou então, advogar que tais passagens contradizem outras (o que também é evidente em todos os textos religiosos), e optar por uma interpretação que valorize umas passagens sobre outras, ou mesmo apelar a uma interpretação mais abstrata e essencialista desses textos (o que é aliás o que faz a maior parte daqueles que se consideram religiosos, pois têm mais que fazer do que decorar ou andar de texto na mão a verificar se o que fazem está de acordo com o que vem escrito nos textos da “sua religião”). É esta interpretação individual, o desenvolvimento da autonomia pessoal no que se refere à reflexão sobre o seu corpo ideológico pessoal, incluindo sobre a “sua religião”, que deve ser promovida. O que automaticamente sabota o poder das hierarquias que querem impor o controlo do pensamento individual. Nota que mais do que um ateu, o que os corpos religiosos abominam realmente é um herético. Pois o primeiro coloca-se de fora, e é útil como a figura-inimiga do Outro, enquanto que o segundo mantém-se dentro, sabotando por dentro a premissa da infalibilidade da hierarquia religiosa, colocando em causa o seu direito auto-arrogado de exclusiva interpretação do corpus religioso e o seu controlo sobre “os crentes”.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
para continuar a usar uma linguagem que não é a que prefiro, direi, então, que a dominação ideológica é condição necessária da dominação hierárquica, faz parte sei aparelho e organização. E suponho que também reconhecerás que é uma ideia insólita pôr alguém que adopte um corpo ideológico que — religioso ou não — afirme e justifique a necessidade de uma hierarquia a lutar por uma sociedade assente na participação igualitária dos cidadãos governantes no exercício do poder. É esta, resumindo muito, a grande objecção que ponho à tua tentativa de inocentar os corpos ideológicos que estipulam um poder hierárquico e a divisão estrutural e permanente entre governantes e governados, por um lado, da própria dominação hierárquica, por outro. Nenhum sistema de poder hierárquico pode manter-se duradouramente sem a adesão ou semi-adesão dos dominados que aquilo a que chamas "corpos ideológicos" lhe garante.

Abraço

miguel(sp)