19/11/15

Uma crónica de antologia de Ricardo Araújo Pereira

Quem não tenha por hábito comprar a revista Visão, não deve deixar de visitar o link publicado pela Joana Lopes, para a ler na íntegra e guardar para memória futura a crónica desta semana de Ricardo Araújo Pereira. Entre os nomes dos que, juntamente com os assassinos, condenam os que ofendem a  sensibilidade religiosa daqueles, figuram "grandes nomes"  (falta, é certo, um tal Santos, particularmente emblemático de certa "esquerda" da região portuguesa, o que não tira um grama de lucidez ao texto) das nossas elites intelectuais, políticas, eclesiásticas e literárias, documentando bem a estupidez abissal com que a oligarquia governante procura — parafraseando O'Neill — perfilar-nos de medo e fazer-nos obedecer.

3 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Mas Miguel, tu não vês que o Estado Islâmico é anti-americano?
Ironias à parte, nalguns espaços (redes sociais, blogues, etc.) os multiculturalistas da nossa esquerda já andam a relativizar os acontecimentos macabros da passada semana em Paris. Ele é o que berra porque não falam de Beirute e só se evoca Paris. Ele é o que diz que o EI é uma orquestração dos EUA e da CIA. Ele é o que diz que Israel faz o mesmo com os palestinianos...
Portanto, a culpa dos atentados nem seria propriamente do EI mas dos imperialistas... Enfim, é o rosário costumeiro de discursos anti-semitas ou de teorias da conspiração. E ainda acham que se deve deixar o EI "para lá" no seu canto e sem intervenção. Como se o EI não quisesse e não estivesse já a actuar numa escala global em favor do seu projecto irracionalista que, entre outras coisas, prevê uma política de extermínio e de completa destruição de qualquer traço de modernidade nas sociedades existentes. Fazer do EI uma suposta e mera marioneta só serve para não se compreender a inserção própria desta organização tenebrosa numa linhagem racista e irracionalista que, nalguns pontos, se assemelha ao nazismo (defesa de políticas de extermínio; eleição de uma raça de senhores detentores de propriedades espirituais e geopolíticas superiores, aspiração a um regresso a um passado puro e dominado por uma mistura de escravismo e de rituais bárbaros de colonização, etc.).

Mas se uma parte significativa da esquerda conseguiu tolerar o nazismo até 1941 porque hoje os multiculturalistas não seriam capazes do mesmo relativamente ao EI? Se fosse hoje, interrogo-me qual seria o comportamento desta esquerda perante o regime nacional-socialista. Provavelmente adoptariam uma abordagem de tolerância para com mais um regime oprimido pelos imperialistas... Não sei se te recordas mas o João Bernardo tem uma passagem sobre este assunto nos "Labirintos do Fascismo". Vale a pena transcrevê-la na íntegra:
«Na primeira das eleições legislativas de 1932, quando o NSDAP acabara de obter um número de votos superior à soma dos votos comunistas e social-democratas, a 12ª reunião plenária do comité executivo do Komintern continuou imperturbavelmente a ver no SPD o inimigo principal. Ernst Thälmann, a primeira figura, pelo menos formalmente, da direcção do KPD, chegou ao extremo de dizer, num discurso em Fevereiro de 1932 perante o comité central, que «quanto à organização do terror, o SPD imita cada vez mais o fascismo de Hitler». Thälmann ignorava, claro, que seria preso um ano mais tarde, não por agentes desse melancólico terror social-democrata que tanto o parecia preocupar, mas pelo verdadeiro terror hitleriano, para nunca mais ser libertado e acabar assassinado onze anos depois em Buchenwald. (...) No final desse ano [1933], com as prisões alemãs já cheias tanto de comunistas como de socialistas, a 13ª reunião plenária do comité executivo do Komintern decretou, numa das suas resoluções, que «a social-democracia continua a desempenhar a função de principal apoio social da burguesia mesmo nos países onde vigora declaradamente uma ditadura fascista» p.695-696 e 704 (https://colectivolibertarioevora.files.wordpress.com/2015/05/labirintos-do-fascismo-nova-versc3a3o.pdf).
As manifestações históricas do relativismo e da tolerância de certa esquerda para com os irracionalismos têm uma longa e triste história.

Um abraço

João Valente Aguiar disse...

Outra questão relacionada com isto. Os atentados do EI estão a acicatar ainda mais o sentimento xenófobo e as políticas contrárias à entrada de refugiados na UE. Isso significa que o fascismo proto-racial do EI e os nacionalismos europeus mais virulentamente anti-migrantes se alimentam retroactivamente. E a esquerda em vez de reflectir nas consequências nefastas deste circuito fechado e de assumir que só começando por se destruir um dos pilares desse circuito perigosíssimo se poderá isolar os sentimentos anti-refugiados e assim se construir uma Europa mais democrática, prefere andar com relativismos perante o horror que o EI quer implantar. Não por acaso a própria questão dos refugiados tem-se resumido na esquerda a uma meia dúzia de comunicados e declarações generalistas e inócuas e zero manifestações práticas em apoio a quem foge do terror do EI.

Se assim é, e passando para uma tentativa de reflexão de tipo mais estrutural, então para que serve esta esquerda que fez e faz menos do que a Merkel e os sectores mais europeístas da UE pelos refugiados e pela luta contra o EI? Não tenho qualquer ilusão sobre o que é a esquerda mais à esquerda. Não fossem os tecnocratas mais lúcidos e estaríamos ainda mais enterrados no lodaçal anti-democrático dos nacionalismos e do terror do EI.

Por isso das duas uma. Ou toda a esquerda será reconstruída de alto a baixo durante as próximas décadas (ou séculos) por amplos e profundos movimentos democráticos de base, ou teremos de passar a confiar na racionalidade técnica dos capitalistas mais transnacionalizados, para evitar que os irracionalismos totalitários tomem conta da vida social. Ou seja, ou as coisas mudam muito ou o capitalismo liberal (que é estruturalmente desigualitário) será visto como uma benção perante as alternativas totalitárias que se querem implantar. De qualquer das formas, com a reconfiguração profunda das formas de inserção institucional dos trabalhadores (que tem impedido qualquer tipo de auto-organização e, pelo contrário, a tem utilizado para expandir colossalmente o capitalismo) e, por outro lado, com o afundamento total das esquerdas radicais e revolucionárias que marcaram o compasso político dos últimos 150-180 anos, é toda uma nova época histórica que se abre. Uma nova época histórica que se baseia nos mesmos mecanismos económicos mas em que, pelo menos para já, e na medida em que a inserção institucional da auto-organização dos trabalhadores continua a contribuir para a expansão do toyotismo, o conflito político se alimenta entre este complexo organismo e as "alternativas" metacapitalistas. Mesmo que estas últimas não venham a vencer, o facto de a discussão política se ter descentrado do eixo trabalho-capital para o da (geo)economia VS geopolítica é a maior prova de que se está a assistir à reconfiguração simbólico-ideológica mais profunda das modalidades de organização institucional da classe trabalhadora. Entre o medo (perfeitamente justificado) dos horrores irredentistas prometidos, por exemplo, pelo EI, e a desarticulação intelectual e política dos padrões de identificação sociológica típicos dos últimos 150-180 anos, a classe trabalhadora levou um sumiço da cena política. Até agora, e possivelmente, em muitos anos que virão, será esta a maior vitória política, ideológica e organizacional dos capitalistas? Se assim for, estará a luta política destinada a um degladiar constante entre os gestores capitalistas e os gestores puramente ideológicos da mais-valia absoluta ou do escravismo rácico-extremista? Num tempo em que a burguesia clássica foi completamente absorvida pelos gestores capitalistas, e por isso quase já não existe, a triangulariedade gestores - burguesia - trabalhadores, que dominou as lutas sociais desde 1789, parece estar a ser substituída, pelo menos no plano político, pela triangulariedade gestores capitalistas - gestores puramente ideológicos (partidários do que o João Bernardo denomina de metacapitalismo) - trabalhadores? Prefiro as interrogações ao conforto das certezas dúbias e que só alimentam os fanatismos de todo o tipo.

joão viegas disse...

Ola Miguel (e João),

Também li e gostei do texto do RAP. Curiosamente, ou se calhar nem tanto, mas não sei até que ponto o autor esta consciente disso, o texto põe em relevo um aspecto essencial : embora nos deixemos muitas vezes iludir a este respeito, existe uma diferença enorme, abissal, entre "escarnecer, achincalhar, denegrir ou ofender a fé de uma pessoa" e "escarnecer, achincalhar, denegrir ou ofender uma pessoa por causa da sua fé".

As dificuldades e hesitações que experimentamos tantas vezes nesta matéria explicam a meu ver, completa e definivamente, os contrasensos de que brotam as nossas indignações, tanto num sentido como no outro.

Mas repara que o que esta em jogo é essencial : a destruição de uma crença não repugna à moral, muito menos ao direito ; mas a destruição de uma pessoa ja levanta sérias dificuldades...

Abraço

PS : Li também os comentarios do João Valente Aguiar e tendo a concordar com ele, mas julgo que falta talvez uma pequena nota zoologica para explicar a que espécie ele se esta a referir concretamente quando fala nos "multiculturalistas".