31/01/17
Guterres e as autoridades palestinianas
por
Miguel Serras Pereira
Deixem-me ver se compreendi bem a engenhosa correcção política das autoridades palestinianas ofendidas com as declarações de Guterres sobre o Monte do Templo de Jerusalém. A ideia parece ser a seguinte: se as autoridades israelitas agem injustamente na Palestina, é legitimar a sua injustiça afirmar que "o templo que os romanos destruíram em Jerusalém era um templo judeu" e que, sendo todavia essa a verdade histórica — ou, sobretudo, porque o é —, torna-se evidentemente necessário substituí-la por algum "facto alternativo". O que nem sequer é difícil, bastando, por exemplo, sustentar para o efeito que, embora tenha havido um templo judeu no local, destruído mais de quinhentos anos a.C., a verdade é que, sendo os templos judeus falsos templos, o primeiro templo não pode ter sido senão a mesquita edificada mais de setecentos anos d.C. Só a pouca ou má fé de alguns pode aqui dar lugar a margem para dúvidas.
A vida dura de Jeremy Corbyn. O elefante na sala -I
por
José Guinote
Jeremy Corbyn tem tido uma vida penosa desde que foi eleito líder do Labour. Às
sucessivas tentativas de o substituir na liderança do partido tem logrado resistir, mas o Brexit
e as suas consequências políticas internas parecem estar a arrastá-lo, e ao Labour, para um enorme buraco sem fundo.
No entanto, o líder da oposição aos Tories acerta em
muitas das análises que faz e tem um discurso que se revelou mobilizador,
promovendo mesmo o reforço da militância em torno do Labour.
A participação de Jeremy Corbyn na Conferência dos
partidos socialistas europeus que decorreu em Praga, entre os dias 1 e 3 de
Dezembro, permite ilustrar a clareza da sua leitura politica. Nessa
conferência Corbyn teve várias intervenções que mereceram bastante destaque e
que, com excepção aqui do burgo mais à beira mar plantado, foram noticia e
objecto de discussão. Não era para menos. A intervenção de Corbyn constituiu
uma análise rigorosa das razões para o falhanço dos socialistas europeus e um
conjunto de propostas de mudança da actuação politica dos socialistas que
permita alterar as coisas. O homem que Bill Clinton apelidou do
"mais maluco na sala", quer realizar uma conferência em Londres para
discutir uma nova orientação politica para o socialismo europeu e para criar as
condições para um desenvolvimento equitativo.
A primeira razão para a crescente irrelevância
socialista no contexto europeu - recorde-se que Rajoy ganha eleições atrás de
eleições em Espanha, que o PSD só foi retirado do poder com o recurso à
coligação das esquerdas, que Hollande chegou a um tal grau de impopularidade
que o obrigou a desistir da recandidatura presidencial pretendendo ceder o
lugar ao direitista Manuel Valls –as sondagens indicam que o candidato
socialista não irá à segunda volta apesar da vitória de Benoît Hamon sobre Valls-
que Matteo Renzi, um socialista da mesma ala direitista de Valls, foi derrotado
depois de ter tentado, por via
referendária, diminuir drasticamente o carácter representativo da democracia
italiana, que na Alemanha os socialistas não descolam do papel de ajudantes de
campo da senhora Merkell e o recurso ao ex-presidente do PE Martin Schulz, não
os retira desse papel - é o facto de serem vistos como defensores do mesmo
modelo económico falhado, mais do que um veículo para a transformação da
sociedade. O famoso pilar esquerdo que tem suportado o neoliberalismo e que
Blair e outros construíram com tanto desvelo.
Essa adesão efectiva ao neoliberalismo pode
observar-se nas politicas concretas e na forma como a governação é “compatibilizada”
com o modelo dominante de compressão das despesas públicas em sectores onde a
acção do estado é fundamental – saúde, educação, habitação entre outros –
favorecendo a acção do sector privado em nome de um crescimento milagroso.
Milagroso porque, através da adopção de politicas fiscais cada vez mais liberais
favorece a desigual acumulação da riqueza.
Os partidos socialistas - segundo Corbyn - são
vistos como defensores do status quo e dessa forma os cidadãos
viram-lhes as costas já que o status falhou, como eles sentem dolorosamente no
seu dia a dia. Abandonar os princípios apenas porque alguém defendeu - e
defendem ainda hoje, como se vê pela ala direita do PS português - que sem essa
abdicação nunca chegarão ao poder, é - foi ao longo de anos - um erro crasso,
um disparate. A famosa teoria da "importância do centro" que a última
sondagem divulgada em Portugal veio recuperar do bau onde estava conservada com
a adequada dose de bolas de naftalina.
Os seus confrades muitos deles fortemente comprometidos nestas politicas
devem ter deplorado esta companhia. (Podem-se escutar alguns momentos da
intervenção de Corbyn aqui ).
Ora um dos problemas com que Corbyn se depara neste preciso momento resulta da posição que resolveu adoptar face ao Brexit. Uma posição de não oposição com base num reclamado respeito pela decisão popular.
Corbyn que liderou uma campanha pela manutenção na UE e pela sua reforma - Remain and Reform - aparece nesta altura tolhido pelas contradições que o Brexit testemunha e que atravessam a sociedade inglesa dividindo de forma brutal o eleitorado tradicional do Labour.
30/01/17
Criminalizar o "bullying"?
por
Miguel Madeira
A APAV fala em "criminalizar o bullying" (pelo contexto, presume-se que o escolar).
A esse respeito, repito o que escrevi há 7 anos:
[B]em, em primeiro lugar, espero que na lei não apareça a palavra "bullying", porque senão irá ser uma trabalheira para em cada caso concreto decidir o que é isso (...).
Mas será que isso é boa ideia?
Receio que não - no caso da violência física, ela já é um crime por si só, e não é por isso que deixa de existir (criar um novo artigo na lei para isso já vai criar confusão).
E o caso da "violência psicológica" (provavelmente o bullying psicológico até será muito mais frequente que o físico)? É possível que a "violência psicológica" (sobretudo na pré-adolescência/adolescência, em que a nossa personalidade e estabilidade emocional são mais frágeis) até seja mais traumatizante do que a física, até porque é muito mais fácil defendermo-nos da violência física (em ultima análise, o compasso das aulas de Educação Visual ou o x-acto das de Trabalhos Oficinais podem dar uma ajuda) do que da psicológica; mas a criminalização servirá para combater a violência psicológica?
Duvido, porque:
- em primeiro lugar, é muito dificil a um observador externo distinguir entre violência psicológica prolongada e simples brincadeiras de mau gosto, logo o bullying psicológico seria quase impossível de provar num tribunal (com as implicações em termos de ónus da prova que um processo criminal tem)
- em segundo lugar, duvido que, confrontados com um caso de bullying psicológico, as autoridades judiciais o levassem a sério; p.ex., se naquele caso da rapariga dos EUA que se suicidou (e que agora originou um enorme escândalo, uma carrada de processos crime, etc.), ela, em vez de se ter enforcado, tivesse ido à polícia ou a um tribunal queixar-se que as colegas chamavam-na de "vaca" (tentativa de traduzir "slut"), suspeito que lhe teriam-lhe respondido algo como "mas achas que não temos mais nada que fazer??".
- em terceiro lugar, se existir mesmo uma politica de ser duro com o bullying psicológico, ela pode degenerar facilmente em excessos de zelo, em que as pessoas fiquem com medo de dizer seja o que for uns aos outros, não vá alguém acusá-los de bullying
29/01/17
"Florzinhas de estufa politicamente corretos!"
por
Miguel Madeira
É o que são os que estão contra o tal livro do Valter Hugo Mãe no Plano Nacional de Leitura, não?
[Um aparte - eu tenho muitas objeção ao conceito de um "Plano Nacional de Leitura", mas isso fica para outra ocasião]
[Um aparte - eu tenho muitas objeção ao conceito de um "Plano Nacional de Leitura", mas isso fica para outra ocasião]
27/01/17
O plágio como homenagem?
por
Miguel Madeira
É impress~~ao minha ou há por aí uma blogger recem-contratada que, após uma fama inicial passageira, parece estar a especializar-se no plágio?
O sexo fora do casamento deve ser ilegal, porque senão vai haver violações
por
Miguel Madeira
Imagino que seja algo como isto que a Helena Matos quer dizer neste post.
25/01/17
Acerca da arte de preservar os fundamentos do regime
por
José Guinote
Portugal mantêm-se firmemente determinado a ignorar o combate à corrupção. O País estagna, ou retrocede, no combate a este flagelo associado de forma estreita à desigualdade social e ao atraso económico.
No quadro das relações de poder existentes o combate à corrupção não é uma prioridade. Há anos que em Portugal não é uma prioridade. Quem está do lado dos poucos que muito beneficiam com a desigualdade exerce o poder para manter, no essencial, a situação estável e duradoura. Eficazmente.
No quadro das relações de poder existentes o combate à corrupção não é uma prioridade. Há anos que em Portugal não é uma prioridade. Quem está do lado dos poucos que muito beneficiam com a desigualdade exerce o poder para manter, no essencial, a situação estável e duradoura. Eficazmente.
23/01/17
"Fogo amigo"... vindo do quartel-general
por
Miguel Madeira
Vital Moreira queixa-se do "fogo amigo" dentro da maioria parlamentar que apoia o governo:
O caso extremo é mesmo a TSU - porque aqui os acordos assinados com os Verdes[pdf] e com o Bloco diziam mesmo que não constariam do programa do governo qualquer redução da TSU paga pelos empregadores (é verdade que esta redução, mesmo que aprovada pelo governo, não está no programa, logo, tecnicamente, não está violando os acordos, mas isso é pouco mais do que jogar com as palavras).
*declaração de interesses: sou um potencial utente da Via do Infante e trabalho no Centro Hospitalar do Algarve
A possibilidade de a inédita aliança governativa de esquerda perdurar até ao fim da legislatura em 2019 pressupõe pelo menos duas coisas: (...) Governo consegue controlar o "fogo amigo" dos seus próprios aliados no parlamento, que não hesitam em fazer maioria negativa com a direita parlamentar em questões politicamente sensíveis, como sucede agora com a baixa da TSU (e já tinha sucedido anteriormente no caso da administração da CGD).Vamos lá ver o que estava em discussão em ambos os casos - na CGD, era os elevados salários da administração e, sobretudo, a suposta isenção de entregar a declaração de património; na TSU, é a redução da contribuição patronal - em ambos os casos, BE, PCP e PEV estão a fazer exatamente o que corresponde à sua matriz ideológica, o PSD e (no caso da CGD) o CDS é que fizeram as piruetas (aliás, basta ver as críticas que comentadores de direita como o António Lobo Xavier têm feito à posição do PSD e/ou do CDS nestas questões).
Os supostos aliados do Governo não podem escolher apoiá-lo só quando lhes convém e aliar-se à direita para o derrotar sempre que lhes aprouver. Isso não é aliança nenhuma! Ubi commoda ibi incommoda!Mas a filosofia dos acordos entre o PS e os partidos mais à esquerda é exatamente essa - há um acordo em que os partidos se comprometem em determinados assuntos, e nos assuntos não cobertos por esse compromisso, cada partido mantêm a sua liberdade de atuação; assim se o PS e o governo têm autonomia para aprovar políticas para a CGD ou sobre a TSU (ou, já agora, sobre a Via do Infante ou o Centro Hospitalar do Algarve*), sem precisarem do acordo prévio do BE, do PCP e do PEV, então o corolário lógico é que o BE, o PCP e o PEV têm autonomia para votarem como bem entenderem. Aliás, vendo que os casos de ferrugem na "gerigonça" tem sido em situações em que o PS defende posições em que quase toda a gente reconhece que era mais natural ter o apoio da direita do que da esquerda, parece-me que se alguém está a fazer "fogo amigo" sobre os aliados é mesmo o "general PS" (e perante fogo amigo vindo do seu suposto aliado, quem pode criticar o BE ou o PC por aceitarem a ajuda que momentaneamente os soldados do outro lado da trincheira lhes dão?).
O caso extremo é mesmo a TSU - porque aqui os acordos assinados com os Verdes[pdf] e com o Bloco diziam mesmo que não constariam do programa do governo qualquer redução da TSU paga pelos empregadores (é verdade que esta redução, mesmo que aprovada pelo governo, não está no programa, logo, tecnicamente, não está violando os acordos, mas isso é pouco mais do que jogar com as palavras).
*declaração de interesses: sou um potencial utente da Via do Infante e trabalho no Centro Hospitalar do Algarve
18/01/17
Mais leis anti-greve no Reino Unido?
por
Miguel Madeira
Fifty MPs demand anti-strike laws to stop further misery from transport unions (The Telegraph):
Recorde-se que recentemente o Reino Unido (um dos países europeus em que as greves estão mais limitadas) aprovou legislação restringindo ainda mais o direito à greve, estabelecendo que as votações para declarar greve têm que ter uma participação de pelo menos 50% e que em serviços essenciais pelo menos 40% votem a favor da greve (ao que me parece, isso quer dizer, se num desses serviços, 50% dos trabalhadores participarem numa votação para entrar em greve, 80% dos votantes têm que votar a favor da greve). Mas pelos vistos isso não foi suficiente e agora vários deputados querem que, nos tais serviços essenciais, a greve, depois de ir a votação, seja ainda aprovada por um juiz, que ache que a greve é "razoável e proporcionada".
A esse respeito o blogue Flip Chart Fairy Tales escreve:
Fifty Tory MPs are demanding that the Government brings in tougher strikes laws to ensure the “widespread misery” seen on Southern Rail can never be repeated.[Atenção que o Thelegraph é um jornal conservador, para contextualizar alguns qualificativos que eles metem na notícia, como a referência à "misery"]
Writing to the Telegraph, the politicians claim that unions are using the “flimsy pretext” of safety concerns to cause “wide-scale disruption”.
They want new legislation that bans strikes on “critical public infrastructure” such as train and bus services unless the action is proved “reasonable and proportionate” by a judge.
Recorde-se que recentemente o Reino Unido (um dos países europeus em que as greves estão mais limitadas) aprovou legislação restringindo ainda mais o direito à greve, estabelecendo que as votações para declarar greve têm que ter uma participação de pelo menos 50% e que em serviços essenciais pelo menos 40% votem a favor da greve (ao que me parece, isso quer dizer, se num desses serviços, 50% dos trabalhadores participarem numa votação para entrar em greve, 80% dos votantes têm que votar a favor da greve). Mas pelos vistos isso não foi suficiente e agora vários deputados querem que, nos tais serviços essenciais, a greve, depois de ir a votação, seja ainda aprovada por um juiz, que ache que a greve é "razoável e proporcionada".
A esse respeito o blogue Flip Chart Fairy Tales escreve:
Two months ago, Dominic Raab accused judges of “ivory tower logic” after they ruled that the decision to leave the European Union, based on the votes of 37 percent of the electorate, needed the approval of parliament.Notando também que proibir as greves pode ter resultados contrários aos pretendidos:
He seems to have changed his opinion now though. On Sunday, he and 49 like-minded Tory MPs called for judges to overrule strike ballots if they deemed the proposed action not to be “reasonable and proportionate”. Judges, it seems, are not so ivory towered that they cannot rule on industrial disputes.
The government’s Trade Union Act, which was supposed to be the answer to all this industrial militancy, has not yet been implemented but already there are signs that it might not have much impact. The various forms of industrial action called by a number of unions just before Christmas were supported by majorities that would be within the proposed new law. Increasing the ballot threshold to 40% will not necessarily reduce the number of strikes. It might even raise turnouts, thereby strengthening the union negotiators’ hands.
The anti-union MPs have therefore moved on. If workers still insist on taking industrial action, the only thing to be done is to stop pussyfooting around and ban it altogether.
Where strikes are banned, workers often come up with more ingenious ways of protesting, such as refusing to collect fares, forgetting their driving licences on the same day or flash mobbing shops. Social media makes such things easier to organise. This sort of action is much more difficult to control. With a balloted strike at least there is some warning, allowing employers and passengers to make contingency plans. With something like a sick-out, you wouldn’t know anything about it until you turned up at the station on a cold Monday morning to find that no trains were running.
Perhaps this is why, since the 19th century, no British government has ever banned strikes in peacetime. You can’t legislate against industrial conflict. Industrial action provides a safety valve in the absence of which, the conflict will simply manifest itself in other less manageable and often more disruptive forms.
17/01/17
Boa ideia, não?
por
Miguel Serras Pereira
A propósito da presente encruzilhada do PODEMOS, talvez seja boa ideia não esquecer que, se o poder da gente é inversamente proporcional ao dos políticos profissionais, é-o ainda mais à sacralização do poder de um profissional da liderança única e por direito próprio que aspire ao exclusivo da representação da mesma gente, sem lhe permitir quaisquer quaisquer veleidades sacrílegas de participação por conta própria no exercício do poder que a governa.
16/01/17
Desigualdade Extrema. O grande problema politico e social do nosso tempo.
por
José Guinote
Oito empresários acumulam o mesmo que a metade mais pobre da população mundial.
Esta realidade torna obscena a tese do efeito trickle-down que o neoliberalismo utiliza para justificar a acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos para ... mais tarde todos virem a beneficiar.
Keynes deixou claro que a teoria era insusceptível de ser verificada já que "mais tarde" estaríamos todos mortos.
Esta gente obscenamente rica vai reunir em Davos, o local que celebra, ano após ano, a desigualdade extrema e o saque, por uma ínfima minoria, dos recursos do planeta.
Não se entende porque declarou o ministro da economia que Davos era uma oportunidade para a economia portuguesa.
ADENDA: Pode-se acrescentar que esta situação catastrófica, que constitui um regresso à barbárie, é o resultado de um longo processo de construção politica em que parte da esquerda colaborou - e colabora - entusiasticamente.
Esta realidade torna obscena a tese do efeito trickle-down que o neoliberalismo utiliza para justificar a acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos para ... mais tarde todos virem a beneficiar.
Keynes deixou claro que a teoria era insusceptível de ser verificada já que "mais tarde" estaríamos todos mortos.
Esta gente obscenamente rica vai reunir em Davos, o local que celebra, ano após ano, a desigualdade extrema e o saque, por uma ínfima minoria, dos recursos do planeta.
Não se entende porque declarou o ministro da economia que Davos era uma oportunidade para a economia portuguesa.
ADENDA: Pode-se acrescentar que esta situação catastrófica, que constitui um regresso à barbárie, é o resultado de um longo processo de construção politica em que parte da esquerda colaborou - e colabora - entusiasticamente.
15/01/17
Cadáveres, carpideiras e Despedidas
por
Jorge Valadas
Um acontecimento banal, a morte de um homem de idade
avançada. Como tantas outras mortes. Que foi transformado em acontecimento excepcional
pelo trabalho intenso da chamada comunicação social, ou melhor, da propaganda
social.
Em última análise, a morte do Sr. Soares só tem um aspecto
que nos interessa. Mostrar que só na morte os políticos são iguais aos seres
humanos. Ou, melhor dizendo, que só no destino humano da morte se tornam
verdadeiramente humanos. Para além disso, há que reconhecer que o
desaparecimento de um político deixa sempre o mundo melhor, o que nestes tempos
terríveis já é alguma coisa.
Toda a gente carpiu o Sr. Soares, desde ex-esquerdistas
até ex-salazaristas. O que se pode ler e ouvir foi um verdadeiro atentado à
inteligência. Mais um exemplo de como a política puxa os espíritos para baixo,
reduz tudo a um denominador comum medíocre. Que falta de exigência e de respeito
por si próprio revelaram todos estes comentários, elogios bacocos asseptizados
com a amnésia do passado! Finalmente qual foi o verdadeiro papel político
do personagem nos anos da Revolução ?
Merecemos melhor do que isto.
Surpresa feliz: lá para os lados da Póvoa de Varzim,
alguém foi capaz de levantar o estandarte de um jornalismo de opinião livre e
frontal. Estou a falar do texto assinado por Artur Queiroz no modesto jornal local,
A Voz da Póvoa, que um amigo me fez
chegar. E que aqui vos deixo como meu último post no Vias de Facto.
Como comenta o dito amigo: a única voz
livre neste país, o único jornal pluralista, é a Voz da Póvoa! Ele exagera
um pouco, mas só um pouco, que a miséria está à vista!
Sim, o último post.
Não é que a morte do tal político tenha algo a ver com a minha decisão,
igualmente insignificante, sobre o fim da minha colaboração com o Vias. Embora, tenho de o reconhecer, o
que tenho lido no blog a este propósito e sobre outras politiquices não
me tenha encorajado a continuar… Como se viu com o Sr. Soares, desde merceeiro
a falsário e a político, toda actividade tem um fim. Mesmo a de blogueiro. Gostei de por cá andar, li
textos que me interessaram e instruíram, outros que me danaram, escrevi umas
linhas sobre as minhas convicções, que tocaram alguns, desagradaram a outros. Assim
foi. Nestes tempos difíceis, que mais difíceis vão ser, é bom não dispersar as
energias, e vou dar preferência à minha crónica no jornal Mapa que a malta jovem vai lutando para fazer viver, e de cujo
último número, que acaba de sair, aconselho a leitura. Agradeço ao Miguel
Serras Pereira por me ter convidado para a aventura, a confiança, a ajuda e o apoio
que me deu para além dos desacordos circunstanciais, e também ao Miguel Madeira,
que nos momentos mais angustiados da minha incompetência com as novas
tecnologias esteve disponível e solidário. Que por obra do santo espírito das
novas tecnologias o meu nome desapareça da lista dos colaboradores do blog. Agradecido e a todos boa sorte e
saúde.
-----------
UMA
TRAGÉDIA A DOBRAR
O jornalismo Português e a Morte de Mário Soares
A morte de Mário Soares foi uma tragédia para a
comunicação social portuguesa, porque revelou estar totalmente virada para a
propaganda, abandonando em definitivo princípios como o rigor e a
objectividade. A imprensa chinesa passou dias a endeusar Mao Tse Tung quando o
velho revolucionário da Longa Marcha morreu. Os portugueses bateram largamente
os chineses no culto da personalidade e no endeusamento do antigo Presidente da
República. Bateram-se mano a mano com os propagandistas da Coreia do Norte,
quando Kim Il Sung faleceu.
Balsemão, Belmiro, Rosita da TVI, polícias-jornalistas do
“Correio da Manhã” ou da “Sábado” perderam a cabeça e fizeram de Portugal uma
espécie de Alemanha de Hitler ou de Uganda de Idi Amin. O sector público da
comunicação social copiou escandalosamente o “Diário do Povo” de Pequim ou o
velho “Pravda” da defunta União Soviética. A morte de Mário Soares serviu para
a mais primária campanha de propaganda que alguma vez se viu em Portugal. Se
António Ferro, o propagandista do regime salazarista, estivesse vivo, morria de
vergonha. Os propagandistas até conseguiram fazer de Mário Soares o primeiro Presidente
da República eleito! Claro que acrescentaram uma palavra: “civil”. Eanes que se
lixe, não passa de um general que recusou ser marechal. Apresentaram o extinto
líder socialista como pai da liberdade e da democracia em Portugal. O maior de
todos os políticos. O máximo da tolerância, o supremo guardião da paz. Nem uma
voz, em surdina que fosse, ousou perturbar a propaganda.
Quando o pai da liberdade era primeiro-ministro, Otelo
Saraiva de Carvalho foi preso. E esteve vários anos na cadeia. Depois foi
absolvido. O comandante operacional do 25 de Abril e seus companheiros do
MFA, que deram o corpo ao manifesto para libertarem os portugueses do regime
fascista, não valem nada comparados com Soares.
O expoente máximo da tolerância cilindrou figuras do seu
partido como Salgado Zenha ou Lopes Cardoso. Aliou-se ao Exército de Libertação
de Portugal (ELP) para derrubar o regime revolucionário nascido no 25 de Abril
de 1974. Criaram uma rede bombista que fez atentados em todo o país. E nas
explosões morreram civis inocentes. Soares foi amigo e aliado de Alpoim Calvão,
Spínola, Cónego Melo e vários operacionais que fizeram atentados à bomba e
incendiaram sedes de partidos políticos democráticos.
O pai da democracia recebeu Jonas Savimbi no Palácio de
Belém, na época líder de um grupo armado ao serviço do regime de apartheid da África do Sul, que matava e
destruía em Angola, país amigo de Portugal. Em Pretória pontificavam os nazis.
Savimbi, quando foi recebido pelo presidente Soares já tinha assumido
publicamente um atentado bombista na sala de embarque do Aeroporto
Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda, que causou dezenas de vítimas civis. O
amigo do antigo Presidente da República fez explodir vagões-cisternas, cheios
de combustíveis, num comboio que estava parado na estação de Zenza do Itombe.
Resultado: centenas de mortos civis. Alguns sobreviventes ainda hoje mostram as
cicatrizes das queimaduras graves que sofreram com o ataque terrorista.
O pai da liberdade esteve conluiado com a CIA,
organização responsável por milhões de mortos em todos os continentes. O
embaixador Frank Carlucci e o antigo líder socialista prepararam várias acções
que culminaram com o derrube do regime revolucionário iniciado em 25 de Abril
de 1974.
A operação de propaganda serve para esconder estes e
outros factos que dão de Mário Soares uma dimensão mais própria de homens do
que de deuses. E mostram um político que não hesitou em aliar-se ao pior lixo
que sobreviveu ao regime fascista ou apoiou Savimbi, ponta de lança da agressão
dos racistas sul-africanos a Angola.
Quando estive na Coreia do Norte, uma simpática guia
mostrou-me os sítios, de norte a sul do país, onde Kim Il Sung descansou, onde
comeu uma bucha, limpou a arma, tirou uma soneca, escreveu um poema, desbaratou
um grupo inimigo, falou aos soldados, amou uma mulher. Tudo o que eu via, tinha
a ver com o grande líder. Mais de 40 anos depois levo uma injecção de Mário
Soares, atrás da orelha e nos olhos, que me deixou abananado. Que ressuscite a
liberdade de imprensa! Soares é imortal.
Artur Queiroz,
Jornal Voz da Póvoa (9 a 15 Janeiro
2017)
14/01/17
As primárias adiadas no PS. As coisas são como são.
por
José Guinote
O PS, tudo o indica, não irá adoptar as primárias na escolha dos seus candidatos às próximas eleições autárquicas. Julgo que este facto não suscitará qualquer estranheza. O assunto necessita de ser discutido "aprofundadamente" e ainda não foram construídos os "estudos/escafandros" que permitirão aprofundar a discussão. Esses estudos são vitais, dizem. Assim sendo uma decisão politica em defesa de uma maior abertura à sociedade e de uma maior transparência no PS é recusada com o alíbi da falta de "profundidade" do debate.
Duas notas sobre esta questão: António Costa foi eleito com o voto de milhares de cidadãos que não eram militantes do PS, num processo de Primárias para o lugar de Secretário-Geral do ... PS. Deve-o a António José Seguro; Mário Soares - há diferenças que são muito evidentes - nunca recusou uma ideia politica que considerasse ser a mais adequada, com base no alíbi da falta de estudos. Da mesma forma que não hesitou um minuto na defesa da adesão à União Europeia por mais estudos e pareceres de economistas a alertá-lo para a catástrofe que aí vinha.
Duas notas sobre esta questão: António Costa foi eleito com o voto de milhares de cidadãos que não eram militantes do PS, num processo de Primárias para o lugar de Secretário-Geral do ... PS. Deve-o a António José Seguro; Mário Soares - há diferenças que são muito evidentes - nunca recusou uma ideia politica que considerasse ser a mais adequada, com base no alíbi da falta de estudos. Da mesma forma que não hesitou um minuto na defesa da adesão à União Europeia por mais estudos e pareceres de economistas a alertá-lo para a catástrofe que aí vinha.
07/01/17
Soares. Um homem livre
por
José Guinote
Soares foi o politico português que marcou, como nenhum outro, de forma indelével, o último século português. É aquele cuja influência mais perdurará nos tempos que virão.
Podemos enunciar cada um dos grandes acontecimentos em que se envolveu e salientar o lado solar e o lado negro que lhe estão associados. Dar voz aos que o apoiaram nessas medidas e àqueles que as detestaram e dessa forma detestaram/odiaram e ainda detestam/odeiam aquele a quem atribuem a sua autoria. Não vale, no entanto, a pena ir por aí.
Basta falar da oposição à ditadura e da defesa da liberdade, com sacrificio da sua e dos seus. Basta falar da descolonização. Basta falar da defesa da democracia pluripartidária e do combate pela sua implantação no pós-25 de Abril. Basta falar da adesão à União Europeia e do ponto final no Portugal salazarento do orgulhosamente sós. Basta falar do combate de sempre contra o domínio da economia sobre a politica, contra o neoliberalismo, contra a austeridade, contra as politicas seguidas nas últimas décadas na UE e globalmente. Basta falar das críticas à Terceira Via de Blair e da sua simpatia pelo papel de partidos como o Syriza ou o Podemos. Basta falar no apoio à unidade das esquerdas no apoio ao Governo liderado por Costa. Basta falar da visão de Portugal no mundo e da recusa do nacionalismo português ou de qualquer outro nacionalismo. Basta falar da dessacralização do lugar de Senador da República, fazendo prevalecer o cidadão-politico, o homem que fez da actividade politica de todos os dias, de todas as causas, o razão maior da existência, até ao fim da vida.
Um homem extraordinário, por todas as suas qualidades e por todos os seus defeitos. Pela sua humanidade.
Um argumento a favor das quotas de género
por
Miguel Madeira
Quando se fala em "quotas de género" (p.ex., estipulando um mínimo de cada sexo em orgãos de gestão, como a proposta que parece que vai ser aprovada), costumam aparecer argumentos contra, em termos como:
"É uma ofensa às mulheres acharem que elas precisam de quotas para progredirem"
ou
"Deveremos nomear alguém incompetente só porque é mulher?".
Ou seja, mesmo os argumentos contra costumam ser feitos assumindo que as quotas vão ter como destinatário as mulheres; ora, à partida, uma lei estipulando um mínimo de indivíduos de cada sexo tanto poderia beneficiar mulheres como homens; tanto poderíamos ter uma situação em que se nomeava uma mulher incompetente porque todos os outros membros da administração eram homens como outra situação em que se nomeava um homem incompetente porque todos os outros membros da administração eram mulheres.
O que é que o facto de se assumir que as quotas vão beneficiar as mulheres e não os homens significa? A mim parece-me que implica que continua a ser dominante um modelo mental que assume que a ordem natural das coisas é os cargos de direção serem maioritariamente ocupados por homens, e que portanto se alguém for nomeado por causa de uma regra estipulando quotas, esse alguém será em principio uma mulher. Ora, a força que (pelo que se vê) esse modelo mental tem parece-me ser uma boa razão para haver quotas.
Um aparente contra-argumento pode ser algo como "Miguel, isso não tem nada a ver com modelos mentais subconscientes - o que se passa é que simplesmente grande parte das pessoas julga que essas leis estipulam quotas para mulheres, e não quotas para ambos os sexos"; em parte é verdade, mas no fundo vai dar ao mesmo: o motivo porque na cultura popular as "quotas para cada sexo" se transformam em "quotas para mulheres" é porque, como se assume que essas quotas vão na prática ser destinadas às mulheres, toda a gente (mesmo os que conhecem o que dizem mesmo as leis) lhes chama "quotas para mulheres", levando a que quem não passe a vida a estudar esses assuntos em detalhe julgue que se trata, mesmo formalmente, de quotas para mulheres - ou seja, mesmo isso é um resultado de se considerar a predominância masculina como o "default".
"É uma ofensa às mulheres acharem que elas precisam de quotas para progredirem"
ou
"Deveremos nomear alguém incompetente só porque é mulher?".
Ou seja, mesmo os argumentos contra costumam ser feitos assumindo que as quotas vão ter como destinatário as mulheres; ora, à partida, uma lei estipulando um mínimo de indivíduos de cada sexo tanto poderia beneficiar mulheres como homens; tanto poderíamos ter uma situação em que se nomeava uma mulher incompetente porque todos os outros membros da administração eram homens como outra situação em que se nomeava um homem incompetente porque todos os outros membros da administração eram mulheres.
O que é que o facto de se assumir que as quotas vão beneficiar as mulheres e não os homens significa? A mim parece-me que implica que continua a ser dominante um modelo mental que assume que a ordem natural das coisas é os cargos de direção serem maioritariamente ocupados por homens, e que portanto se alguém for nomeado por causa de uma regra estipulando quotas, esse alguém será em principio uma mulher. Ora, a força que (pelo que se vê) esse modelo mental tem parece-me ser uma boa razão para haver quotas.
Um aparente contra-argumento pode ser algo como "Miguel, isso não tem nada a ver com modelos mentais subconscientes - o que se passa é que simplesmente grande parte das pessoas julga que essas leis estipulam quotas para mulheres, e não quotas para ambos os sexos"; em parte é verdade, mas no fundo vai dar ao mesmo: o motivo porque na cultura popular as "quotas para cada sexo" se transformam em "quotas para mulheres" é porque, como se assume que essas quotas vão na prática ser destinadas às mulheres, toda a gente (mesmo os que conhecem o que dizem mesmo as leis) lhes chama "quotas para mulheres", levando a que quem não passe a vida a estudar esses assuntos em detalhe julgue que se trata, mesmo formalmente, de quotas para mulheres - ou seja, mesmo isso é um resultado de se considerar a predominância masculina como o "default".
06/01/17
USA. A batalha entre Republicanos e Democratas e os conflitos de interesse que apoquentam Trump.
por
José Guinote
Além do conflito entre democratas e republicanos em torno do Obamacare, os dois partidos estão a posicionar-se para uma longa batalha. A maioria republicana nas duas câmaras talvez não seja suficiente para permitir aos republicanos uma radical mudança nas politicas. Com efeito existem diversas sensibilidades entre eles e, no caso do Obamacare, o próprio presidente eleito não pretende dar cobertura aos sectores mais radicais da sua bancada.
A batalha vai agora seguir para a questão das polémicas nomeações de Trump para a sua equipa governamental. Os democratas questionam a nomeação de oito entre eles. E prometem audições dificeis. A isto deve-se somar a própria situação de Trump cujos negócios e teia de interesses internacionais podem eventualmente conflituar com a função a desempenhar.
Obama está a empenhar-se na preparação do combate politico que visa reagir às iniciativas do novo presidente e defender o seu legado. Um facto relativamente invulgar na politica americana, como salientam os comentadores.
A batalha vai agora seguir para a questão das polémicas nomeações de Trump para a sua equipa governamental. Os democratas questionam a nomeação de oito entre eles. E prometem audições dificeis. A isto deve-se somar a própria situação de Trump cujos negócios e teia de interesses internacionais podem eventualmente conflituar com a função a desempenhar.
Obama está a empenhar-se na preparação do combate politico que visa reagir às iniciativas do novo presidente e defender o seu legado. Um facto relativamente invulgar na politica americana, como salientam os comentadores.
05/01/17
Ainda as "Teses da Urgeiriça"
por
Miguel Madeira
Voltando às tais "teses" que supostamente estão a dar a volta ao mundo, será que têm realmente alguma grande inovação?
Pelo que percebo a essência das "teses" é:
- A Rússia czarista (e suponho que também a China pré-1949) seria uma sociedade mista, em parte feudal, em parte capitalista
- Dessa forma, a revolução para derrubar o feudalismo acabou por ser feita pela classe operária
- No entanto, devido ao atraso económico da Rússia, mesmo com uma revolução feita pela classe operária, não foi possível implementar o socialismo, tendo o resultado sido o capitalismo monopolista de estado
- Uma revolução proletária num país semi-capitalista/semi-feudal só poderia conduzir ao socialismo se não ficasse limitada a um país isolado
- Finalmente, há a analogia com a Revolução de 1383/1385, que teria sido feita pela burguesa mas que teria mantido o sistema feudal em funcionamento (da mesma forma, a Revolução de Outubro teria sido feita pela proletariado mas mantendo o sistema capitalista)
Os quatro primeiros pontos parecem-me familiares - isso é praticamente a tese de Trotsky sobre a revolução russa; a única diferença é considerar que a URSS e a RPC eram "capitalistas monopolistas de estado", enquanto os trotskistas dizem que eram "estados operários degenerados/deformados", mas mesmo assim há correntes trotskistas que consideram que realmente eram "capitalistas de estado", como a do Socialist Workers Party britânico/Tendência Socialista Internacional, tal como certos grupos dissidentes do trotskismo, como a tendência Johnson-Forest ("Johnson" = C.L.R. James; "Forest" = Raya Dunayevskaya) dos EUA e, nos seus primeiros anos, o grupo Socialisme ou Barbarie de Castoriadis em França (que penso que depois evoluiu para outras caracterizações). E, claro, os maoístas sempre chamaram "capitalismo de estado" à URSS, e de certeza que foi dai que Arnaldo Matos foi buscar o nome.
E outra diferença é que os trotskistas sempre tentaram apresentar a sua tese como sendo "leninista" (até para se defenderem dos ataques estalinistas de que seriam anti-leninistas), argumentando que a partir de certa altura (suponho que a partir das tais "teses de Abril") Lenine essencialmente aceitou a teoria trotskista da "revolução permanente" (que no fundo são os tais quatro primeiros pontos que refiro acima); pelo contrário, parece-me que Arnaldo Matos apresenta a suas teses como sendo algo que nem Lenine teria tido bem consciência (e só teria sido plenamente formalizado por Arnaldo Matos, no principio de novembro de 2016...).
Ou seja, não me parece que estes teses tenham qualquer novidade relevante (quanto muito algumas novidades semânticas).
O lado mais benévolo das "teses" é que suponho que significa que o MRPP está por fim , nem que seja subrepticiamente, a demarcar-se de Estaline e até de Mao (já que parece-me que estão a dizer que a URSS e a RPC sempre foram "capitalismo monopolista de estado").
[Ou será que eu estou a dar demasiada importância a isto?]
Pelo que percebo a essência das "teses" é:
- A Rússia czarista (e suponho que também a China pré-1949) seria uma sociedade mista, em parte feudal, em parte capitalista
- Dessa forma, a revolução para derrubar o feudalismo acabou por ser feita pela classe operária
- No entanto, devido ao atraso económico da Rússia, mesmo com uma revolução feita pela classe operária, não foi possível implementar o socialismo, tendo o resultado sido o capitalismo monopolista de estado
- Uma revolução proletária num país semi-capitalista/semi-feudal só poderia conduzir ao socialismo se não ficasse limitada a um país isolado
- Finalmente, há a analogia com a Revolução de 1383/1385, que teria sido feita pela burguesa mas que teria mantido o sistema feudal em funcionamento (da mesma forma, a Revolução de Outubro teria sido feita pela proletariado mas mantendo o sistema capitalista)
Os quatro primeiros pontos parecem-me familiares - isso é praticamente a tese de Trotsky sobre a revolução russa; a única diferença é considerar que a URSS e a RPC eram "capitalistas monopolistas de estado", enquanto os trotskistas dizem que eram "estados operários degenerados/deformados", mas mesmo assim há correntes trotskistas que consideram que realmente eram "capitalistas de estado", como a do Socialist Workers Party britânico/Tendência Socialista Internacional, tal como certos grupos dissidentes do trotskismo, como a tendência Johnson-Forest ("Johnson" = C.L.R. James; "Forest" = Raya Dunayevskaya) dos EUA e, nos seus primeiros anos, o grupo Socialisme ou Barbarie de Castoriadis em França (que penso que depois evoluiu para outras caracterizações). E, claro, os maoístas sempre chamaram "capitalismo de estado" à URSS, e de certeza que foi dai que Arnaldo Matos foi buscar o nome.
E outra diferença é que os trotskistas sempre tentaram apresentar a sua tese como sendo "leninista" (até para se defenderem dos ataques estalinistas de que seriam anti-leninistas), argumentando que a partir de certa altura (suponho que a partir das tais "teses de Abril") Lenine essencialmente aceitou a teoria trotskista da "revolução permanente" (que no fundo são os tais quatro primeiros pontos que refiro acima); pelo contrário, parece-me que Arnaldo Matos apresenta a suas teses como sendo algo que nem Lenine teria tido bem consciência (e só teria sido plenamente formalizado por Arnaldo Matos, no principio de novembro de 2016...).
Ou seja, não me parece que estes teses tenham qualquer novidade relevante (quanto muito algumas novidades semânticas).
O lado mais benévolo das "teses" é que suponho que significa que o MRPP está por fim , nem que seja subrepticiamente, a demarcar-se de Estaline e até de Mao (já que parece-me que estão a dizer que a URSS e a RPC sempre foram "capitalismo monopolista de estado").
[Ou será que eu estou a dar demasiada importância a isto?]
REPEAL AND REPLEACE. O OBAMACARE debaixo do fogo dos Republicanos.
por
José Guinote
Não há nenhuma surpresa nas noticias de que a nova Administração Trump irá começar por tentar desmantelar o que Obama e a sua administração fizeram no campo do acesso à saúde. A estratégia corporizada na expressão "Repeal and Repleace" está definida e estruturada desde 2010.
Existem, no entanto, alguns pequenos grandes problemas que Trump terá que enfrentar.
Em primeiro lugar são necessários 60 votos no Senado. Os Republicanos detêm apenas 52, sendo 46 democratas e 2 independentes que tradicionalmente apoiam os democratas.
Em alternativa os Republicanos podem recorrer a medidas orçamentais que requerem apenas uma maioria simples no Senado. Para isso bastam-lhes 51 votos. Estas medidas orçamentais - a figura do budget reconciliation - não são assim tão lineares, como aqui se explica. (repeal and replacement of the ACA will be a multi-faceted process. It will begin, but not end, with a reconciliation bill very early in the next Congress).
Em segundo lugar nem todos os Republicanos apoiam a medida, já que as empresas privadas, sobretudo as seguradoras, beneficiaram com a sua aplicação e o acesso de mais 22 milhões de pessoas ao sistema. Há ainda a ponderar o peso eleitoral, em termos futuros, de uma tal decisão. Como referia numa entrevista à RTP esta noite David Simas um conselheiro de Obama ao longo destes últimos oito anos, filho de emigrantes açorianos, (com um assinalável domínio da lingua portuguesa), não é fácil implodir um sistema que é bem visto pela população. Desde logo porque retira direitos a ... 22 milhões de pessoas.
Esta é a questão politicamente mais importante. Trump e os Republicanos não podem ignorar a forma como os Americanos olham para o OBamacare. Por exemplo 60% dos Americanos acham que as medias e grandes empresas devem oferecer protecção na doença aos seus emrpegados; Os que acham que as pessoas com mais altos rendimentos devem contribuir para o sistema de saúde com uma taxa mais elevada, totalizam 69%; os que defendem que as seguradores não podem negar o acesso a pessoas que têm antecedentes familiares que indicam uma susceptibilidade para determinadas doenças -uma práctica antes do Obamacre - são 69% ; os que defendem que o Estado deve financiar a aquisição de protecção para os cidadãos de menores recursos são 80%. Há mais exemplos de como os americanos em geral apoiam esta medida. (ver aqui)
Uma politica agressiva -desejada mais por alguns Republicanos do que por Trump, tanto quanto referem alguns comentários - pode ser um passo seguro para o fracasso. Vamos ver se o instinto de sobrevivência não se sobrepõe à retórica extremista que tem animado as redes sociais.
Existem, no entanto, alguns pequenos grandes problemas que Trump terá que enfrentar.
Em primeiro lugar são necessários 60 votos no Senado. Os Republicanos detêm apenas 52, sendo 46 democratas e 2 independentes que tradicionalmente apoiam os democratas.
Em alternativa os Republicanos podem recorrer a medidas orçamentais que requerem apenas uma maioria simples no Senado. Para isso bastam-lhes 51 votos. Estas medidas orçamentais - a figura do budget reconciliation - não são assim tão lineares, como aqui se explica. (repeal and replacement of the ACA will be a multi-faceted process. It will begin, but not end, with a reconciliation bill very early in the next Congress).
Em segundo lugar nem todos os Republicanos apoiam a medida, já que as empresas privadas, sobretudo as seguradoras, beneficiaram com a sua aplicação e o acesso de mais 22 milhões de pessoas ao sistema. Há ainda a ponderar o peso eleitoral, em termos futuros, de uma tal decisão. Como referia numa entrevista à RTP esta noite David Simas um conselheiro de Obama ao longo destes últimos oito anos, filho de emigrantes açorianos, (com um assinalável domínio da lingua portuguesa), não é fácil implodir um sistema que é bem visto pela população. Desde logo porque retira direitos a ... 22 milhões de pessoas.
Esta é a questão politicamente mais importante. Trump e os Republicanos não podem ignorar a forma como os Americanos olham para o OBamacare. Por exemplo 60% dos Americanos acham que as medias e grandes empresas devem oferecer protecção na doença aos seus emrpegados; Os que acham que as pessoas com mais altos rendimentos devem contribuir para o sistema de saúde com uma taxa mais elevada, totalizam 69%; os que defendem que as seguradores não podem negar o acesso a pessoas que têm antecedentes familiares que indicam uma susceptibilidade para determinadas doenças -uma práctica antes do Obamacre - são 69% ; os que defendem que o Estado deve financiar a aquisição de protecção para os cidadãos de menores recursos são 80%. Há mais exemplos de como os americanos em geral apoiam esta medida. (ver aqui)
Uma politica agressiva -desejada mais por alguns Republicanos do que por Trump, tanto quanto referem alguns comentários - pode ser um passo seguro para o fracasso. Vamos ver se o instinto de sobrevivência não se sobrepõe à retórica extremista que tem animado as redes sociais.
04/01/17
"Revisionismo" no MRPP?
por
Miguel Madeira
A Propósito do Centenário da Revolução de Outubro, por Arnaldo Matos (Luta Popular Online, via Malomil):
A primeira reação é gozar com a megalomania das teses que "deram a volta ao Mundo, perdoe-se-me a imodéstia, sendo hoje em muitos países e numa parte significativa do movimento comunista operário marxista conhecidos como As Teses da Urgeiriça" (um aparte - já em 1975, no seu livro "O MRPP - instrumento da contra-revolução", Saldanha Sanches referia uma tendência de Arnaldo Matos para se considerar a si e ao MRPP como o principal fator no cenário político mundial dos anos 70).
Mas, tirando isso, é impressão minha ou estas teses representam um rutura do MRPP com o maoísmo e até com o leninismo clássico?
Em termos de debate no espaço público, tudo começou na Urgeiriça, município de Canas de Senhorim, distrito de Viseu, no dia 6 de Novembro passado, quando, por iniciativa de um grupo de uma dezena de militantes do nosso Partido no Maciço Central, tive oportunidade de discutir com eles os mais importantes temas teóricos, políticos e ideológicos suscitados pela experiência da Revolução de Outubro na antiga Rússia Czarista.Penso que as referidas "teses" são estas.
Os temas centrais aí abordados, gravados e distribuídos em vídeo pelo Partido, foram depois publicados no Luta Popular Online, a 16 de Novembro, e deram a volta ao Mundo, perdoe-se-me a imodéstia, sendo hoje em muitos países e numa parte significativa do movimento comunista operário marxista conhecidos como As Teses da Urgeiriça.
O que há de essencialmente significativo nessas teses é que elas colocam, quanto seja do meu conhecimento, pela primeira vez em evidência os erros sobre a natureza de classe da Revolução de Outubro, que não foi nem podia ser uma revolução operária socialista, mas uma grande revolução burguesa capitalista, do tipo da Grande Revolução Francesa de 1789, muito embora dirigida na sua fase final pelo proletariado e assumindo em muitos aspectos uma natureza proletária.
Essa revolução levou não à liquidação do modo de produção capitalista e à edificação do modo de produção comunista – nem aliás o poderia levar, dada a natureza mista, feudal e burguesa, da sociedade czarista -, mas a um tipo de sociedade até aí desconhecido – a sociedade capitalista monopolista de Estado, que, em parte Lenine, mas sobretudo Estaline e a Academia das Ciências da União Soviética qualificaram como sociedade socialista e até como sociedade socialista sem classes…
A primeira reação é gozar com a megalomania das teses que "deram a volta ao Mundo, perdoe-se-me a imodéstia, sendo hoje em muitos países e numa parte significativa do movimento comunista operário marxista conhecidos como As Teses da Urgeiriça" (um aparte - já em 1975, no seu livro "O MRPP - instrumento da contra-revolução", Saldanha Sanches referia uma tendência de Arnaldo Matos para se considerar a si e ao MRPP como o principal fator no cenário político mundial dos anos 70).
Mas, tirando isso, é impressão minha ou estas teses representam um rutura do MRPP com o maoísmo e até com o leninismo clássico?
Grécia limita o uso de dinheiro (versão "notas e moedas")
por
Miguel Madeira
Greece bans cash: Tax-allowance possible only through payments via plastic money (Keep Talking Greece):
Relembrando o que aconteceu:
- A Grécia suspendeu os pagamentos da dívida ao FMI
- O BCE limitou a linha de crédito aos bancos gregos
- Esperando que em breve os bancos ficasse sem dinheiro e/ou só com "novos dracmas", foi tudo levantar o dinheiro
- Com uma corrida aos bancos, e estes com os cofres mais vazios a cada minuto, o governo limitou os levantamentos bancários
- Após uma semanas com os levantamentos limitados (e com rumores que mesmo assim os bancos se estavam a esvaziar), o governo grego acabou por ceder
Agora imaginemos como seria se o uso do "dinheiro de plástico" estivesse mais generalizado na Grécia - seria possível limitar ou até suspender mesmo os levantamentos bancários sem isso criar problemas de maior (já que as pessoas poderiam fazer os seus pagamentos com cartão); assim, a Grécia poderia (ou poderá?) resistir melhor a um corte de liquidez por parte do BCE.
Greece is banning the use of cash the soft way. As of 1.1. 2017, taxpayers will be granted tax-allowance and tax deduction only when they have made payments via credit or debit cards. The new guidelines refer to employees, pensioners, farmers but also unemployed.A intenção provavelmente não é essa (possivelmente é para combater a evasão fiscal), mas suspeito que uma maior generalização do uso de "dinheiro de plástico" tornará mais fácil a Grécia resistir a uma repetição dos acontecimentos do verão de 2015.
Relembrando o que aconteceu:
- A Grécia suspendeu os pagamentos da dívida ao FMI
- O BCE limitou a linha de crédito aos bancos gregos
- Esperando que em breve os bancos ficasse sem dinheiro e/ou só com "novos dracmas", foi tudo levantar o dinheiro
- Com uma corrida aos bancos, e estes com os cofres mais vazios a cada minuto, o governo limitou os levantamentos bancários
- Após uma semanas com os levantamentos limitados (e com rumores que mesmo assim os bancos se estavam a esvaziar), o governo grego acabou por ceder
Agora imaginemos como seria se o uso do "dinheiro de plástico" estivesse mais generalizado na Grécia - seria possível limitar ou até suspender mesmo os levantamentos bancários sem isso criar problemas de maior (já que as pessoas poderiam fazer os seus pagamentos com cartão); assim, a Grécia poderia (ou poderá?) resistir melhor a um corte de liquidez por parte do BCE.
03/01/17
À revelia dos Planos e das Leis ou obedecendo fielmente às ditas cujas?
por
José Guinote
O título da noticia, cujo pretexto é o último livro da investigadora do ICS Luísa Schmidt - que ainda não tive oportunidade de ler - é o seguinte: "Vamos pagar caro por tudo o que se construiu no litoral à revelia dos planos e das leis"
Bom, há uma realidade que eu julgo que qualquer um de nós observa e pode contrapor a esta afirmação. Ela pode ser sintetizada na seguinte frase: "Vamos pagar caro por tudo o que se construiu no Litoral respeitando os Planos e as Leis".
Bom, há uma realidade que eu julgo que qualquer um de nós observa e pode contrapor a esta afirmação. Ela pode ser sintetizada na seguinte frase: "Vamos pagar caro por tudo o que se construiu no Litoral respeitando os Planos e as Leis".
O recto, o correcto, o político e o jurídico
por
joão viegas
Feliz 2017 a todos os camaradas e leitores do Vias.
Tanto quanto percebo ao ler este
post, acabámos de
assistir a mais uma polémica em torno dos habituais paradoxos sobre liberdade
de expressão, censura e proibição da censura.
Desta vez, ao que parece, um humorista queixou-se de não poder falar em
“mariquices” sem qualquer intenção malévola, com o medo que lhe caiam em cima o
Carmo e a Trindade, como veio inevitavelmente a suceder a seguir.
Sobre a liberdade de expressão, os seus limites e as suas implicações,
julgo que o essencial foi dito e não há muito a acrescentar. Parece-me óbvio que
o humorista é livre de escrever o que escreveu, e não vi aliás ninguém
mover-lhe uma acção judicial. Parece-me não menos óbvio que os leitores do
humorista devem ser livres de o criticar, inclusive por ele ter escrito o que
escreveu, ainda que esses críticos sejam a maioria e ainda que eles tenham
carradas de razão. Quem considera que a crítica é uma forma de opressão, ou
mesmo de pressão, esquece-se daquilo que ela é por essência : um apelo à convicção
de quem é interpelado, apelo que supõe, por hipótese, a plena liberdade do
criticado de ficar convencido, ou não…
Já me causam mais peplexidade as considerações do post do Miguel e a
discussão que se iniciou na caixa de comentários. Com efeito, se exceptuarmos os
casos de algumas ilhas desertas e de uma ou outra obra do Rousseau, as leis
políticas e o direito não nascem no deserto por geração espontânea. Aparecem
sempre onde existe já uma sociedade poli(cia)da
ou, se quisermos usar o termo latino, civilizada,
o que supõe a existência de normas de comportamento social, ou seja aquilo a que
chamamos uma moral ou uma ética. Ora quem fala em normas fala necessariamente
em imposições, em regras que as
pessoas são obrigadas a seguir sob cominação de sanções, as quais revestem
formas diversas que vão desde a simples reprobação pública à exclusão violenta do
grupo. A própria liberdade individual, que consideramos hoje a base do nosso
ordenamento político, só existe e só pode subsistir na medida em que é
garantida por regras e por sanções. Sem estas últimas, a liberdade seria uma
mera ficção…
Pergunta o Miguel “será possível uma situação em que há censura social mas
não restrições legais?”. Não só é completamente possível, mas é o que começa por
suceder em qualquer sociedade. É precisamente para corrigir os excessos que
nascem desta situação que apareceram (nalgumas sociedades apenas) as leis
públicas e o direito. Com efeito, a lei
e o direito têm como objectivo introduzir algum critério e alguma medida, inspirando-se
em considerações de justiça e de igualdade, na definição, na aprovação e na
sanção das regras colectivas. O mérito
principal do filósofo inglês H. L. A. Hart (1907-1992) foi mesmo o de ter mostrado
com perspicácia e elegância que as regras jurídicas caracterizam-se por serem secundárias, na medida em que são regras
sobre regras, cuja função é instaurar processos de definição e de modificação
das nossas regras éticas ou morais (que ele define como sendo regras primárias).
Quando perdemos de vista o que acabo de expôr, deixamos de compreender como
se articulam a moral e o direito. Fazemos como se se tratasse de duas esferas
completamente separadas. Isto, julgo eu, é extremamente perigoso. Penso mesmo
que podemos atribuir as atrocidades cometidas no século XX pelos regimes
totalitários a um erro desta natureza.
Muito pelo contrario, as leis e o direito são a continuação e o
desenvolvimento das regras éticas e especialmente da regra que manda que
respeitemos as liberdades da pessoa dentro da sociedade. Pode acontecer, como é
óbvio, que as regras jurídicas sejam desvirtuadas ou pervertidas e que acabem,
na prática, por servir de instrumento de opressão por parte de uma casta, ou de
uma classe, ou de interesses particulares, etc. Nesse caso, são más e merecem
ser modificadas. Os exemplos não faltam. Mas isto não justifica de maneira
nenhuma que percamos de vista a sua primeira finalidade e a sua essência. Afinal,
a esmagadora maioria das lutas sociais fizeram-se e continuam-se a fazer para
obter direitos, e eles ainda são, até
ver, a melhor garantia que possamos ter de uma justiça efectiva.
O Miguel entra depois numa discussão interessante, que consiste em saber se
o direito e as leis pressupõem ou implicam necessariamente a existência do
Estado. Não sei até que ponto a questão é mais do que terminológica. Se
entendermos por “Estado” uma organização de poderes com vincadas características
monopolistas, tais como a conhecemos desde sensivelmente o século XVI (época em
que a palavra começou a usar-se neste sentido, com Maquiavel e Jean Bodin),
então julgo que a afirmação é historicamente errada. Com efeito, existem leis e
regras jurídicas muito antes dessa época. De resto, mesmo hoje, poderíamos
encontrar ainda (mesmo dentro das nossas sociedades “estatais”) inúmeros
exemplos de ordenamentos pluralistas, onde coexistem várias fontes de regras
jurídicas. Agora se identificarmos o “Estado” com qualquer tipo de organização
da força colectiva por forma a garantir a efectividade de regras sociais, então
concluiremos que não há direito sem Estado… Na minha opinião, a questão do
Estado só vem atrapalhar e impede de ver o que poderia parecer óbvio : o
direito, ou seja as regras e as leis decididas e sancionadas publicamente em
nome de todos e para todos, têm precisamente em vista lutar contra os abusos
que o Miguel receia.
No caso da polémica recente a confusão deriva do facto de uns e outros terem
o mesmo interesse em fazer alarde e de não hesitarem em servir-se dos paradoxos
evocados acima para conseguir o seu objectivo. O humorista queixa-se de não ter
a liberdade de fazer… o que ele faz descaradamente no texto, o que mostra
sobejamente que ele tem plena consciência de ser completamente livre. O truque
retórico de se declarar impedido pelo medo de melindrar os seus “adversários”
não passa disso mesmo : um truque retórico. Eu também não lhe vou chamar
espertalhão, porque sei que ele se pode ofender… Do lado dos indignados, temos
uma hipocrisia simétrica. Fingindo-se ofendidos, não sugerem que se sancione a “agressão”,
muito menos ainda que passemos a punir esse tipo de comportamentos (o que seria um privilégio
indefensável). Apenas se improvisam polícias de opereta e, no fundo, fazem-no
porque isso lhes interessa. E também porque o humorista, que neste caso até é
amigo, não os agrediu verdadeiramente. Pelo
contrário, reconheceu à partida uma evolução da regra social (de mera praxe,
boa-educação ou cortesia) e proporcionou-lhes uma boa oportunidade de explicar
os méritos desta evolução. “Nunca mais te
falo, mas nunca nunca mais, ouviste ? ouviste bem ?”
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