Feliz 2017 a todos os camaradas e leitores do Vias.
Tanto quanto percebo ao ler este
post, acabámos de
assistir a mais uma polémica em torno dos habituais paradoxos sobre liberdade
de expressão, censura e proibição da censura.
Desta vez, ao que parece, um humorista queixou-se de não poder falar em
“mariquices” sem qualquer intenção malévola, com o medo que lhe caiam em cima o
Carmo e a Trindade, como veio inevitavelmente a suceder a seguir.
Sobre a liberdade de expressão, os seus limites e as suas implicações,
julgo que o essencial foi dito e não há muito a acrescentar. Parece-me óbvio que
o humorista é livre de escrever o que escreveu, e não vi aliás ninguém
mover-lhe uma acção judicial. Parece-me não menos óbvio que os leitores do
humorista devem ser livres de o criticar, inclusive por ele ter escrito o que
escreveu, ainda que esses críticos sejam a maioria e ainda que eles tenham
carradas de razão. Quem considera que a crítica é uma forma de opressão, ou
mesmo de pressão, esquece-se daquilo que ela é por essência : um apelo à convicção
de quem é interpelado, apelo que supõe, por hipótese, a plena liberdade do
criticado de ficar convencido, ou não…
Já me causam mais peplexidade as considerações do post do Miguel e a
discussão que se iniciou na caixa de comentários. Com efeito, se exceptuarmos os
casos de algumas ilhas desertas e de uma ou outra obra do Rousseau, as leis
políticas e o direito não nascem no deserto por geração espontânea. Aparecem
sempre onde existe já uma sociedade poli(cia)da
ou, se quisermos usar o termo latino, civilizada,
o que supõe a existência de normas de comportamento social, ou seja aquilo a que
chamamos uma moral ou uma ética. Ora quem fala em normas fala necessariamente
em imposições, em regras que as
pessoas são obrigadas a seguir sob cominação de sanções, as quais revestem
formas diversas que vão desde a simples reprobação pública à exclusão violenta do
grupo. A própria liberdade individual, que consideramos hoje a base do nosso
ordenamento político, só existe e só pode subsistir na medida em que é
garantida por regras e por sanções. Sem estas últimas, a liberdade seria uma
mera ficção…
Pergunta o Miguel “será possível uma situação em que há censura social mas
não restrições legais?”. Não só é completamente possível, mas é o que começa por
suceder em qualquer sociedade. É precisamente para corrigir os excessos que
nascem desta situação que apareceram (nalgumas sociedades apenas) as leis
públicas e o direito. Com efeito, a lei
e o direito têm como objectivo introduzir algum critério e alguma medida, inspirando-se
em considerações de justiça e de igualdade, na definição, na aprovação e na
sanção das regras colectivas. O mérito
principal do filósofo inglês H. L. A. Hart (1907-1992) foi mesmo o de ter mostrado
com perspicácia e elegância que as regras jurídicas caracterizam-se por serem secundárias, na medida em que são regras
sobre regras, cuja função é instaurar processos de definição e de modificação
das nossas regras éticas ou morais (que ele define como sendo regras primárias).
Quando perdemos de vista o que acabo de expôr, deixamos de compreender como
se articulam a moral e o direito. Fazemos como se se tratasse de duas esferas
completamente separadas. Isto, julgo eu, é extremamente perigoso. Penso mesmo
que podemos atribuir as atrocidades cometidas no século XX pelos regimes
totalitários a um erro desta natureza.
Muito pelo contrario, as leis e o direito são a continuação e o
desenvolvimento das regras éticas e especialmente da regra que manda que
respeitemos as liberdades da pessoa dentro da sociedade. Pode acontecer, como é
óbvio, que as regras jurídicas sejam desvirtuadas ou pervertidas e que acabem,
na prática, por servir de instrumento de opressão por parte de uma casta, ou de
uma classe, ou de interesses particulares, etc. Nesse caso, são más e merecem
ser modificadas. Os exemplos não faltam. Mas isto não justifica de maneira
nenhuma que percamos de vista a sua primeira finalidade e a sua essência. Afinal,
a esmagadora maioria das lutas sociais fizeram-se e continuam-se a fazer para
obter direitos, e eles ainda são, até
ver, a melhor garantia que possamos ter de uma justiça efectiva.
O Miguel entra depois numa discussão interessante, que consiste em saber se
o direito e as leis pressupõem ou implicam necessariamente a existência do
Estado. Não sei até que ponto a questão é mais do que terminológica. Se
entendermos por “Estado” uma organização de poderes com vincadas características
monopolistas, tais como a conhecemos desde sensivelmente o século XVI (época em
que a palavra começou a usar-se neste sentido, com Maquiavel e Jean Bodin),
então julgo que a afirmação é historicamente errada. Com efeito, existem leis e
regras jurídicas muito antes dessa época. De resto, mesmo hoje, poderíamos
encontrar ainda (mesmo dentro das nossas sociedades “estatais”) inúmeros
exemplos de ordenamentos pluralistas, onde coexistem várias fontes de regras
jurídicas. Agora se identificarmos o “Estado” com qualquer tipo de organização
da força colectiva por forma a garantir a efectividade de regras sociais, então
concluiremos que não há direito sem Estado… Na minha opinião, a questão do
Estado só vem atrapalhar e impede de ver o que poderia parecer óbvio : o
direito, ou seja as regras e as leis decididas e sancionadas publicamente em
nome de todos e para todos, têm precisamente em vista lutar contra os abusos
que o Miguel receia.
No caso da polémica recente a confusão deriva do facto de uns e outros terem
o mesmo interesse em fazer alarde e de não hesitarem em servir-se dos paradoxos
evocados acima para conseguir o seu objectivo. O humorista queixa-se de não ter
a liberdade de fazer… o que ele faz descaradamente no texto, o que mostra
sobejamente que ele tem plena consciência de ser completamente livre. O truque
retórico de se declarar impedido pelo medo de melindrar os seus “adversários”
não passa disso mesmo : um truque retórico. Eu também não lhe vou chamar
espertalhão, porque sei que ele se pode ofender… Do lado dos indignados, temos
uma hipocrisia simétrica. Fingindo-se ofendidos, não sugerem que se sancione a “agressão”,
muito menos ainda que passemos a punir esse tipo de comportamentos (o que seria um privilégio
indefensável). Apenas se improvisam polícias de opereta e, no fundo, fazem-no
porque isso lhes interessa. E também porque o humorista, que neste caso até é
amigo, não os agrediu verdadeiramente. Pelo
contrário, reconheceu à partida uma evolução da regra social (de mera praxe,
boa-educação ou cortesia) e proporcionou-lhes uma boa oportunidade de explicar
os méritos desta evolução. “Nunca mais te
falo, mas nunca nunca mais, ouviste ? ouviste bem ?”
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