Convidaram-me, o Miguel Serras Pereira e o Ricardo Noronha, para participar no
Vias de Facto. Que eu já conhecia e ia acompanhando com preguiça. Porque não é assim meu hábito acompanhar fielmente a vida dos blogs. A minha primeira reacção foi de hesitação… Como escrever constantemente em reacção ao que acontece, ao que não acontece, ao que poderia ter acontecido, ao que disse fulano e não disse sicrano ? Ter opinião sobre tanta coisa é tarefa que me parece extenuante. Acabei por aceitar, à experiência, como um desafio, uma participação irregular, uma maneira de manter um elo mais directo com uma sociedade da qual estou geograficamente afastado há mais de quarenta anos. Mas só geograficamente…
Ora aqui está um excelente assunto para iniciar a minha colaboração.
O leitor a quem estas reflexões pareçam sem interesse é cordialmente convidado a fazer uso da solução tecnológica radical do « delete ». Permito-me enfim de prevenir que eu não assinei o novo acordo ortográfico luso-brasileiro e que o leitor terá de praticar o ritmo do meu frantuguês.
O que significa sentir-se perto de uma sociedade que já não é aquela em que vivemos mas que continua a fazer parte de nós próprios ? Como podemos reflectir no que se passa lá dentro, partindo do que vivemos cá fora ? O que motiva esse olhar de fora para dentro ?
Veio-me tudo isto ao pensamento, quando li uma entrevista do Hans Magnus Enzensberger (Télérama, 14 julho 2010). Na qual o conhecido autor do inesquecível
Le bref été de l’anarchie, La vie et la mort de Buenaventura Durruti, e do recente muito falado romance histórico,
Hammerstein ou l’intransigeance, une histoire allemande, aborda esta problemática, as dificuldades e as vantagens do olhar crítico de quem está fora.
Na Alemanha, diz o Magnus E., a culpabilidade histórica impregnou de tal forma as gerações do imediato pós-guerra que o ódio da sociedade produziu muitas vezes o ódio de si-próprio. Magnus E. dá como exemplo a vida e o trabalho do seu amigo, o grande escritor W.G. Sebald. O qual, lembrava recentemente o Luis Rainha no Vias de facto (
A literatura como veneno, 18-08), se desolava da « ausência de um grande banho de culpa que lavasse » a sociedade alemã do horror do nazismo. Magnus E. explica, por seu lado, que foi « vivendo fora da Alemanha (que) evitei o ódio de mim próprio ». Finalmente, sugere ele, um ponto de ruptura nestas situações é sempre o da rejeição da servidão voluntária. Acto de liberdade que permite, como ele diz, « não estar em fase com o momento que se vive », abrir o espírito à crítica do estado dito « normal » das coisas. O acto de rejeição será assim « uma migração no tempo que ajuda a melhor viver a época ».
Esta migração, forçada ou voluntária, permitirá de melhor encarar de frente as coisas, como o diz Magnus E. ? E em que medida a rejeição da servidão voluntária, em momentos da história de uma sociedade, pode revelar-se um antídoto ao ódio contra uma sociedade e também contra si próprio ?
Foi a partir de aqui que o discurso do Magnus E. começou a interrogar o meu passado. Que partilhei com milhares, centenas de milhares de outras pessoas, que saíram deste país no fim dos anos sessenta do século passado para não participar num momento particular da violência de Estado, a guerra colonial. Sem dúvida, as barbaridades da história recente da Alemanha e as da história recente de Portugal não têm o mesmo peso universal. Mesmo se é impossível separar o colonialismo da geneologia dos genocídios modernos, como bem o mostrou, entre outros, Enzo Traverso no seu livro
La violence nazie, une généalogie européenne. Contabilidade do horror posta de lado, a questão é de saber como viver com as barbaridades de uma sociedade, seja a inquisição, o colonialismo, o nazismo, o genocídio, a guerra, mundial ou colonial.
O tratamento, aconselhado pelas autoridades e funcionários competentes à normalização social, já se sabe, é o do esquecimento histórico. Deste ponto de vista, o caso português actual é de uma límpida exemplaridade, caracterizado pela ausência de debate sobre o conteúdo bárbaro da história do pequeno Estado-Nação, pela inexistência de culpabilidade e nevrose social, nacionalista ou antinacionalista. Neste país não se correra o risco de banhos de culpa, aqui só há banhos de praia ! Finalmente, durante cinco séculos não se passou nada. Como se história deste país tivesse sido só uma história. Quando ela integra plenamente o processo universal do colonialismo, a globalização do comércio de seres humanos, a escravatura. O que não é pouco ! Se a Primeira Républica e o salazarismo transformaram este processo num mito civilizador, a democracia do 25 Novembro preocupou-se de lavar o passado. Mais do que isso, ela tudo fez para esconder o passado. Esta democracia do esquecimento foi mais um sintoma da doença, e, como todo sintoma, ela continua a dissimular a doença, diria o Freud. De facto, o silêncio de pedra que se vive nestas paragens apenas traduz o estado doentio da sociedade. Que se reflecte não somente na pobreza franciscana da vida política institucional (o que não é específico ao caso português) mas também na falta de vitalidade da conflitualidade criadora da vida social. Vive-se um estado comatoso que o Secretariado nacional de turismo vende como folclore local. A lobotomizaçao histórica oferece os seus benefícios aos doentes, nos meios do poder ele permitiu a passagem de muita gente do estatuto de « contra » ao de « situacionista » nova vaga. Para o povo houve também uns pequenos brindes. As migalhas de emprego oferecidas pela nova classe dirigente das ex-colónias a alguns coitados da Lusitânia constituem hoje as ultimas rendas históricas da grande epopeia colonial. Como não pensar na formula do Antero, quando ele dizia que a única industria do país foi a Índia, resumindo assim o conteúdo de toda a história portuguesa e o seu desastre final.
Voltemos a esta estranha equação que sugere o Magnus E. falando do caso alemão : o ódio do país que leva ao ódio de si próprio ! Segundo ele, « a quantidade de heróis numa dada população é reduzida » em períodos de ditadura, a maioria dos indivíduos vivendo com hesitações e ambiguidades, adaptando-se, conformando-se, enfim, não se posicionando. Evidentemente, o conceito de herói é aqui tomado no sentido da oposição à ditadura. E, nesse sentido, a resignação ao salazarismo ilustrou perfeitamente o que acaba de ser dito. Mas o conceito é sem interesse, por demais ambíguo, reivindicado tanto por ditaduras como por democracias, pois que a atitude de herói esta associada à submissão ao medo e à ordem dominante. Os heróis são um ingrediente essencial dos sistemas totalitários et dos seus horrores, como o provou a distribuição massiva de medalhas quando da guerra colonial. Da mesma maneira, a lei da maioria silenciosamente hesitante não se alterou no Portugal democrático ou na Alemanha do após-guerra. A maioria silenciosa, o conformismo da norma, parecem ser uma base comum destes dois sistemas. Mais uma prova que alguma filiação haverá entre eles.
Por tudo isto, parece-me mais fértil retomar a ideia da rejeição da « servidão voluntária », através da qual se assume voluntariamente, afirmativamente, « não estar em fase com o momento que se vive ». Em circunstâncias diferentes das que menciona Magnus E., ela levou-me, a mim e a muitos outros, a não participar no que era então o projecto « normal » da sociedade portuguesa, a defesa do sistema colonial. Sómente a partir desta atitude negativa se pode começar a desmontar a construção da culpabilidade histórica, do nazismo ou do colonialismo, da guerra, da barbárie. É também a partir desta rejeição da servidão voluntária, que se pode ultrapassar o sentimento de ódio a uma sociedade e a lógica que equaciona o ódio de uma sociedade com o ódio de si próprio.
Volto aqui a fazer referência à minha/nossa experiência. Foi esta rejeição, a consequente necessidade de migração/exílio, que nos afastou do ódio do país e da sociedade portuguesa, consequentemente do ódio de nós próprios. O acto negativo transformou-se em dinâmica positiva. Permitindo - não necessariamente e nem para todos - passar da compreensão da nossa condição individual para compreensão de uma situação global. Que a guerra colonial constituía um momento revelador de todo o horror da chamada « História de Portugal ». O momento extremo do projecto histórico sobre o qual assentou a identidade Estado-Nação da sociedade portuguesa. Como o parece provar a crise desta ancestral identidade que se esvaziou com o desmoronar do sistema colonial. A crítica do conteúdo nacionalista desta identidade mostrou que os interesses da classe dominante eram impostos à maioria do povo como sendo o interesse de toda a sociedade. A revolta contra a guerra colonial, que se exprimiu primeiro de forma subterrânea para depois se tornar um dos dois motores do movimento social do após-25 Abril (o outro sendo a aspiração à auto-emancipação social), veio confirmar que este interesse nacional associado ao colonialismo não era partilhado por toda a sociedade. Que havia na sociedade outra identidade, antagónica, outra cultura, outros valores, associados às classes dominadas, exploradas. Embora ocultada sistematicamente pelos dominadores, esta outra identidade marcou a sua presença na história cada vez que se rompeu o consenso interclassista.
Foi assim, a partir deste processo real de antagonismos e de rupturas, que fomos, alguns, imunizados contra a identidade nacional, o ódio da sociedade e,
évidentement, o ódio de si próprio. Deitados fora os lixos do patriotismo e outros acessórios fúteis, pudemos assim restabelecer um elo novo, não com uma sociedade tomada como um todo, mas com sectores dessa sociedade que preservavam, por vezes de maneira disfarçada, valores universais de emancipação social. Nunca é demais lembrar, para além das revoltas populares e messiânicas contra os dominadores que perturbaram várias vezes a rota « normal » da história oficial, a vitalidade do movimento anarco-sindicalista do princípio do século vinte (sem o qual a implantação da República não teria vingado…) e, claro está, os dois anos de agitação social após a intervenção militar do 25 de Abril contra o regime totalitário. Experiências, bem entendido, que estão hoje, e pelas mesmas razoes, fechadas no cofre da memória esquecida, lado a lado com a terrível história do colonialismo. O meu recente livrito,
A Memória e o fogo, mais não pretende ser que uma modesta contribuição incitando à abertura do cofre.
No fim da sua conversa diz o Magnus E. a propósito da chamada « questão alemã ». « Todos os países têm a sua questão. Na Alemanha, nós fomos, durante o período nazi, os campeões do pior. Depois, nós tivemos a vontade de ser os campeões do bem : pacifistas, democratas, ecologistas, uma nação modelo. Finalmente, a Alemanha é hoje um país igual aos outros países europeus. (…) Com a mesma mediocridade da vida política – pela qual é difícil de se apaixonar.»
E a « questão portuguesa »? Obviamente, também este pequeno país é igual, na sua essência, a todos os outros. Com as suas diferenças específicas. Sem culpabilidade social do passado histórico não houve aqui nevrose de compensação, muito menos ainda pretensão de de passar do pior ao melhor. Sem memória crítica do passado, continua a dominar a dificuldade de afrontar o presente, impõe-se a fatalidade do pior. Assim, a submissão à ordem democrática autoritária do 25 Novembro acabou por restabelecer a continuidade com a « servidão voluntária dos brandos costumes ». Variedade lusitana a qual parece hoje reduzir-se hoje o conteúdo da identidade nacional. Esta é a « questão portuguesa », hoje administrada por uma classe politica, medíocre como todas as outras de que fala Magnus E., tanto mais arrogante e prepotente quanto confiante na apatia dos vencidos de sempre.
Uma aposta que comporta, obviamente, os seus riscos. Vamos nós apostar nos riscos, único futuro possível.
Data: 29 de Agosto de 2010, 8:57