04/11/12

Da impossibilidade da democracia segundo Manuela Ferreira Leite

Dizer, como Manuela Ferreira Leite, que "em situações de extrema complexidade em que para ultrapassar os problemas complexos não se vê outra solução do que enfrentar ou afrontar determinado tipo de corporações, determinado tipo de interesses, possivelmente isso não é muito possível, na prática, ser feito em democracia" — é dizer que a democracia é impossível.

Com efeito, os problemas da vida em sociedade são sempre extremamente complexos e implicam sempre conflitos de interesses e alternativas rivais e é sempre considerando esses problemas que a política tem de decidir, escolher, criar soluções, fazer o seu caminho. Se isso não poder ser feito democraticamente, a democracia não é possível. Ou terá de ser reservada para "os amanhãs que cantam" do "fim da história".

Mas é curioso verificar que a justificação da impossibilidade da democracia pela complexidade dos assuntos políticos que MFL apresenta se limita a prolongar a suspensão da democracia que informa já o sistema representativo. Este estipula também que as decisões políticas de fundo não podem ser deixadas aos homens e mulheres comuns, ao conjunto dos cidadãos. Requerem a intervenção e a competência especializadas de representantes, a distinção hierárquica entre governantes e governados, a exclusão da cidadania activa da grande maioria. É verdade que nos regimes de oligarquia liberal, como lhes chamava Castoriadis, os governados recebem, em troca da renúncia à cidadania governante e à participação no exercício do poder de mudar e decidir no que se refere às condições colectivas de existência, o direito a eleger os que os governam. E é desta limitação do seu poder governante que, cada vez mais, a oligarquia aspira a libertar-se. Tem vindo a fazê-lo transferindo para a esfera económica e para os seus dirigentes não eleitos poderes governamentais cada vez maiores e excluindo da esfera das decisões políticas explícitas um número cada vez maior de questões fundamentais. E agora, dado o êxito da operação, reclama o direito de suspender o princípio eleitoral e representativo e o exercício das liberdades constitucionais sempre que a importância dos problemas o justifique.

Um último motivo inquietante, que nunca será demais sublinhar, é a confluência no discurso de MFL da utilização contra a democracia do argumento da competência com o recurso ao argumento nacionalista ou soberanista — ou seja, a tese da prioridade do interesse ou da independência nacional sobre as liberdades e direitos de inspiração democrática remanescentes nos regimes oligárquicos representativos: "[MLF] Adiantou que a intervenção da 'troika' em Portugal põe em causa a soberania nacional e que o sistema democrático 'nem sempre' consegue enfrentar elementos externos".

Ora, é bom que não haja dúvidas a este respeito: a "popularização" de semelhantes ideologias da competência e do primado nacional confronta-nos com a ameaça daquilo a que o José Maria Castro Caldas chamou os "inomináveis regressos ao passado" — ou seja, às ditaduras de tipo fascista, ainda que rebaptizadas e disfarçadas por uma maquilhagem mais ou menos vermelha.

2 comentários:

Pedro Viana disse...

"(...)os governados recebem, em troca (...) o direito a eleger os que os governam.(...)"

Há alguma verdade na afirmação acima transcrita, quando interpretada no seu sentido literal, na medida em que nas eleições actualmente existentes se pode escolher entre diferentes pessoas para as posições de governo. Mas, como não há grande previsibilidade no que se refere à actuação dessas pessoas, ou seja não é possível efectivamente prever a sua actuação, caso alcancem posições de governo, porque sistematicamente mentem em campanha eleitoral, na realidade o que existe nos actuais sistemas de democracia representativa é o direito de retirar das posições de governo quem as ocupa na altura. Ou seja, apenas nos é concedido pouco mais do que o direito à censura de quem nos governa. É importante sublinhar isto, para não mascarar a farsa de democracia em que vivemos, dando a entender que o eleitor tem grande capacidade para influenciar a priori o tipo de decisões que efectivamente serão tomadas pelos "representantes" durante uma legislatura.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Claro, Pedro. Agradeço a precisão - e acrescento outra: a democracia exige bem mais do que o simples direito de voto "eleitoral". O voto propriamente democrático é o que decide das questões políticas em aberto a determinado momento, depois de estas serem definidas, formuladas e tornadas tema de deliberação.pelos eleitores.
Mas a verdade é que até mesmo o direito à censura, como tu lhe chamas, começa a incomodar cada vez mais a oligarquia governante.

Abraço também para ti

miguel(sp)