Na senda do que neste espaço tem sido abordado a propósito da abundância (ver aqui e aqui), deixo o meu contributo.
A não ser que se considere – erradamente – a abundância como sinónimo de opulência, não vejo como uma política emancipatória não possa considerar a abundância como eixo central. Volto a repetir, a não ser que se veja a abundância como sinónimo de opulência não há razões para descartar a abundância. Claro que uma outra sociedade tem de basear-se na abundância, o que não quer dizer que seja a mesma que ocorre nos centros mais desenvolvidos do capitalismo.
Ora, com o capitalismo, a produção orienta-se para a criação de um mercado que absorva um volume crescente de bens e serviços colocados à disposição. Nesse sentido, parte do surgimento histórico da abundância advém da inserção da instituição mercado no seio das relações de produção capitalistas. Mas, em paralelo, a abundância surge como reivindicação explícita nas lutas dos trabalhadores. Não apenas na generalidade das obras socialistas do século XIX, mas a própria luta reivindicativa implica uma luta pelo acesso a um quinhão da abundância. Quando os trabalhadores lutam por melhores salários, estão a clamar por um maior poder aquisitivo. O mesmo é dizer que reivindicam uma maior parte no acesso à abundância. No caso das lutas em que a autogestão se coloca já não se trata apenas do acesso ao que consideram ser uma parte da abundância de bens e serviços disponíveis mas também, e sobretudo, na determinação de que bens e serviços podem ser fornecidos pelos seus organismos autónomos (comités de fábrica, comissões de trabalhadores, conselhos operários, etc. etc.). Não existe um exemplo de luta social – reivindicativa e/ou de autogestão – que alguma vez tenha colocado como objectivo a redução da massa de bens e serviços a disponibilizar à população.
Aliás, a expansão do mercado de bens de consumo tem uma genealogia partilhada entre, por um lado, a criação da procura pela produção e, por outro lado, as reivindicações operárias. Se se quiser ser rigoroso, no capitalismo uma face não existe sem a outra e foi a constante reivindicação dos trabalhadores por melhores salários ou pela redução do tempo de trabalho que ajudou a dinamizar a expansão do mercado dos bens de consumo.
Dei acima o exemplo de como a luta por melhores salários implica necessariamente uma reivindicação por um maior acesso a bens e serviços de consumo. Mas a luta pela redução do horário de trabalho foi igualmente um potente estímulo económico na reivindicação da abundância. Na medida em que um mesmo ou maior número de bens ou serviços teve de ser produzido num espaço mais curto de tempo, a produtividade do trabalho aumenta. O que acarreta eliminar desperdícios, rentabilizar recursos e qualificar a força de trabalho. Ora, uma força de trabalho mais qualificada não apenas passou a receber salários mais elevados como passou a deter um poder de compra muito maior. É este o engenho da mais-valia relativa: aumentar o rácio de bens produzidos por cada trabalhador, ao mesmo tempo em que este acede a um maior conjunto de bens, mesmo que a taxa de crescimento salarial seja inferior à taxa de crescimento da mais-valia produzida.
Esta dinâmica moderniza o capitalismo mas, em casos extremos como o que sucedeu no período entre 1968 e 75, pode desencadear graves problemas para as classes dominantes. É que se o aumento dos lucros e dos salários podem caminhar num mesmo sentido, mesmo que desafasados, e daí ocorrer um período de relativa paz social, a verdade é que a partir de um determinado ponto cresce a percepção social junto dos trabalhadores de que os bens e serviços (de saúde, alimentares, de lazer, etc.) a que aspiram são ainda assim insuficientes face ao bolo de riqueza que têm criado. É por isso que desde o pós-guerra que as mais importantes lutas sociais ocorrem precisamente fora de contextos de crise económica.
Mesmo recentemente, não é por acaso que, no Brasil a massiva luta pelo acesso a serviços de transportes públicos mais baratos e mais eficientes decorreu no seio de uma economia que tem vindo a crescer quase ininterruptamente nos últimos quinze anos. O mesmo se passou na última década na China onde os salários cresceram, em média, 10% ao ano e onde as lutas reivindicativas têm sido uma constante. É onde e quando os trabalhadores sentem que o seu acesso à abundância crescente está a ser insuficiente, que as lutas reivindicativas mais prosperaram nos últimos 70 anos.
Por outro lado, e para dar um exemplo distinto, não deixa de ser inusitado que, num contexto em que muitos trabalhadores em Portugal justificadamente se queixam de falta de acesso a cuidados de saúde, seja a esquerda anti-consumo que tem a lata de defender um modelo de sociedade que coarctaria ainda mais o acesso das populações à saúde. Sim, porque a saúde é um terreno inserido no plano da abundância. Se se entender a abundância no sentido que abordei acima – campo de redução da exposição das populações a contingências e riscos supra-individuais – então não vejo porque a saúde não esteja contemplada neste plano. Aliás, é a austeridade do actual governo que clama pelo encerramento de recursos (urgências, centros de saúde, exames complementares de diagnóstico, ambulâncias e serviços de emergência, etc.) precisamente a partir da tese de que os serviços públicos estariam numa situação de sobre-consumo por parte das populações.
Espantoso como nestes tempos em que as pessoas andam com imensas dificuldades para aceder a cuidados de saúde, à educação ou a bens essenciais, e é parte da esquerda que quer ampliar o receituário austeritário a níveis exponenciais.
Nas partes do globo em que a mais-valia absoluta impera de uma maneira grotesca e, portanto, onde problemas de fome, de doenças e de calamidades ainda fazem da vida de centenas de milhões de pessoas um autêntico inferno, clamar contra a abundância é clamar contra o acesso de toda essa população ao consumo e, por conseguinte, à abundância.
Nesse sentido, consignar que a abundância não faz parte das cogitações e reivindicações da classe trabalhadora é o resultado de um desconhecimento tremendo da história das classes trabalhadoras. Seria interessante que quem defende a irrelevância da abundância fizesse campanha política junto dos trabalhadores dizendo-lhes que se propõem reduzir o acesso a bens de consumo, a serviços de saúde ou a usufruir tempo de lazer. Repito, abundância não é opulência nem desperdício à la Nero. O acesso a uma determinada abundância (historicamente determinada) representa um processo de redução da exposição humana a contingências supra-individuais.
Em suma, já não bastava o processo de ajustamento definido pela troika andar a reduzir o consumo das famílias (nomeadamente das pertencentes à classe trabalhadora), e certa esquerda ainda acha que o padrão de consumo é uma mera ideologia/ilusão e que, por isso, ainda teria de ser reduzido. Aliás, esta esquerda é ainda pior do que a troika. Para a troika trata-se de reduzir o índice de consumo e de investimento por um determinado período de tempo, até que, limpos os balanços dos bancos e ajustado o mercado às empresas capazes de competir, um novo ciclo económico reactive o crescimento económico. Para esta esquerda, a que alguém com razão chama de socialismo da miséria, o consumo seria uma ilusão perniciosa de capitalistas e publicitários manipuladores, pelo que uma outra sociedade deveria reduzir drasticamente os índices de consumo. No fundo, a perenidade da austeridade é o modelo que esta esquerda tem para oferecer.
***
Penso que a esquerda que se considera anti-neoliberal/anti-capitalista/anti-qualquer coisa tem vindo a abandonar a luta pela abundância na medida em que neste campo, mas também noutros, o capitalismo liberal venceu e goleou as ditas experiências socialistas do século XX. A consciência dessa derrota em vez de levar a questionar o autoritarismo medonho dessas experiências estatistas, e em vez de levar a novas reivindicações pela abundância, levou boa parte da extrema-esquerda sobrevivente a recuar colossalmente neste plano, sendo hoje uma das pontas-de-lança da divulgação de formas irracionalistas do decrescimento económico. Felizmente a esmagadora maioria dos trabalhadores despreza esta esquerda.
21/05/14
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16 comentários:
Um exemplo da demagogia e da manipulação do debate no seu melhor...
Urge ultrapassar esta " dança de lobos ".Confio na boa-fé e no imaginário revolucionário do J.V.Aguiar para tal, já que a força politica da transformação teórica pode ser útil a todos:o capitalismo não é inevitável nem óptimo, mesmo na sua fase recuada de capitalismo de Estado. Salut! Niet
Já que o comentador anterior parece preferir a twittização do pensamento e da escrita seria interessante que, por exemplo, ele demonstrasse o contrário da seguinte afirmação do texto: «Não existe um exemplo de luta social – reivindicativa e/ou de autogestão – que alguma vez tenha colocado como objectivo a redução da massa de bens e serviços a disponibilizar à população.»
Se isto é demagogia, então os trabalhadores seriam os demagogos-mor da contemporaneidade, visto que as suas lutas implicam sempre a discussão dos termos com que a abundância no capitalismo é ou não distribuída. Em suma, não há lutas sociais de trabalhadores que peçam menos acesso a bens e serviços, ou a menos recursos materiais, monetários ou de horário de trabalho.
João,
Uma economia colectiva numa sociedade sem classes só é possível num sistema mundializado. É nesta acepção que os anticapitalistas sempre falaram do internacionalismo proletário. Ou a classe trabalhadora é unificada mundialmente ou qualquer projecto anticapitalista tem de ser posto de lado. Ora, a abundância é decisiva neste contexto. O desenvolvimento económico e a pluralidade de bens materiais e de serviços permitem uma fusão de culturas e uma circulação de massas humanas que torna o mundo, para empregar a expressão corrente, cada vez mais pequeno. Os ecologistas, incluindo os partidários do decrescimento económico, e os multiculturalistas convergem num objectivo central — eliminar as condições que permitem a mundialização e reforçar os particularismos. Por isso a abundância e a luta pela abundância são uma condição indispensável do projecto anticapitalista.
«Por outro lado, e para dar um exemplo distinto, não deixa de ser inusitado que, num contexto em que muitos trabalhadores em Portugal justificadamente se queixam de falta de acesso a cuidados de saúde, seja a esquerda anti-consumo que tem a lata de defender um modelo de sociedade que coarctaria ainda mais o acesso das populações à saúde.»
«Seria interessante que quem defende a irrelevância da abundância fizesse campanha política junto dos trabalhadores dizendo-lhes que se propõem reduzir o acesso a bens de consumo, a serviços de saúde ou a usufruir tempo de lazer.»
«Nas partes do globo em que a mais-valia absoluta impera de uma maneira grotesca e, portanto, onde problemas de fome, de doenças e de calamidades ainda fazem da vida de centenas de milhões de pessoas um autêntico inferno, clamar contra a abundância é clamar contra o acesso de toda essa população ao consumo e, por conseguinte, à abundância.»
Demagogia, e da pior, é isto que escreveu.
1- Eu que não sou de «esquerda», nem defensor do «socialismo de miséria» por isso mesmo penso que terá de definir melhor esse seu conceito de «abundância», muito usado pelos defensores da sociedade capitalista de consumo. Isto, tanto mais que defende ostensivamente teorias desenvolvimentistas e recusa explicitamente toda a crítica que os pensadores ecologistas fizeram a partir da segunda metade do século XX ao nosso modelo de desenvolvimento capitalista-industrial totalmente insustentável.
2- As questões nunca respondidas sobre o consumismo que no seu conceito de «abundância» está implícito escondem a impossibilidade de generalizar em termos universais tal sociedade de abundância por evidente impossibilidade física, material, energética. Isto vale para o capitalismo de abundância como para o «socialismo de abundância».
3- A concepção «desenvolvimentista» e de «abundância» no consumo de bens nem sequer dá conta que uma sociedade «comunista libertária» teria de satisfazer as necessidades materiais reais, dos seus membros, isso não está em causa, nem nunca esteve, mas simultaneamente satisfazer outro tipo de necessidades que não se situam no campo do consumo: tempo livre, prazer, preguiça, arte, curiosidade, conhecimento...
4- A questão fundamental que se coloca aos críticos do capitalismo é outra e diferente daquela em que insistem: pensar um outro modo das sociedades organizarem a sua produção, o consumo, a existência, em resumo as condições da autogestão generalizada. Quando se fala de uma «outra» sociedade é isso mesmo uma sociedade nas antípodas da capitalista.
«Por que devemas pessoas lutar tanto para maximizarem sua renda quando o preço são muitas horas tediosas e tenebrosas de trabalho? Por que agir assim justamente quando os bens se tornam mais abundantes e menos urgentes? Por que não buscam ao invés maximizar as recompensas e alegrias de todas as horas de seus dias?»
A Sociedade Opulenta. J. K. Galbraith
Uma análise mais lúcida e progressista do que a de certos marxistas feita, há muitas décadas, por Galbraith, um economista liberal, dirigida aos norte-americanos...
Nada tenho a opôr ao primeiro parágrafo. É óbvio.
O segundo parágrafo inicia-se de modo muito interessante: “(…)com o capitalismo, a produção orienta-se para a criação de um mercado(…)”. Exacto. Inclusivé manipulando a vontade dos possíveis consumidores, levando-os a querer mais bens do que de outro modo pretenderiam. Este mercado em expansão só é necessário porque os consumidores são simultaneamente os produtores. Ou seja, para mais consumirem, mais precisam de trabalhar, elevando assim a mais-valia extraída pelo capitalista. Num contexto em que a produção estivesse desligada do consumo, por exemplo em resultado duma automatização completa da produção, a criação de mercado seria dispensável. O capitalista, detentor dos meios de produção, poderia então produzir o que quisesse sem necessitar dum mercado onde vender. Na verdade, nesse caso já nem poderíamos falar em capitalismo.
A afirmação que encerra o último parágrafo não é verdadeira. A não ser que se postule que as lutas “ecologistas” não são lutas sociais. O que seria extraordinário, quando se olha para movimentos extremamente amplos, como o anti-nuclear, só para dar um exemplo. Aqui é bem claro que há enorme maioria de pessoas, trabalhadores, que recusam um bem, electricidade mais barata. Não só em potencial, antes da construção, mas também após esta ter tido lugar (veja-se o caso do abandono do nuclear pela Alemanha).
O 4o parágrafo resume todas as lutas sociais a lutas por melhores salários, o que é manifestamente redutor. Como se pode constatar pelo exemplo anterior.
A sugestão de que a “esquerda anti-consumo” pretenderia diminuir o acesso a cuidados de saúde é absurda, e manifesta algum desespero relativamente à falta de argumentos. O número de leitores deste blogue é tão reduzido, que não se torna necessário entrar em campanha eleitoral. Num contexto de decrescimento, qualquer “esquerda” defenderá obviamente a manutenção ou mesmo crescimento da provisão pública de bens essenciais, incluindo saúde e educação (gratuitas), à custa duma diminuição da provisão privada de bens. Quais? Por exemplo, o automóvel. Serviços de transporte públicos eficientes e gratuitos não necessitariam de tantos recursos como a mobilidade baseada (essencialmente) no automóvel.
A partir daqui, tenho pena, mas o texto começa a descambar para a demagogia ao melhor estilo eleitoral.
O último parágrafo pretende, nem se percebe bem como, meter no mesmo saco todos os “inimigos predilectos” do JVA, em particular “esquerda ecologista” e “esquerda à la PCP”. Que, obviamente, nada têm em comum. O PCP, tal como todos os regimes que o JVA refere, são/foram “desenvolvimentistas” até ao tutano. Não partilham é da receita que o JVA julga mais adequada para conseguir esse “desenvolvimento histórico”. Pelo menos, o João Bernardo já deixou bem claro que o fim que ele pretende não é a auto-gestão dos trabalhadores, mas sim o “desenvolvimento histórico” da Humanidade. E, se chegar à conclusão, em alguma altura, que a primeira não leva à segunda, então dispensará a primeira. Para mim a auto-gestão dos trabalhadores é o fim. E serão eles a decidirem o que desejam para o seu próprio futuro. Socialismo é socialismo. Qualificá-lo é absurdo.
Libertário,
o teu primeiro comentário e os considerandos insultuosos que o segundo mantém não ajudam a fazer passar a pertinência de algumas questões que acabas por levantar, ao mesmo tempo que te impedem de reconhecer que a sua pertinência não infirma a concepção da "abundância" como "redução da exposição humana a contingências supra-individuais" formulada pelo JVA. E é pena porque, noutros termas, estaríamos perante um debate que… vale a pena. É o que tentarei indicar a seguir.
É justamente uma concepção da abundância em termos semelhantes aos mobilizados pelo JVA, como sendo aquela que a "autogestão generalizada" e a democratização radical da actividade económica aos diversos níveis pressupõe, que nos permite entendê-la não em termos de "mais do mesmo", mas de "melhor sem escassez". E isto é tanto mais verdade quando consideramos, como o JVA não parece ter dúvidas em fazer, o problema do consumo sem o reduzir ao consumo privado:"No caso das lutas em que a autogestão se coloca já não se trata apenas do acesso ao que consideram ser uma parte da abundância de bens e serviços disponíveis mas também, e sobretudo, na determinação de que bens e serviços" se trata de assegurar em condições de acesso igualitário ao seu consumo e utilização.
Por fim, os diversos pontos que enumeras no final do segundo comentário e que, a meu ver, sublinham a actualidade e a urgência da democratização da economia, também não refutam a concepção de "abundância" que o JVA propõe, antes sugerem que garanti-la não se pode limitar a assegurar quantidades de bens suficientes, mas significa ou implica necessariamente , num quadro de democratização do mercado (igualização dos rendimentos) e da produção, a reorientação, reconversão, reorganização, redefinição de prioridades desta última.
Achas que é abusivo ou demagógico pedir-te que reequaciones tendo tudo isto em conta os termos do debate e as condições que o tornariam possível?
msp
Quando uma luta é conduzida por organizações de (candidatos a) gestores (sejam eles sindicais, partidários ou de movimentos - sociais ou ecologistas) é evidente que não faz qualquer sentido colocá-las no mesmo plano das lutas sociais dos trabalhadores. Não percebendo este ponto básico, só assim se explica que se possa defender que uma luta anti-nuclear seja uma luta da classe trabalhadora. Para dar um exemplo extremo, a classe trabalhadora também foi a mola humana mobilizada por alguns movimentos fascistas e isso não fez desses movimentos uma luta social - reivindicativa ou pela auto-gestão - dos trabalhadores. Num contexto diferente, o mesmo se aplica a uma manifestação rotineira da CGTP ou de qualquer sindicato burocrático. em qualquer país do mundo.
Sem se compreender a diferença entre as lutas autónomas da classe trabalhadora - e que no texto menciono «organismos autónomos (comités de fábrica, comissões de trabalhadores, conselhos operários, etc. etc.» - com eventos políticos convocados, mobilizados e dirigidos por empreendedores ecológico-catastrofistas, é evidente que depois fazem-se comentários que nem se percebem muito bem, dado a mistura de tresleitura e de confusão que por ali abunda.
Reitero a questão colocada no texto: «seria interessante que quem defende a irrelevância da abundância fizesse campanha política junto dos trabalhadores dizendo-lhes que se propõem reduzir o acesso a bens de consumo, a serviços de saúde ou a usufruir tempo de lazer».
Galbraith no seu livro "Sociedade da Abundância (ou da Opulênica)" escreve:
"Mobilar um quarto vazio é uma coisa. Continuar a acumular móveis até os próprios alicerces vergarem é outra muito diferente. Não conseguir resolver o problema de produzir bens teria perpetuado o ser humano em sua mais antiga e dolorosa desgraça. Mas não ver que nós o resolvemos, e daí não partir para outras tarefas seria igualmente trágico."
Ou seja Galbraith está à "esquerda" de João Valente Aguiar...
Caro Pedro,
não és evidentemente obrigado a subscrever o que o João Bernardo quer e tens todo o direito a discutir e a criticar as suas ideias, como as de qualquer outro. Mas convém que não te deixes cegar por uma hostilidade ad hominem demasiado manifesta e que discutas o que ele escreve e não os absurdos que lhe atribuis. Com efeito, dizer do autor de um texto como "Sobre a Esquerda e as Esquerdas" — cuja conclusão é que a alternativa ao actual regime de dominação capitalista e burocrático é uma "democracia revolucionária", a cuja forma e projecto não vejo, a partir das ideias que te conheço, que objecções possas pôr (por muito que possas discutir se as vias e os meios da sua actualização que o JB concebe são os melhores ou os mais razoáveis) — dizer do autor de um texto assim, escrevia eu, que "deixou bem claro que o fim que ele pretende não é a auto-gestão dos trabalhadores", é uma acusação tão descabelada como seria a de quem te acusasse de preferires que metade da humanidade morra de fome se for essa a melhor maneira de uma gestão equilibrada dos recursos naturais. E a partir do momento em que a discussão degenera a tal ponto, torna-se impossível não só o acordo como a fundamentação das divergências, — restam os rituais de excomunhão. De momento, é tudo. Só acrescento que muito me alegraria que pudéssemos voltar a debater razoavelmente — não queres tentar?
Abraço
miguel(sp)
Caro Miguel,
Acho que não entendeste o que eu disse. Na minha frase que citas, o termo “fim” é crucial para a perceber. O João Bernardo foi perfeitamente claro no texto que aqui publicou por intermédio do JVA: “(…)uma sociedade sem classes corresponderá a uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico — senão não valeria a pena lutar por ela(…)”. Parece-me óbvio, mas que ele me desminta se o estiver a interpretar mal. Efectivamente, o João Bernardo diz que a “sociedade sem classes”, isto é o socialismo/comunismo, só vale a pena se corresponder a “uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico”. Ou seja, é (apenas) um meio para atingir um determinado fim (o “desenvolvimento histórico” da Humanidade). Não é um fim em si, repito, apenas um meio. E isto não é uma questão de (jogo de) palavras. Não sendo um fim, se o socialismo (a auto-gestão dos trabalhadores) efectivamente não corresponder ao esperado, não cumprir a sua “missão histórica”, teria então de ser substituído por uma qualquer outra forma social que o permita. O João Bernardo acredita que o socialismo é esse meio, e di-lo, mas também tem a honestidade intelectual, e aproveito para a saudar, de não tentar esconder os fundamentos da sua posição ideológica. A qual, na verdade, não tem nada de original (espero que não seja considerado um insulto…). Marx e Engels tinham exactamente a mesma opinião, como o João Bernardo refere no início do seu texto aqui publicado. Colocado de outro modo, o que valorizo no socialismo é o processo. Para mim o processo, a auto-gestão, é o objectivo, o fim porque devemos lutar. Tanto quanto percebo, o que o João Bernardo valoriza no socialismo é o que ele (acha) que esse processo permitirá atingir, o quem vem depois do processo.
Abraço,
Pedro
David da Bernarda,
1) achar que o planeta Terra é como um quarto delimitado onde os recursos actuais já estão pré-definidos e limitados a priori desde a sua génese é esquecer que os próprios recursos utilizados pelas sociedades são também parte dos mecanismos que estas tiveram de ir reproduzindo o meio envolvente. Se a sua tese fosse verdadeira e, sublinho, absoluta, então o capitalismo nunca teria podido vingar dado que muitos dos campos agrícolas onde começaram a surgir as enclosures tinham sido até então utilizadas e depredadas durante o regime senhorial. Aliás, se há modo de produção que soçobrou em boa medida por via da deterioração dos recursos foi a sociedade senhorial, essa mesma que não era industrializada.
Ao mesmo tempo, defender que os recursos estão à beira do colapso total tem muito de catastrofismo proveniente do romantismo, essa grande narrativa emancipatória... Veja o Melancholia do Lars Von Trier e compare a sua visão do mundo com a que é lá exposta de um planeta que vem em direcção à Terra para a destruir irremediavelmente, o sentimento de perda irremediável das personagens, etc.
De salientar ainda que os recursos que hoje são finitos substituíram outros que deixaram de ser usados ou se tornaram residuais. E a esquerda da escassez em vez de ver que o que tem ocorrido na modernidade é o simultâneo uso de um recurso energético em grande escala enquanto se vai pesquisando o surgimento de um outro, o que faz é defender a suspensão do uso do recurso finito e tentar travar a pesquisa por outras fontes energéticas ou de melhorar a segurança de outras.
2) achar que o planeta não pode oferecer abundância (não confundir com opulência) aos seus habitantes significa dizer às centenas e centenas de milhões de pessoas que vivem na pobreza nos países menos desenvolvidos que ainda bem que não lutam por melhores condições de vida, não vá a Mãe Terra rebentar... Em suma, esta ideia é tão de esquerda que se presta a um serviço impagável de manter toda aquela massa humana sem o mínimo de dignidade. Mas ser de esquerda é salvar a Mãe Terra, mesmo que centenas de milhões se continuem a lixar... Enfim. O que os defensores destas teses não aguentam é saber que se se aplicasse o que defendem, o resultado seria muitíssimo pior do que o capitalismo. Este deveria ser um motivo de embaraço para a esquerda da escassez.
Caro Pedro,
saúdo a mudança de tom — que acaba por ser também de conteúdo — com que me respondes. Mas creio que erras o alvo, porque interpretas restritivamente — como simples crescimento económico, aumento do PIB e por aí fora — o termo "desenvolvimento histórico", e também não atendes ai facto de o próprio JB não conceber a "produção" ou as "forças produtivas" numa acepção prioritariamente "económica" ou "quantitativa". A democracia (revolucionária) é condição de um "desenvolvimento histórico" que o é porque alarga o campo de acção e criação lúcidas na "produção do homem pelo homem", se assim posso dizer — pelo que o "desenvolvimento histórico" não é um fim do qual a democracia seja um meio, mas um resultado da revolução ou transformação radical que a "democracia revolucionária" introduz, a partir do momento e à medida em que a luta por ela se inicia e difunde. Assim, o "desenvolvimento histórico", que seria a libertação das potencialidades idenfinidas que as relações de poder vigentes aprisionam e subordinam à exploração e à subordinação hierárquica características da economia política governante, não reduz a um meio ancilar a democracia ou a democratização revolucionária, mas confunde-se com a sua acção instituinte: gestão igualitária da produção, decisão e deliberação democráticas dos seus fins e conteúdos, dos seus "como", "porquê" e "para quê".
É tendo-o em conta que escrevi que, por muito que divirjas noutras questões do JB, deverias reconhecer que ele não afirma menos do que tu a "prioridade da democracia" na luta política, e que o reconhecimento de que assim é deveria levar-te a discutir noutros termos, e partindo do pressuposto de uma solidariedade de propósitos políticos fundamental, os aspectos das suas análises que não merecem o teu acordo. Afinal, trata-se de saber se me concedes ou não que a democracia e a democratização podem e devem constituir uma plataforma necessária e suficiente…
Abraço
miguel(sp)
Caro Miguel,
Como quase sempre, estou totalmente de acordo contigo no que respeita à tua interpretação do que é, ou deve ser, o socialismo, autonomia ou comunismo. E no processo, tocas, não sei se intencionalmente, no ponto fulcral da discussão em curso, quando afirmas “(…)a democracia e a democratização podem e devem constituir uma plataforma necessária e suficiente”. Absolutamente! É tão só isso que tenho vindo a dizer. A democracia, a autonomia, o socialismo, não precisam de qualificativos entre aqueles que partilham a mesma opinião sobre o significado desses conceitos. Mas, sendo assim, se na verdade concordamos todos, pergunto-te, ou pergunto-lhes: porque é que o JB e o JVA insistem na necessidade de atrelar os qualificativos “miséria” e “abundância” ao socialismo? Uma análise semântica de tais expressões, utilizando as ferramentas da lógica, leva a que se conclua inevitavelmente que para eles o socialismo é condição necessária, mas não suficiente. O que têm defendido, é que só a junção do termo “da abundância” a socialismo permite a criação duma condição que também passa a ser suficiente. Efectivamente, afirmam que existem dois tipos de socialismo, “da miséria” e “da abundância”, e que o primeiro não merece o seu apoio. Apesar deste último apenas diferir do primeiro no facto dos trabalhadores decidirem, livre e democraticamente, encetar pela via “da miséria”. Até podem afirmar que, se realmente existisse socialismo, os trabalhadores optariam inevitavelmente pela via “da abundância”. Mas, se acreditam em tal, para quê levantar o espectro da possibilidade do “socialismo da miséria”? Para quê arremessar contra moinhos de vento imaginários? O que me parece é que, na verdade, receiam que não seja assim tão improvável os trabalhadores escolherem livre e conscientemente a via “da miséria”. É que não há outra possibilidade lógica.
Quando entro numa discussão, faço-o sempre de boa-fé. Faço-o acima de tudo para descobrir inconsistências lógicas no meu raciocínio. Para o colocar à prova. Espero que os outros tenham a mesma atitude, e utilizem as mesmas ferramentas lógicas para raciocinar e identificar contradições que devem ser esclarecidas. Antes de mais tal passa por um esforço prévio de clarificação de conceitos. Uma discussão em que isto não acontece, é, como se diz, uma “discussão de surdos”, um perda de tempo e não me interessa de todo.
Abraço,
Pedro
Caro Pedro,
tem ficado claro ao longo dos ´
ultimos dias que nem eu subscrevo tudo o que escreve o João Bernardo ou o João Valente Aguiar, nem vice-versa. Mas procurei esclarecer, aprofundar, abrir caminho para uma possível resolução das divergências tendo em conta que estas ocorrem dentro de uma convergência ou solidariedade pol´tica mais ampla e sólida, que é precisamente a perspectiva da democratização como plataforma necessária e suficiente. Trata-se de uma perspectiva e de uma plataforma na qual — chamem-lhes ele assim ou não — se inscrevem até à evidência tanto as posições do JB como do JVA — e que tu declaras em termos explícitos aceitar também. É por isso que me custa a compreender que não faças esta convergência política maior presidir à discussão das divergências, mantendo-a como ponto de referência das tuas críticas, e tenhas, pelo contrário, insistido em atribuir ao JB e ao JVA posições e conclusões que não são as deles, através de uma série de interpretações distorcidas e de pressuposições que, por outro lado, em nada contribuem para validar os teus argumentos. Não me compete responder pelo JB nem pelo JVA, mas reepara, por exemplo, que ainda agora os acusas de se agarrarem a uma oposição rígida entre "socialismo da abundância" e "socialismo da miséria", sem veres que o JB nçao considera realmente "socialista" o segundo, mas antes vê nele a via ou o alibi ideológico daquilo a que chama o "capitalismo da escassez". A democratização como plataforma significa que, no campo da organização económica (da repartição do produto às prioridades da produção e à gestão das empresas, passando pelos modelos energéticos e às políticas dsos recursos, pelas questões ambientais, urbanas e de ordenamento do território, etc., etc.) serão os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos comuns a deliberar e decidir igualitária e responsavelmente. O facto de as propostas que tu lhes endereças serem diferentes das que outros defenderão não te autoriza a excluir os segundos da plataforma da democratização ou a acusá-los, distorcendo a realidade, de secundarizarem ou tornarem mero expediente táctico a democracia no sentido em que a refiro aqui. Espero que não aches que fui surdo ao que dizes e que, para sairmos da "discussão de surdos" que te desagrada, acedas a ouvir e ler com atenção suficiente os argumentos e posições dos demais.
Abraço
miguel(sp)
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