20/05/14

Socialismo vs. desenvolvimentismo

Afirmar que “Quem impõe a abundância são os trabalhadores quando reivindicam maior poder de compra(…)” implica esquecer porque existe nos sistemas capitalistas o fenómeno da publicidade. Esta consiste tão somente numa tentativa de manipulação do interesse dos trabalhadores, levando-os a consumir mais (e portanto a exigir mais poder de compra) do que de outro modo fariam. Aliás, a única razão lógica para o consumo é a satisfação (ou felicidade) provocada por tal acto. Mas, na verdade, em média e em agregado, esta tem permanecido estável, ou até decrescido, nos países capitalistas mais avançados durante as últimas décadas, apesar do nível médio de consumo ter aumentado várias vezes. Portanto, tal aconteceu ou porque os trabalhadores têm agido de modo irracional, manipulados pelas estruturas sócio-económicas existentes, ou porque existem outros factores que têm afectado de modo negativo o incremento em satisfação que seria de esperar dum maior nível de consumo em absoluto. Na verdade, as duas causas coexistem, sendo um dos factores que explica a segunda, a constatação de que o nível de satisfação que decorre do consumo (a partir dum certo nível) é relativo. Isto é, uma fracção, que pode ser muito significativa a partir dum certo nível de rendimento, do consumo efectuado pelos trabalhadores é feito como forma de manterem o (ou a percepção do) seu estatuto social. Em qualquer caso, daqui decorre que não é possível afirmar que a “abundância” é algo que os trabalhadores “naturalmente” exigiriam no contexto dum sistema de relações sociais completamente distinto do actual. Em particular, se estiverem conscientes que tal “abundância” ocorreria em detrimento de outros objectivos pretendidos por esses mesmos trabalhadores. Não há qualquer evidência empírica, nem quaisquer características intrínsecas ao ser humano, que sustentem essa afirmação. No entanto, João Bernardo ao dizer que “E esta é uma questão de relações sociais de produção e não de votos num referendo” acaba por ser certeiro, mas não no sentido que pretendia. Na verdade, parafraseando-o, o nível de abundância exigido pelos trabalhadores resulta das relações sociais de produção, e de outras que destas decorrem. Isto é, apenas quando inseridos num sistema de relações sociais de produção não-capitalista, por exemplo do tipo socialista ou comunista, é que será possível perceber que “abundância” é desejada pelos trabalhadores.

No que se refere ao desentendimento sobre o significado de abundância, João Bernardo parece defender ao mesmo tempo a qualidade em detrimento da quantidade e a oferta ilimitada da primeira. É óbvio que partilho, em princípio, deste desiderato. Aliás, a crítica da quantidade em detrimento da qualidade (de vida) é central à “visão ecologista”. A contradição surge, como já foi antes por mim sublinhado, quando se torna evidente (para menos para alguns) que não é possível a abundância (material) ilimitada, não só por causa da existência de limites físicos a essa expansão, mas também porque é detrimental para a obtenção de outros objectivos eventualmente também desejáveis pelos trabalhadores.

A insistência na dicotomia “abundância” versus “miséria” no seio do socialismo ou comunismo é absolutamente perniciosa e apenas serve para dividir quem está de acordo no essencial: as relações sociais de produção, e todas as outras que destas decorrem, devem ser definidas pelos próprios trabalhadores. Se algum trabalhador perguntar pela “abundância” no socialismo ou comunismo, a seguinte resposta deveria ser mais do que suficiente: como quiseres, tu decidirás. No entanto, pelo que João Bernardo afirma a dada altura, parece-me que não concordará com tal. Quando diz que “(…)uma sociedade sem classes corresponderá a uma aceleração e uma ampliação do desenvolvimento histórico — senão não valeria a pena lutar por ela(…)” está efetivamente a defender que a autonomia, o socialismo ou comunismo não é um fim em si, mas um meio para o “desenvolvimento histórico”. Ou seja, se porventura, os trabalhadores decidissem, de livre consciência, por uma “sociedade do ócio”, em que é apenas produzido, por meio de relações de produção auto-geridas, o estritamente necessário com o objectivo de maximizar o tempo não-produtivo (independentemente do seu uso), João Bernardo acharia que por tal sociedade não valeria a pena lutar (sendo preferível o capitalismo, porque este pelo menos acelera “o desenvolvimento histórico”). Com esta afirmação torna-se claro que o que separa João Bernardo do “ecologismo” não é o facto de considerar que este não é compatível com o socialismo (auto-gestão das relações de produção), mas sim porque o “ecologismo” (aparentemente, e na prática sob certas condições, mas não por princípio) se opõe ao “desenvolvimento histórico”. No essencial, João Bernardo dá prioridade ao Homem relativamente ao homem. O que é a autonomia, a felicidade do mero ser humano, comparado com o desígnio do “desenvolvimento histórico” da Humanidade?… Talvez fosse mais apropriado designar tal ideologia por “desenvolvimentismo”, em vez de socialismo.

No que concerne ao conceito de “desenvolvimento histórico”, ao contrário de algumas interpretações muito em voga após a publicação da teoria da evolução natural de Darwin, é hoje claro que esta não prevê qualquer “fim” ou “sentido último” para a evolução. Genericamente, um sistema natural, um ecosistema, tem tendência para tornar-se mais complexo com o tempo, no sentido de maior complexidade dos organismos que o constituem e das relações entre eles, desde que o ambiente material onde se insere assim o permita. Mesmo assim, essa evolução poderá sofrer retrocessos devido à propagação de instabilidades, características de qualquer sistema sujeito a algum grau de aleatoriedade. Portanto, não há um “fim” ou “sentido último” para o “desenvolvimento histórico” dum ecosistema. Há ciclos, em particular sujeitos aos constrangimentos materiais do meio onde se insere. Não há razão nenhuma, que não a mera fé na capacidade do homem para transcender o material, para as sociedades humanas não estarem sujeitas às mesmas leis físicas que em último caso governam a evolução dum ecosistema. Marx e Engels aperceberam-se disto, mas optaram, em resultado da influência iluminista que carregavam e por inconsciência dos limites físicos existentes (o que se entende tendo em conta a época em que viveram), por não explorar cabalmente as suas consequências para a evolução histórica da humanidade. Ou seja, o processo dialéctico que encetaram, assente no materialismo, ficou incompleto.

3 comentários:

Libertário disse...

Pedro Viana põe a nu as contradições, e fragilidades, dos textos de João Bernardo no que se refere às questões do «desenvolvimento», da «técnica»,da «ecologia» e do «socialismo de miséria ou da abundânica».
Só acrescentaria que a "ideologia do consumo" é um dos pilares fundamentais que tem sustentado o capitalismo a partir do século XX e é o elemento decisivo na integração das classes trabalhadoras na lógica económica e social do capitalismo contemporâneo. Obviamente que o João Bernardo não ignora isto, embora nas suas análises passe por cima dessas evidências fundamentais...

Niet disse...

Tenho concordado com o que escreve o Pedro Viana, na generalidade.Há uma tese do Castoriadis- expressa nos últimos textos que publicou- que frisa: quanto mais apoiarmos cega e freneticamente a opção desenvolvimentista, mais dificil se tornará tentar implantar um projecto autonómico de libertação. Salut! Niet

Niet disse...

Pedro Viana: Há um texto essencial do Castoriadis- que se socorre de Weber e Polyani, Schumpter e Lukäcs, entre outros- " A racionalidade do Capitalismo"-que desmonta a grande falácia da dita " racionalidade " . Está inserto no volume 6 dos C. du labyrinthe, de 1999. Nele, entre outros grandes traços criticos, Castoriadis demonstra como a " racionalidade " económica é tautológica." O mercado não é, nunca foi e jamais o será, tanto quanto existir o capitalismo, um " mercado " perfeito, nem mesmo concorrencial no dito piedoso dos manuais de economia politica. Foi sempre caracterizado outrossim pelas intervenções da potência estatista, as coligações entre os capitalistas, a retenção da Informação, as manipulações dos consumidores e a violência aberta ou camuflada contra os trabalhadores. Diverge pouco de uma selva moderadamente selvagem, e, como em todas as selvas, os mais aptos a sobreviver sobreviveram e sobrevivem- só que esta aptitude a sobreviver não coincide com nenhum optimum social, nem mesmo com o máximo de uma produção entravada pela concentração do capital, os oligopólios e os monopólios, sem mencionar as alocações irracionais de recursos, de capacidades não utilizadas e do conflito permanente em torno da produção nos locais de trabalho",in CL 6. Como ele o explica nas suas fases essenciais, "existiu uma economia politica clássica, que se concluiu, de facto, em Marx"...Salut! Niet