02/06/14

A França e o resto — Quando o errado parece fácil

O texto de Yves Pagès que aqui publico sobre as recentes eleições europeias em França retoma dois aspectos essenciais : a profunda crise do sistema representativo e a penetração progressiva das ideias e das ideologias reaccionárias na sociedade. A abstenção maciça — que não é específica da situação francesa como se sabe —põe directamente em causa a legitimidade do funcionamento político do sistema capitalista. Esta questão é frequentemente dissimuladapela algazarra à volta do conceito,impreciso mas neste caso útil, de «populismo». Também inconfortável para os «pensadores» do sistema é a questão dos valores reaccionários, hoje assumidos, com variantes superficiais, por quase todos os sectores da vida política. Veja-se, por exemplo, a continuidade entre direita e esquerda na promoção do necessário sacrifício do empobrecimento social e na banalização do nacionalismo, xenofobia e diversas formas de exclusão. Temas, evidentemente, complementares.

Para além do que é dito por Y.P., ficam questões a sondar e a discutir. Algumas serão, sem dúvida, clarificadas pelo próprio movimento das sociedades nos próximos anos. Incontornável é o debate sobre as causas desta crise de representaçãoe, acessoriamente, esta atracção por valores reaccionários que ainda ontem eram tidos como liquidados pela História. Não será original, nem mesmo provocador, reivindicar aqui a fórmula de Marx segundo a qual, no capitalismo, as formas de dominação política e ideológica estão intimamente ligadas às formas de exploração do trabalho. No período em que entramos, caracterizado por uma perene crise de rentabilidade do capitalismo, de estagnação da economia produtiva, as condições de exploração são mais violentas. Em tempos de «austeridade perpétua», o autoritarismo das formas de dominação substitui a velha cogestão democrática entre explorados e exploradores, que trouxe vitalidade a partidos e sindicatos.

Na ausência de práticas e movimentos sociais dos quais possam emergir conteúdos auto-emancipadores, visões de uma reorganização social da vida e do mundo — a tal «ocupação concreta dos espaços libertados por este boicote eleitoral de massa» que menciona Y.P. — as propostas reaccionárias vêm ao de cima das águas estagnantes. Elas apresentam-se como soluções possíveis, tranquilizantes, alternativas a um quotidiano inseguro e incerto. A atracção por formações políticas que se reclamam destas ideias traduz uma falta de confiança nas nossas próprias forças para transformar a sociedade, para pôr um termo ao desastre. Assim, o que parece facilidade realista é mais do que uma demissão, é um engano que acarreta um terrível custo humano. Inversamente, uma vez mais, o que parece difícil, irrealizável e utópico constitui a única saída antes da barbárie. Entre a minoria dos trabalhadores que ainda vota, poucos são os que procuram uma nova «ordem nova», como as da velha senhora. Pelo voto nos maus da fita, a maioria desta minoria é convencida que vai «criar barafunda no mundo podre da política», modificar uma situação que lhes escapa. Incapazes de agir por si próprios e pelos seus interesses, frustrados e desesperados, eles fazem como de costume, delegam, desta vez a raiva…

As eleições europeias põem ainda mais em evidência o sentimento de impotência do explorado, do dominado — nomeado «eleitor»de vez em quando — face a uma casta política arrogante, autoritária e opaca, ligada aos interesses das forças capitalistas dominantes. No caso lusitano, a perspectiva de um regresso ao débil quadro nacional de soberania económica — defendida pela saloiada política nacionalista, de direita e de esquerda — será mais um desastre à D. Sebastião, mais um episódio da decadente História Trágico-Marítima… Obviamente, sem alterar a submissão da colectividade ao mesmo sistema de delegação do poder em benefício dos senhores da economia. Caminhos errados para tempos errados.

Como conservar a cabeça fria após a ressaca eleitoral ? —

Para além da vigilância antifascista.

A vitória enganosa de Marine Le Pen (com 25% dos sufrágios, mas com menos 1,7 milhões de votos do que na última eleição presidencial) não pode esconder o fenómeno principal desta eleição europeia: a abstenção maciça de 57,5 % do eleitorado, já para não falar dos 3% de votos brancos, 1,5% de votos nulos e os 0,5% obtidos pelo fantasmagórico Partido do Voto Branco, ou seja, 62,5 % dos 45,5 milhões de inscritos (por sua vez, menos meio milhão relativamente ao escrutínio de 2012), o que representa um total de 28,5 milhões de pessoas não participantes ou votos voluntariamente não expressos.

É claro que é difícil distinguir uma mensagem unívoca entre os muitos que não cumpriram o seu «dever» republicano ou recusaram escolher o «mal menor» no universo de candidatos. Nesta deserção das urnas há a expressão de humores diversos e flutuantes: desde quem se está nas tintas até aos que fazem resistência passiva, passando por outros motivos existenciais: o fechamento egoísta em si mesmo, a inércia depressiva, a indiferença relativamente às profissões de fé, a recusa de caucionar quem quer que seja, a dúvida conspiracionista, a objecção de consciência idealista, o sentimento de inutilidade, a amargura misantropa, a despreocupação juvenil, a incompreensão do que está em jogo, o reflexo da desilusão, a preguiça de sair de casa, a birra colegial, o desafio para com os governantes, a indecisão perpétua, o manguito ao sistema, o fatalismo desesperado, o esquecimento puro e simples, etc.

Embora seja abusivo procurar descobrir neste não-gesto do não-voto ou do voto neutro – tal como o «preferia não» de um Bartleby – uma recusa explícita da ordem dominante, não podemos omiti-lo, ou, pior ainda, considerá-lo apenas uma anódina «ausência de opinião». Quando dois terços dos eleitores potenciais dão um passo para o lado (aqui tal como no Egipto), esta ausência de adesão espectacular remete (uma vez mais) para a crise, ou mesmo a falência, do ritual democrático e da sua suposta representatividade. E do lado dos menores de 35 anos as proporções são ainda mais marcantes: com efeito, embora um terço dos que votaram tenha dado o seu voto à Frente Nacional, os dois terços desta faixa etária preferiram recusar a ida às urnas. Assim o resultado da FN é menos um triunfo irresistível (diminuindo, insistimos mais uma vez, de 13% dos inscritos em 2012 para 10% na semana passada) do que o efeito de vasos comunicantes decorrente da implosão dos partidos de governo que estiveram no poder nos últimos decénios.

A verdadeira preocupação é que, até agora, esta rejeição cidadã não parece ter, em França, libertado espaço para experiências de contestação activa dos imperativos da Austeridade (como na Grécia ou em Espanha, onde o lugar vago deixado pelo boicote eleitoral de massa deu origem a novas práticas extraparlamentares, preocupadas com a horizontalidade organizacional, a autodefesa local e cooperações utopicamente concretas… e vice-versa). Mas nunca é tare para levantar cabeça e não ceder à resignação comum, induzida por este «duplo vínculo» mortífero: ou o pragmatismo económico ou o perigo populista; para encontrar a força colectiva de neutralizar a alternativa viciada que pretendem agora impor-nos: apertar o cinto com o FMI ou cair sob a bota das centúrias fascistas. Nada está ainda perdido, mas torna-se urgente curtocircuitar esta chantagem binária a que nos vão submeter os meios de comunicação social, os democratas de todas as cores e os consultores da finança. Embora seja preciso dizer que o antifascismo radical é evidentemente necessário, este está longe de ser suficiente. A única saída, antes que a Frente Nacional negoceie (em posição de força) uma aliança/reconciliação de todas as direitas sob a sua bandeira ultra-modernizada (como em Itália há já quinze anos), seria quebrar imediatamente o isolamento de cada um de nós e o cansaço desencantado de todos, para passar à ofensiva no terreno da precarização social e urbana das nossas condições de vida. Em duas palavras, transformar esta linha de fuga da despolitização latente em energia colectiva de desafio activo dos poderosos. Vasto programa, mas que exige doravante ser enunciado com outras palavras, outros gestos, outras afinidades, diferentes dos tempos que já lá vão do paritarismo sindical ou do guevarismo de opereta do Front de Gauche… como tenta hoje fazer o movimento dos desempregados, precários, intermitentes e temporários (com ou sem papeis) face à frente comum do patronato e dos sindicatos mais consensuais com a duplicidade benevolente do poder socialista.

Dito isto, a urgência que existe de lutar contra a violência quotidiana da «Austeridade Perpétua», embora vá além do simples dever de vigilância antifascista, não significa que devamos subestimar a influência de Marine Le Pen (e dos seus jovens tecnocratas new-look) nos debates de sociedade, reproduzida com zelo pelos meios de comunicação social ávidos de sensações fortes ou pelos neoconservadores de todas as obediências partidárias que agora monopolizam as bancadas do Hemiciclo. E sabemos como os propagandistas da extrema-direita, apropriando-se das teorias de Antonio Gramsci, fizeram do combate pela «hegemonia cultural» o seu objectivo central, através do marketing viral da Internet (e dos seus boatos nauseabundos reciclados a preceito) ou lançando balões de ensaio que defendem tudo e o seu contrário até focar a atenção dos projectores do espectáculo jornalístico. Ignorar esta contaminação seria ceder terreno face à banalização sub-reptícia de certas palavras-chave da FN (retomadas desde a direita até à esquerda), aos autocolantes que florescem daqui e dali no mobiliário urbano, veiculando mensagens fóbicas : anti-árabes, anti-semitas, anti-drogados, anti-homossexuais, etc. Dir-se-ia que estamos a assistir a um reviver do activismo dos grupúsculos ultra, à margem do «novo visual» eleitoralista da Frente Nacional. No entanto, estes autocolantes, fundindo-se na paisagem, provocam, se não uma adesão maciça, pelo menos a vulgarização de novos idiomatismos que dão perfidamente eco ao desespero social ambiente. Aliás, é precisamente o objectivo dos «criativos » fascistóides que se escondem por trás de testas de ferro de uma nebulosa de movimentos fantoches, alimentar a paranóia complotista, o ressentimento rancoroso e a estupidez nacionalista. E, neste campo de batalha semântico, temos desgraçadamente de constatar que a sua ofensiva marca pontos, em consonância com a direitização dos debates públicos e, a contrario, com uma crise dos valores de emancipação colectiva.

29 de Maio de 2014

yves pagès

[http://www.archyves.net/html/Blog/?p=5758]


2 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Jorge,

preciosa recomendação de leitura, a que apresentas aqui com observações preliminares fulgurantes. Sublinho, por exemplo: "o que parece facilidade realista é mais do que uma demissão, é um engano que acarreta um terrível custo humano. Inversamente, uma vez mais, o que parece difícil, irrealizável e utópico constitui a única saída antes da barbárie. Entre a minoria dos trabalhadores que ainda vota, poucos são os que procuram uma nova «ordem nova», como as da velha senhora. (…) Incapazes de agir por si próprios e pelos seus interesses, frustrados e desesperados, eles fazem como de costume, delegam, desta vez a raiva…"

Abraço

miguel(sp)

jose disse...

Quer parecer-me que a questão é mais complexa do que se aflora nos textos aqui publicados, ainda que façam sentido. O ponto fundamental é este: A maioria parece querer salvar o sistema, mas temos de nos interrogar sériamente se ele tem salvação. Eu não creio! Os federalistas deveriam perceber que o projecto europeu já acabou.A vitória da sra. LePen significa que a França sai do comboio e o Reino Unido tb. Sem estes pilares, nada há que salve os burocratas de Bruxelas. Afinal, os tratados apenas serviram para reforçar o poder da Alemanha e isso representa a morte de tudo o mais.Portanto, as periferias como Portugal, ou saem ou serão esmagadas até ao tutano. Os almoços gratis acabaram definitivamente.

Não esbanjámos.... Não pagamos