27/06/14

A peste, a fome e a guerra são uma alternativa à austeridade?

O que é espantoso nas recentes declarações, transcritas pelo i,  de Francisco Louçã sobre a questão do euro, apresentada agora por ele, como solução difícil mas viável, é que todos os considerandos em que se baseia têm por pressuposto a renúncia a travar a batalha contra a austeridade no plano transnacional e, para começar, europeu. É uma linha exactamente contrária à do Syriza, que aposta num combate, também sem dúvida difícil, mas de qualquer modo mais compensador e menos antidemocrático (o próprio Louçã mostra bem o autoritarismo reforçado e militarizado que a ruptura unilateral com o euro acarretaria), visando inflectir a política da UE e forçar a um recuo a sua direcção oligárquica. Entendamo-nos: o mais grave não é que a recente viragem de Louçã, a vingar no BE, signifique o suicídio político deste último, mas está antes nos riscos que o reforço que essa viragem representa do peso do aventureirismo burocrático e nacionalista protagonizado pelo PCP e estranhos companheiros de jornada em relação à Europa, apostando — tal como os partidos de extrema-direita — na sua desagregação ou implosão, ou seja: na via da peste, da fome e da guerra, maquilhada de alternativa ao austeritarismo governante.

3 comentários:

João Valente Aguiar disse...

http://www.ionline.pt/artigos/portugal/louca-anteve-sacrificios-os-da-ii-guerra-mundial

Pelos vistos a catástrofe total tornou-se menos má e uma alternativa...

Sobre as consequências de uma saída do euro é lembrar as excelentes dicas que o próprio Louçã escreveu há dois anos e que, aparentemente, se terá esquecido:

«salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com os activos, mas também com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Essa dívida está em euros, mas o banco falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos no estrangeiro em euros. A dívida pública disparou do dia para a noite porque o Estado ficou com os 175 biliões de dívida dos bancos. Salvar os bancos tem um custo e não é pequeno: as dívidas dos bancos, que antes eram privadas, passam a ser públicas porque foram nacionalizadas» (A dividadura p.24).

«Quanto às exportações, é óbvio que podem aumentar. Mas muitos economistas vêem a sociedade como um laboratório e esquecem demasiadas vezes os tempos da decisão e dos resultados das políticas. Ora, esses tempos vão ser essenciais neste caso, por uma razão simples: é que os preços das importações aumentam de imediato, mas os efeitos do possível aumento das exportações vão demorar algum tempo. Até pode ser muito tempo» (p.27).

«é preciso levar em consideração o custo da matéria-prima e de outros recursos que são importados. (…) Como metade do valor das exportações depende de produtos importados, e estes se tornam mais caros com a desvalorização da moeda, o ganho de competitividade das exportações é diminuído. Por tudo isto, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde. Entretanto, a vida ficou mais cara, os depósitos foram abalados pela desvalorização, o aumento de emprego e de exportações demora algum tempo e é incerto» (pp.27-28).

O mais inacreditável de tudo é que o Syriza coloca a luta pela reestruturação da dívida no plano europeu enquanto cá anda tudo atrás de proteccionismos e da soberaniazinha... E se as votações em queda são problema, então a guinada ainda é mais bizarra. Na Grécia que teve o triplo da queda do PIB relativamente a Portugal e onde a extrema-direita é muito mais numerosa e violenta, o Syriza não teve problemas em defender o euro e a primazia no nível europeu e teve 30% dos votos. Cá é um "ai jesus senão o PC fica chateado e não se coliga connosco"... É uma tristeza.

Infelizmente isto demonstra o que eu já vinha dizendo há dois anos. Do ponto de vista económico e do arranjo das instituições, a UE vai continuar a integrar-se (vd. http://passapalavra.info/2014/06/96841 - a segunda parte será publicada na próxima semana). Entretanto, a esquerda parece querer defender mais o Estado nacional, como se fosse possível fazer o mundo andar para trás. Ou para tentar ser mais explícito, como se fosse desejável mitificar e deturpar o tempo em que o continente europeu não tinha instituições supranacionais e que colocava os sacrossantos Estados nacionais, livres e soberanos em guerra uns com os outros de x em x anos. Ou as pessoas perderam o sentido histórico e já se esqueceram o que era a Europa nas primeiras quatro décadas do século passado ou simplesmente andam perdidas politicamente e perante o actual contexto tenebroso perderam o contacto com a realidade.

João Valente Aguiar disse...

Para os que sentem saudades dessa Europa das nações soberanas talvez devessem dar uma olhada a esse tempo em que a ternura dos Estados nacionais reduziu as cidades e a vida das pessoas a pó: http://online.wsj.com/articles/photos-world-war-i-sites-then-and-now-1403875430?mod=e2fb#1

Ai ai, belos tempos em que as nações eram soberanas...

António Geraldo Dias disse...

Claro que a peste, a fome e a guerra não são uma alternativa à austeridade mas é esse o caminho que a gente arrisca se o cálculo económico e as "formas de propriedade" estendendo o conceito às formas de acção política continuarem a ser os de uma classe burocratizada sem objecto que acabará por se revelar perdido para a revolução ou a contra-revolução:O excepcionalismo europeu é uma construção demasiado frágil pelo menos no plano da especulação e da dívida contra a hegemonia do capitalismo mais selvagem como o é o sul americano e nada garante que o estado social europeu esteja ao abrigo do mesmo tipo de violência.