02/06/14

O BE, a democracia e a protecção dos animais


O que distingue um movimento democrático é o propósito, e um modo de intervenção e acção correspondente, de conquistar para os cidadãos comuns a participação igualitária na deliberação das decisões que lhes dizem colectivamente respeito e no exercício do poder político. É este o traço fundamental que opõe um partido ou movimento democrático às soluções propostas daqueles que reclamam o poder governante em nome de terceiros, ou de uma modalidade de defesa do bem ou dos interesses comuns que exclui o autogoverno dos interessados pelos seus representantes históricos ou eleitorais. Ora, não deveria ser preciso mais para se compreender que um movimento, por recomendável que seja, de protecção dos animais e da natureza, justamente porque até nova ordem exclui à partida os seus representados, aqueles cujos interesses invoca, da participação igualitária nas deliberações e decisões do seu governo não pode ser um movimento político democrático, ainda que, evidentemente, a democracia não exclua a protecção dos animais nem a deliberação sobre as questões ambientais.

É pena que Ana Drago, Marisa Matias e tutti quanti no BE compreendem bem que o perigo de aproximação do PS por via do Livre não passa de um fantasma alimentado por mentes que se recusam a reconhecer que a grande ameaça que pesa sobre o BE é a desagregação e dissolução por via da veneração e subordinação ao PCP, não se dêem conta da aberração que é, em termos políticos democráticos, um Partido pelos Animais e pela Natureza — sem prejuízo, repita-se, de um movimento democrático nada ter a opor às iniciativas de cidadãos protectores dos animais ou de associações visando a sua protecção, na medida em que tais cidadãos e organizações não façam da defesa dos animais e da natureza (seja lá esta o que for) o princípio da organização política da sociedade.

7 comentários:

Libertário disse...

Não entendo o argumento contra o PAN se há vários partidos de defesa das bestas...Principalmente de defesa das bestas das classes dominantes.

Miguel Serras Pereira disse...

Libertário, não deixas de ter razão. Mas o meu ponto era que é problemático considerar democrático ou libertário um movimento que defende que os homens e mulheres sejam governados em nome dos animais, da natureza e do Dalai Lama.

Abraço

msp

Miguel Madeira disse...

O Partido pelos Animais e pela Natureza, goste-se ou não do nome, tem bastantes propostas interessantes: p.ex., é o único partido português que defende um rendimento básico incondicional.

E nem me parece que um "Partido pelos Animais" seja uma aberração (talvez o fosse um "Partidos dos Animais"). Há tempos, o MSP escreveu que a natureza não pode ser o sujeito do processo politico - mas num partido "pelos Animais", o sujeito do processo politico (isto é, quem toma as decisões) continua a ser as pessoas - o que a maioria dos "defensores do animais" defende não é que os animais passem a governar, mas sim que os humanos, enquanto governantes, se preocupam com o bem-estar dos animais quanto tomam as suas decisões.

João Valente Aguiar disse...

Para os que não sabem o que é o PAN leiam estes trechos:

«A crise económico-financeira é apenas um dos aspectos da mais profunda crise do paradigma antropocêntrico e da (anti-)economia da ganância que tem devastado os recursos naturais e instrumentalizado os seres vivos – dos operários nas fábricas e dos funcionários nas repartições aos frangos, vacas e porcos na indústria da carne e dos lacticínios - em nome da nova religião do progresso ilimitado entendido como aumento exponencial da produção e do consumo de produtos, bens e serviços maioritariamente desnecessários e prejudiciais apenas para que os investidores obtenham o maior lucro no mínimo de tempo possível e com o mínimo de gastos»;

«É por isso que o PAN constitui um projecto de transformação global de Portugal, da Europa e do mundo que exorta a uma nova política, a da consciência, no sentido de uma ética global, baseada na promoção da empatia com o outro, que respeite e cuide o natural direito à vida e ao bem-estar de todos os seres, humanos e não-humanos, como base de uma profunda transformação sócio-económica e jurídico-política, que consagre nas normas e nas instituições da nossa vida colectiva os princípios fundamentais de uma nova cultura e de uma civilização, baseada numa justiça integral abrangente de todos os seres e no respeito pelo equilíbrio dos ecossistemas e da Terra.» (http://www.pan.com.pt/comunicados/562-queremos-o-25-de-abril-que-nunca-houve.html).

Em suma, humanos e animais equiparados lado a lado. Aliás, até nem são raros os comentários de gente animalista que considera os animais superiores ou mais importantes do que os humanos... Mas cingindo-me ao argumento da defesa de uma «justiça integral abrangente de todos os seres» fico com duas dúvidas.

Uma mais a sério, pois perante este paradigma fico sem saber se, num caso de acidente ou catástrofe, o INEM socorre primeiro um ser humano ou o cão que ia no banco de trás. É que se prevalecer a tese de que o «natural direito à vida e ao bem-estar de todos os seres» é equivalente a «humanos e não-humanos», então o INEM passa a ter de dar prioridade de salvamento a quem estiver em pior situação clínica? Se um cão for atropelado o INEM tem de enviar uma ambulância para o salvar? E se essa ambulância for necessária para um humano, este tem de esperar até que vague uma ambulância que levou o cão ao hospital? De facto, é só «propostas interessantes»...

Uma segunda dúvida. Fico genuinamente preocupado com as bactérias que chegam ao estômago dos humanos por via da ingestão. É que aquele ácido clorídrico todo no estômago dá cabo das pobres. É que elas também são seres e têm tanto direito à vida como os humanos.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Miguel (Madeira):

não me parece que a defesa dos animais seja uma plataforma política consistente. Ou, pior ainda: quando um partido se distingue, demarca e define pela prioridade dada à luta pelos animais, não estamos perante uma sociedade protectora dos animais ou uma associação zoófila — estamos perante um programa que se propõe governar as mulheres e os homens, subordinar o governo das mulheres e dos homens, à defesa dos animais e de não se sabe bem que equilíbrios naturais.

Abraço

miguel(sp)

Miguel Madeira disse...

"não me parece que a defesa dos animais seja uma plataforma política consistente"

Há partidos que têm como plataforma a legalização das drogas, a proibição do álcool, a subida das pensões de reforma, a restauração da monarquia, etc.

Efectivamente, se um partido se propuser governar, tem que ter um programa mais abrangente, com todo um modelos de sociedade, e resposta para quase todas as questões. Mas não é obrigatório que seja esse o objectivo de um partido - pode ser simplesmente lutar por alguma causa especifica que ache importante.

Miguel Serras Pereira disse...

Miguel (M),
se leres o que eu escrevi com atenção, compreenderás que a minha tese é que um partido ou movimento cujo objectivo determinante central é a defesa dos animais e da natureza nega, como qualquer partido confessional, a prioridade da democracia. Nem mais nem menos — até ver.

Um abraço

miguel(sp)