02/06/15

Labirintos do fascismo - Versão de 2015 (remodelada e ampliada)

Aqui o leitor pode encontrar a segunda edição da obra "Labirintos do fascismo - Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta", da autoria do João Bernardo.

Correndo o risco enorme de reduzir o fôlego desta obra monumental a alguns tópicos isolados, ainda assim considero os seguintes trechos como apelativos para os leitores mais atentos se embrenharem naquela que é a mais importante análise teórica e histórico-empírica das contradições políticas e ideológicas da nossa contemporaneidade.


  • Fascismo, mobilização social, o fenecimento da burguesia e a ascensão da classe capitalista dos gestores:


«O fascismo mobilizou os trabalhadores para efectuar uma revolução capitalista contra a burguesia ou, talvez mais exactamente, apesar da burguesia».

«No período que mediou entre as duas guerras mundiais a burguesia mostrou-se incapaz de se renovar e de remodelar o sistema económico. Perante esta falência histórica da classe que até então havia sido hegemónica foram os gestores quem assumiu a direcção dos acontecimentos, salvando o capitalismo. Chegou-se a este resultado mediante três processos distintos, e entre eles se repartiu toda a vida política daquela época».

«Nas democracias, a institucionalização da convergência social entre a burguesia e os gestores, enquanto classes capazes de possuir, cada uma, uma estratégia própria, resultou no New Deal e no tipo de reorganização capitalista comummente identificado com as teorias de Keynes. Conservaram-se as instituições burguesas, pelo menos na sua forma aparente, mas por dentro foram remodeladas graças à iniciativa dos gestores. E entretanto os trabalhadores, que com as suas lutas pressionavam este processo e lhe apressavam o ritmo, eram alheados tanto dos centros de decisão política como das instâncias de direcção económica. O prosseguimento da acção dos gestores dentro do quadro das instituições burguesas e a forçada marginalização política dos trabalhadores caracterizaram esta estratégia como uma modalidade de manutenção da ordem. Num esquema: gestores + burguesia / proletariado»

«O processo foi exactamente o inverso na experiência soviética, tal como ela se manifestou pelo menos desde a guerra civil e se veio a definir sem ilusões com os planos quinquenais stalinianos. As grandes etapas da história do socialismo marxista haviam sido marcadas pela reorganização dos termos em que a classe dos gestores e a classe trabalhadora estabeleciam plataformas de convergência social, afirmando-se ambas contrárias à burguesia. Enquanto o proletariado procurava a aliança dos gestores» corporizados tanto nos bolcheviques como nos chamados especialistas «para destruir ou transformar as relações sociais de produção, confundido assim a burguesia com a totalidade do capitalismo, os gestores ambicionavam o apoio do proletariado para remodelar as relações jurídicas de propriedade, de maneira a desenvolver formas de apropriação adequadas ao carácter colectivo da classe gestorial e a retirar à burguesia a exclusividade do controlo do capital. Nesta indefinição entre relações de propriedade e relações de produção se jogaram todas as grandes derrotas do movimento operário e os mais macabros paradoxos do socialismo. Era a hostilidade à classe burguesa que permitia classificar como potencial ou manifestamente revolucionária essa articulação entre a classe trabalhadora e uma classe capitalista. Na esfera soviética o capitalismo acabou, sem dúvida, por ser salvo pelos gestores, mas enquanto capitalismo de Estado, resultante da mobilização da classe trabalhadora, e no qual não havia já lugar para a burguesia. Num esquema: gestores + proletariado / burguesia»,

«Tal como as sucessivas ortodoxias marxistas, e em especial como a fase staliniana da experiência soviética, o fascismo institucionalizou a mobilização do proletariado sob o comando dos gestores. Por outro lado, a afinidade do fascismo com o New Deal e com o keynesianismo resultou da manutenção das instituições burguesas na sua aparência exterior, embora a própria burguesia ficasse relegada para um lugar secundário. Os gestores fascistas colocaram à burguesia o seguinte dilema: ou ela os deixava assumirem os principais postos de comando e lhes permitia que, salvando o capitalismo, salvassem a burguesia; ou ela se condenava a ser destruída junto com o capitalismo, já que a burguesia se sentia incapaz, por si só, de recuperar sozinha os temas da contestação dos trabalhadores e de os inscrever no âmbito da nação. Assim, o fascismo respeitou o quadro da ordem, mantido pela aliança dos gestores com a burguesia, mas introduziu nele um elemento de revolta, suscitado pelos ecos da mobilização proletária. Num esquema: gestores + burguesia + proletariado».

«A análise do fascismo revela-se crucial para o entendimento tanto dos regimes democráticos como dos antigos regimes marxistas. E os gestores surgem como o eixo de articulação de todas as variantes do capitalismo moderno».



  • Fascismo e bloqueamento da economia capitalista

«O fascismo triunfou e implantou-se onde se erguiam obstáculos duráveis ao desenvolvimento da mais-valia relativa, e não onde o capitalismo pôde realizar na prática as suas tendências íntimas de crescimento».

«Os regimes fascistas só se implantaram onde haviam surgido impedimentos à evolução do capitalismo, ou seja, onde os ciclos da mais-valia relativa não tinham conseguido progredir e o sistema se defrontava com os limites da mais-valia absoluta. O fascismo jamais se estabeleceu nos países em que a mais-valia relativa norteava o crescimento económico. Não foi a evolução da democracia capitalista, mas o bloqueio oposto a essa evolução, que constituiu o terreno fértil para o triunfo dos fascismos».


  • O fascismo no centro das contradições mais profundas do capitalismo e dos movimentos anticapitalistas

«A especificidade do fascismo consistiu precisamente na forma como alguns temas da extrema-esquerda encontraram eco na extrema-direita, mas esta receptividade não poderia verificar-se se o movimento operário não tivesse começado já a dar a esses temas outra conotação. Todavia, quando não são inteiramente escondidos, os traços da inspiração revolucionária sem a qual o fascismo não conseguiria nascer e desenvolver-se são relegados pela generalidade dos historiadores de esquerda para as notas de rodapé e esquecidos nas conclusões. Quanto àqueles poucos autores que possuem a coragem ideológica de evidenciar a participação de sectores do movimento anticapitalista na génese do novo tipo de nacionalismo radical, o silêncio com que a sua obra é coberta funciona como a mais eficaz das censuras».

«Quando recordamos que Mussolini tomou o poder precisamente no país onde era mais numeroso o socialismo de esquerda, e que a derrota mais esmagadora do proletariado perante o fascismo ocorreu na Alemanha, onde o SPD era o maior partido da II Internacional e onde o KPD se havia tornado o maior partido da III Internacional, salvo a excepção evidente do Partido Comunista soviético, compreendemos que a catástrofe prática atingiu as principais tendências do marxismo e as deixou incapazes de procederem a uma análise rigorosa, ou sequer convincente, do fenómeno fascista. Para partidos que assentavam a sua legitimidade na suposta capacidade de prever o curso da história e de nele intervir com eficácia, a bancarrota não podia ter sido mais completa».

«A definição de fascismo feita pelos dois marxismos oficiais é uma meia verdade, o que, em termos conceptuais rigorosos, corresponde a uma mentira completa. O fascismo foi sem dúvida uma ditadura do grande capital. Mas se tivesse sido apenas isto não se diferenciaria substancialmente das formas parlamentares de domínio desse mesmo grande capital. É impossível compreender o fascismo sem atribuir uma importância primordial à mobilização popular que ele gerou e sem constatar que – facto que as direitas hoje lamentam e as esquerdas se esforçam por esquecer – essa mobilização transportou para o meio operário os temas mais caracterizadamente nacionalistas das esferas conservadoras e conferiu à direita um dinamismo político que até então fora apanágio da base trabalhadora animada pela esquerda».

«Na sua acção anticapitalista os trabalhadores jamais deixaram de enfrentar dois tipos de inimigos, um que se apresenta a partir do exterior e o outro que é gerado no próprio seio da classe trabalhadora. Todos os fracassos do socialismo, sem qualquer excepção, têm resultado da incapacidade de agir conjuntamente em ambas as frentes de luta. E assim, ao mesmo tempo que os trabalhadores fazem recuar, dispersam ou aniquilam os capitalistas já existentes, eles têm repetidamente permitido que as burocracias geradas no movimento operário alimentem a classe dos gestores e inspirem novo fôlego ao capitalismo. Nesta dialéctica, as elites do socialismo em vez de darem corpo a um conceito sociológico independente do conceito de classe, constituem um dos elementos geradores de uma classe, a classe capitalista dos gestores».

6 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente convite à leitura, João. É, todavia, aterrador — passe o eufemismo — pensar que a editora que publicou a primeira edição do livro do João Bernardo não tenha agarrado com ambas as mãos a oportunidade de se honrar publiando esta nova versão de uma obra de referência indispensável a quem queira reflectir sobre as profusas encruzilhadas da ordem e da revolta. Mas, para dizer a verdade, este escândalo tem precedentes. A editora portuguesa dos livros do JB deixara já há tempos fugir a ocasião de publicar o seu soberbo estudo sobre Balzac.
Nessa altura, publiquei o seguinte post aqui no Vias:

‹Uma leitura original e cerradamente argumentada de Balzac, ao mesmo tempo como autor da Comédie e personagem de si próprio; uma concepção, não banalmente "pós-marxista", mas "meta-marxista" da história inseparável de uma concepção da literatura, não como representação, mas como "criação" e, sobretudo, "criação de real", através de uma interrogação renovada e profunda da articulação daquilo a que Croce chamava "duas asas", a da poesia e a da história; e, por fim, uma reflexão sobre as consequências de tudo isto (e de uma leitura exaustiva de Balzac e da sua linguagem própria) sobre a acção da literatura e as dimensões "poéticas" da própria acção — eis outras tantas razões que tornariam indispensável ler o volumoso e, todavia, singularmente ágil ensaio, A Sociedade Burguesa
de um e outro Lado do Espelho. La Comédie humaine, que o João Bernardo acaba de editar em PDF e de enviar a alguns amigos e conhecidos ( e que eu resolvi tornar acessível a outros leitores, improvisando para o efeito um site rudimentar e que, até ver, não tem outro préstimo senão permitir "linká-los").›

Desta feita, procurei do mesmo modo tornar acessível a segunda versão dos Labirintos do Fascismo, cujo link em boa hora aqui forneces. Resta-me recordar que, no mesmo site, quem quiser poderá aceder, de caminho, à leitura que o JB propõe de Balzac e da "sociedade burguesa", através deste link: http://biblioteca-autonomia.webnode.pt/news/joão-bernardo%2c-a-sociedade-burguesa-de-um-e-de-outro-lado-do-espelho-la-comedie-humaine-e-os-sentidos-das-palavras%2c-terminologia-economica-e-social-em-la-comedie-humaine/

Abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola,

Vou ler com calma.

No entanto, não sei se concordo com o que dizes ao principio. Alias, mais precisamente, não sei se o que dizes ao principio concorda com o que dizes mais à frente.

Que o fascismo tenha recorrido ao ideario anti-burguês é uma coisa. Isto, alias, é pouco significativo, até porque o odio do burguês não é apanagio das outras classes. Muito pelo contrario é também (e ha cinicos que diriam mesmo é principalmente) um sentimento burguês. A (por vezes excelente) literatura reacionaria, nomeadamente francesa, ilustra muito bem este ponto.

Agora que o fascismo tenha procurado realizar uma revolução anti-burguesa, isto ja me parece altamente discutivel. Eu diria antes que o traço comum dos fascismos (incluindo neles o nazismo) é precisamente o contrario : serviram como tabua de salvação da burguesia, tanto da alta como da pequena burguesia, contra as forças ameaçadoras que surgiram com o desenvolimento do capitalismo e que ameaçavam sériamente a ordem burguesa (vamos procurar ser optimistas : que continuam a ameaça-la). Julgo que é isso mesmo que sublinhas na segunda parte do post. Ora não vejo como conciliar isto com a afirmação "O fascismo mobilizou os trabalhadores para efectuar uma revolução capitalista contra a burguesia ou, talvez mais exactamente, apesar da burguesia". Quanto a mim, a ordem fascista, por mais que eles tenham tentado pinta-la de futurismo, é uma ordem completamente burguesa, na forma e no fundo. O sonho de uma sociedade higiénica, imune a preocupações alheias à cultura do jardinzinho protegido pela policia contra as investidas da besta, seja ela qual for, desde que lembre a sede, a fome, ou o desejo.

Que o desenvolvimento do capitalismo tenha invalidado este sonho, OK. Mas isto não me parece por em causa a natureza profundamente burguesa da ideologia fascista. Mesmo que a ordem burguesa tenha descoberto outras formas de sobreviver.

E a questão não me parece futil. No fundo, trata-se de saber se o desenvolvimento do capitalismo acaba, ou não, por ameaçar os pilares da ordem burguesa. Eu acredito que sim. Os fascistas também acreditavam (aqui também, o passado é uma certa forma de optimismo), mas não tiravam as mesmas consequências...

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Viegas,
pões vários problemas aos quais não vou tentar responder, até porque talvez o que digo aqui a seguir te leve a pô-los em termos diferentes. Há, com efeito, um mal-entendido de fundo que convém dissipar. A classe dominante do capitalismo, na terminologia do João Bernardo, integra não uma, mas duas "burguesias" — ou, se quiseres, a classe dominante do capitalismo não é uma, mas são duas: a tradicional (que remete grosso modo para a propriedade e os "patrões") e a dos gestores, que não é, longe disso, menos capitalista ou dependente da economia política do capitalismo (que, sem dúvida, transforma, etc., etc.). Do mesmo modo, para tornar mais claro o exemplo, dizemos por vezes que a eliminação da burguesia "proprietária" não basta para acabar com as relações sociais de produção capitalistas, podendo dar lugar, como aconteceu nos "países do socialismo real", a uma ou outra variedade de capitalismo burocrático: as análises clássicas de Castoriadis e de outros insistem com particular vigor e acerto neste ponto — e na natureza capitalista e classista das sociedades cujo primeiro modelo foi a União (dita por antífrase) Soviética.

Acho que posso ficar por aqui, tanto mais que a minha intenção foi só contribuir para clarificar os termos do debate e evitar mal-entendidos desnecessários que nos fazem correr o risco de perder de vista o fundo das questões.

Um abraço para ti

miguel

joão viegas disse...

Ah, OK, tenho de ir ler o J. Bernardo com atenção. O que dizes lembra-me a classica questão do capataz. Sera isso ? No conceito do João Bernardo, os "gestores" seriam uma espécie de capatazes com autonomia ? Repara no entanto que o fascismo foi também, e talvez principalmente, uma ideologia do capataz. A utopia de um capataz transformado em dono da fabrica. Ainda hoje é isso que anima os fascismos que se mantêm vivos por ai : um senhor a quem servir (posso ser eu, por exemplo, mascarado de Nação ou de Patria), um preto em quem bater (qualquer um serve, que não eu). Mas nesse caso, a cantiga do gestor não andara longe da do fascista : Arranja-me um emprego, pode ser na tua empresa com certeza, eu dava conta do recado, e para ti era um sossego..."


Bom, la estou eu com poesias. Vou ler e depois digo qualquer coisa.

Abraço valente.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro,
há alguns ensaios mais breves do JB que encontrarás neste blogue (linkados): Ponto final; O Tempo — Substância do Capitalismo; Epílogo e Prefácio (um Testemunho Presencila); etc. — esses escritos, bem como alguns dos artigos que ele publicou no Passa Palavra e que poderás pesquisar com facilidade, são, a meu ver, a melhor introdução à sua obra.Mas eis o que ele próprio escreve sobre burgueses e gestores na p. 218 da Economia dos Conflitos Sociais (na versão que podes encontrar aqui: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Bernardo,%20João/Economia%20dos%20Conflitos%20Sociais.pdf):

"O sistema de integração hierarquizada dos processos produtivos, com a superestrutura
política que lhe corresponde, pressupõe que no interior do grupo social dos capitalistas se
distingam a particularização e a integração. De cada um destes aspectos fundamentais decorre
uma classe capitalista: a classe burguesa e a classe dos gestores. Defino a burguesia em função
do funcionamento de cada unidade econômica enquanto unidade particularizada. Defino os
gestores em função do funcionamento das unidades econômicas enquanto unidades em relação
com o processo global. Ambas são classes capitalistas porque se apropriam da mais-valia e
controlam e organizam os processos de trabalho. Encontram-se, assim, do mesmo lado na
exploração, em comum antagonismo com a classe dos trabalhadores. As classes sociais não
são passíveis de definições substantivas, mas apenas relacionais. A classe dos trabalhadores o
é por ser explorada e organizada de uma dada forma, o que pressupõe a existência de outros
que controlam o processo de produção da mais-valia e o exploram. E reciprocamente. (…) É pela sua comum oposição à força de trabalho que burguesia e gestores se
classificam como capitalistas. E é pela oposição-relação que entre si estabelecem que se
definem como classes capitalistas distintas".

Enfim, continuando a leitura a partir deste excerto, poderás entrar melhor na concepção que o JB faz do capitalismo, da sua dinâmica, etc.

Robusto abraço

miguel

Libertário disse...

Um livro interessante que vale a pena ser lido mas onde são frequentes as derivas sectárias, com uma boa dose de subjectivismo, para não dizer manipulação dos factos, para levar a água ao seu moinho. As paginas dedicadas a Proudhon e ao anarquismo são disso uma boa demonstração. Quer ler as mil páginas irá encontrar abundantes aspectos para polemizar. É o problema de livros dessa dimensão...