06/09/16

Brasil - nem golpe, nem normalidade constitucional

Tenho que discordar dos muitos que consideram o que aconteceu no Brasil "um golpe": em termos estritamente formais, correu tudo de acordo com a lei - a presidente cometeu atos (algo relacionado com a execução orçamental) que, de acordo com a lei em vigor na altura, eram crime, e foi destituída por isso, seguindo exatamente o processo constitucionalmente previsto para essa destituição.

Mas a verdade é que, se foi tudo de acordo com a letra da lei, não me parece que a destituição, nos moldes em que ocorreu, tenha ido de acordo com o espírito da lei num sistema presidencialista - os crimes foram algo similar a andar a 125 kms/hora na autoestrada (algo que é proibido mas é tacitamente permitido), que sempre foi praticado pelos governos anteriores e nunca deu origem a pedidos de impeachment; e poucos dias após a destituição foi aprovada uma nova lei que, segundo muitos, legalizará as tais "pedaladas" (o crime porque Dilma foi destituída) - ou seja, a destituição não teve na verdade nada a ver com as tais "pedaladas": o que aconteceu foi uma espécie de "moção de censura", em que alguns partidos que apoiavam a presidente no Congresso retiraram-lhe o apoio e decidiram fazer cair o governo; mas como num regime presidencialista normalmente o parlamento não pode derrubar politicamente o governo (via a tal moção de censura), sendo necessário, para destituir a presidente, acusá-la de algum crime e proceder, no Congresso, a uma espécie de julgamento e condenação, inventaram um esquema de ir buscar uma situação formalmente ilegal mas que toda a gente achava aceitável, e usarem isso como pretexto para o tal "julgamento" e destituição (aliás, o facto de terem aceitado separar a destituição da suspensão de direitos políticos - algo que em principio viria associado - e aplicar só a primeira e não a segunda, indica que, no fundo, os próprios autores do impeachment reconhecem que isto foi essencialmente uma censura política e não tanto uma questão jurídica).

Diga-se que eu até acho que o parlamentarismo funciona melhor que presidencialismo, mas o que é certo é que a Constituição brasileira é presidencialista, até houve um referendo sobre isso, mas agora parece que se está a tentar fazer entrar o parlamentarismo "pela porta do cavalo".

9 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel,

Não sei se podemos falar de "golpe", mas discordo fundamentalmente da tua analise. Podes indicar que crimes foram cometidos pela Dilma à luz da lei de 1950 (modificada em 2000) ? Onde é que o que ela fez cabe na previsão dos artigos 10 ou 11 ? Redistribuir créditos durante um exercicio orçamental é inevitavel (até porque na realidade algumas despesas acabam sempre por revelar-se desnecessarias) e não tem nada a ver com ordenar despesas sem autorização parlamentar. Ou então teriamos de consultar o Senado de cada vez que ha um pequeno precalço técnico. E um atraso no pagamento não pode ser qualificado como um empréstimo, ainda que possa ser apresentado desta forma pela ciência economica. Quando te atrasas no pagamento da renda de casa, por exemplo porque ainda não recebeste o salario, estas a contrair um empréstimo junto do teu senhorio ? Não me parece...

Estamos em matéria penal e estamos a falar de crimes graves ("crimes de responsabilidade"). Considerar que actos inocuos e banais cabem dentro da previsão da lei vai contra todos os principios de interpretação em matéria penal. Como tentei demonstrar no meu post recente, considerar que tudo pode caber na lei é desmonetiza-la completamente.

Abraço

joão viegas disse...

Addendas :

Dois pontos importantes implicitos naquilo que digo :

1. Defender que os actos cometidos por Dilma não são "crimes de responsabilidade" não equivale a dizer que são licitos, nem que são oportunos. Retomando o exemplo do meu post : fumar num local publico é proibido (hoje em dia) nalguns ordenamentos juridicos. Mas, como é obvio, não pode ser qualificado de homicidio (ainda que haja quem considere que a conduta coloca em perigo a saude dos outros)...

2. As reservas que possamos ter em relação à politica da Dilma, e ha lugar para muitas, parecem-me ser um argumento suplementar para criticar a forma como foi destituida, travestindo a coisa de decisão judiciaria. Isto é uma forma perigosa de desresponsabilização dos autores da decisão (e também os eleitores). Mas julgo que concordas com esta parte.

Abraços

José Guinote disse...

Discordo em absoluto de que não tenha ocorrido um golpe, no Brasil. Pelas razões clarificadas no post do João Viegas, e pela argumentação exaustiva da própria Dilma na resposta aos senadores. As pedaladas fiscais não constituem crimes de responsabilidade - podendo ser considerados comportamentos inadequados para gerir o Orçamento - razão necessária para fundamentar o impeachment. Recorde-se que Collor de Mello foi afastado por envolvimento em actos de corrupção provada, tendo optado por resignar para evitar as consequências politicas e pessoais. Dilma do ponto de vista de crimes de responsabilidade foi acusada de ... coisa nenhuma. Outra plano é a politica e a sua natureza. A cedência do PT ao neoliberalismo puro e duro já iniciado com Lula, reforçou-se com Dilma. Mas, mesmo nesse plano, o que aí vem é bem pior.

Niet disse...

O sr. João Viegas,que andou anos a tentar rubricar no famosissimo site da direita portuguesa Blasfémias, censurou-me um comentário sobre a situação politica no Brasil. Ninguém acredita. O que eu dizia, in limine, é que a economia politica liberal cria os seus próprios factores de ruptura para tentar conservar a dominação e a exploração.Parte da oligarquia brasileira uniu-se para aplicar , digamos assim, uma recauchutada versão do consenso de Washington para o séc. XXI. Como o sr. João Viegas tem a " boca " cheia de aleivosias e se bate por ideias redondamente inoperantes e de uma retórica vazia absolutamente inacreditável, teve o descaramento de descer ao mais inacreditável dos patamares- a censura e a fuga ao debate.Niet

Niet disse...

O meu comentário acaba de ser publicado junto ao texto de J. Viegas, hoje, pelas 9.45 horas de Paris. Niet

Anónimo disse...

Foi mais tipo... a lei diz que tens que andar a 120 km/h... outros andaram a 122 ou 123... e ela quando tinha que garantir que ficava com o carro, em vez de um tal de Aécio, foi a 180 ou 200km. E depois o carro ficou todo fodido e não anda nem a 80.

PCB disse...

Nem impeachment nem pacto com a burguesia: A saída é pela esquerda!


[...] Desde março de 2015, quando a direita pautou o tema do impeachment, o PCB deixou claro que, com qualquer resultado, os trabalhadores sairão perdendo mais do que já perderam, nesses 13 anos, com a conciliação de classe dos governos petistas. Sempre afirmamos que para se manter no governo a qualquer custo o PT não daria uma guinada à esquerda, mas sim à direita, cedendo cada vez mais aos interesses do capital. Desde o início desta novela de mau gosto o PT não fez outra coisa senão promover mais ajustes neoliberais e privatizações, além de acordos por uma base de sustentação mais conservadora.

Os governos petistas cooptaram setores dos movimentos sindicais e sociais, iludindo e desarmando os trabalhadores e, como se não bastasse, construíram um arcabouço jurídico para assegurar a ordem burguesa e reprimir as lutas populares: mantiveram a lei de segurança nacional, criaram a Força Nacional e efetivaram a portaria normativa da lei e da ordem e a famigerada lei antiterrorismo, recentemente proposta e sancionada pela presidente.
[...]

Anónimo disse...

«O PT traiu miseravelmente a esperança que milhões de brasileiros depositaram nele e demonstrou, na prática, que não há mudança possível, a partir do coração do Estado, das regras do Sistema. As consequências do reformismo, das alianças de classe, das políticas ditas pragmáticas dentro do sistema capitalista, é o que podemos constatar nestes anos de governo PT no Brasil. Essa conclusão que já podíamos tirar da experiência da social-democracia histórica confirmou-se, mais uma vez, e da pior forma, nesta experiência dos governos PT-Lula.»

Jornal Mapa (PT: Da Corrupção Como Táctica Política) http://www.jornalmapa.pt/2016/03/23/pt-da-corrupcao-como-tactica-politica/

Libertário disse...

É bom não esquecer que o PT que tentou desencadear o impedimento contra presidentes de outros partidos, entre eles Fernando Henrique Cardoso, deve certamente reconhecer a legalidade do mecanismo constitucional…
Agora como é óbvio sendo um mecanismo desencadeado na Câmara dos Deputados e no Senado é também marcadamente político, mas formalmente está de acordo com a lei.
Falar de golpe tem alguma razão de ser como imagem política pois os reacionários aliados do PT durante tanto tempo, os mesmos que agora votaram pelo impedimento, deram um golpe de rins e puxaram o tapete ao governo. Mas essa possibilidade já devia ser conhecida do PT dada a história política do Brasil. Não podemos esquercer quem foram os alidados do PT ao longo destes anos, nem que Temer foi por duas vezes escolhido, e eleito, vice-Presidente sendo muito elogiado por Dilma nas campanhas eleitorais. Isto, e todas as histórias de corrupção amplamente comprovadas, até nos permite dizer que tal como os conservadores também o PT deu um golpe nos seus eleitores.