26/09/16

Esquerda, pragmatismo, melhorismo



Como se sabe, a clivagem entre esquerda e direita tem origem na disposição dos deputados na assembleia constituinte francesa em 1789, durante os debates sobre o veto do rei. Os deputados sentados à direita da mesa, entre os quais os representantes do clero e da nobreza, eram favoráveis ao veto absoluto, enquanto os deputados sentados à esquerda, representantes do terceiro-estado, pugnavam por um veto relativo, que deixasse à assembleia um verdadeiro poder de decisão em última instância. A divisão fez-se por conseguinte a propósito da questão da efectividade do poder legislativo da assembleia e, por tabela, do exercício real (e não apenas simbólico) da soberania pelos representantes do povo. Dito de outra forma : à direita do hemiciclo, estavam os reaccionários que procuravam ludibriar o povo com direitos e liberdades de papel ; à esquerda, encontravam-se os revolucionários empenhados em transformar esses direitos e liberdades em autênticas realidades.

A linha de separação das águas coincide com a velha dicotomia grega, hoje um pouco esquecida, que opõe onoma (o nome) e pragma (a coisa que interessa)[1]. Aos que enchem a boca com palavras e se satisfazem com discursos ocos, contrapõem-se aqueles que se preocupam com as realidades efectivas e com o funcionamento prático das coisas. Vemos muito bem como o programa político da esquerda se identifica com os segundos. Com efeito, queremos liberdade,igualdade e fraternidade não apenas na forma, no papel ou em teoria, mas de maneira palpável, concreta, mensurável. A liberdade da galinha livre no galinheiro aberto à raposa livre, é uma liberdade apenas de nome. Não serve. Idem para a igualdade de direitos se os meios de produção tendem a acumular-se nas mãos de alguns, pois nesse caso trata-se de uma igualdade de papel. Ou ainda para a fraternidade que só se realiza no paraíso, que não passa de um logro. 

Podemos assim associar à esquerda um realismo em perfeita sintonia com a máxima pragmática que aconselha a sempre “considerar quais são os efeitos práticos que pensamos podem ser produzidos pelo objecto da nossa concepção[2][3]. Correlativamente, é legítimo afirmar que, quando a esquerda perde a realidade de vista e se deixa encurralar nas esperanças quiméricas ou enjaular num discurso fantasioso que todos julgam inexequível, a começar por aqueles que o proferem em altos gritos, então a esquerda perde a alma, e perde também o que a distingue das histerias milenaristas e dos lúgubres vaticínios do pânico. Isto é particularmente saliente numa época como a nossa em que, mercê de uma lamentável capitulação intelectual, muita gente parece convencer-se da inapetência da esquerda para a governação ou para o exercício de responsabilidades políticas.

Por todas estas razões, na minha modesta opinião, uma das prioridades mais urgentes para a construção de uma proposta política de esquerda credível e coerente, consiste em favorecer a plena reconciliação da esquerda com o pragmatismo. Esta preocupação não é apenas teórica. Em Portugal, por exemplo, temos hoje um governo formado por forças políticas que se reclamam da esquerda. Esta construção só conseguirá manter-se com pragmatismo. E, se ela vier rapidamente a soçobrar, quem ignora que o desastre terá um custo elevado para todas as forças que a compõem ? Por outro lado, o futuro do governo português está estreitamente dependente da evolução política da União europeia. Se conseguirmos alcançar uma dinâmica que dê peso político às forças progressistas que em muitos países, nomeadamente do sul (mas não apenas), protestam contra as políticas de austeridade em detrimento da protecção das zonas mais pobres e vulneráveis, a esquerda passará a existir no plano europeu, contrariamente ao que tem sucedido nas últimas décadas. Neste campo também, o pragmatismo é a chave para alcançar resultados concretos.

Não vou dar aqui receitas milagrosas, nem sei se elas existem. No entanto, julgo oportuno indicar sumariamente quais são as principais implicações do pragmatismo[4], uma vez que já tive ocasião de verificar que muita boa gente as ignora. Aclarar as ideias não chega, como é óbvio. Mas também não pode fazer mal…


Relativismo


A primeira implicação do pragmatismo é o relativsmo. A consideração dos efeitos práticos das nossas concepções na realidade exterior obriga-nos a sair de nós mesmos, a encarar a realidade a partir dos diversos ângulos de onde é possível apreendê-la, compreendê-la e, se necessário ou oportuno, modificá-la.

Como tratei do assunto num post recente, não me vou repetir. No entanto, julgo importante insistir num ponto fulcral. As pessoas desconfiam frequentemente do relativismo porque o consideram como uma forma de indiferencialismo e julgam que a comparação ou a mudança de perspectiva são necessariamente fatais à coerência interna das ideias e à consistência própria dos valores, impossibilitando qualquer articulação ou hierarquização entre eles. Procurei demonstrar que isto é um erro total e que, na realidade, é exactamente ao contrário. Apenas a comparação, ou seja a redução dos pontos de vista a uma escala comum – a uma ratio no primeiro sentido da palavra – permite aferir até que ponto as coisas aderem à realidade objectiva e em que medida podemos contar com elas. Isto devia ser básico, mas na prática verificamos que está muito longe de o ser.

As consequências do exposto no dominio da política, tomada no bom sentido da palavra, o da “koinônia” cara a Castoriadis, são essenciais. A política não é o confronto com posições adversas irredutíveis, mas antes a arte de conciliar outros pontos de vista, numa síntese que os consiga exprimir com maior perfeição quando combinados com o nosso. A doutrina da esquerda foi sempre construída nesse pressuposto. Marx, por exemplo, chegou às conclusões que sabemos aprofundando os resultados da teoria económica do seu tempo e levando-os às suas consequências extremas. Foi assim que soube pôr em evidência as contradições da doutrina económica de David Ricardo, mas não sem deixar de integrar o que de verdadeiro havia em Ricardo (por exemplo a teoria do valor-trabalho) na sua própria doutrina. Muitos outros exemplos haveria.

Ia escrever que a política não é a guerra, mas como receio que o argumento faça sorrir os leitores que consideram o parágrafo anterior demasiado angélico, vou procurar dizê-lo de outra maneira. A guerra é uma arte completamente política que consiste essencialmente na inteligência do equilíbrio de forças. Nenhum general sai a campo contra um exército dez vezes superior e melhor armado. Portanto, haverá muitas semelhanças entre a política e a guerra, não digo o contrário, mas a primeira que me ocorre é que ambas se distinguem do suicídio.

Pormenor digno de ser sublinhado, o relativismo tem um corolário com alguma relevância política : o pluralismo.


Utilitarismo


Ora aí está um palavrão que fez de certeza cambalear mais de um leitor ! No entanto, é insofismável que o pragmatismo conduz ao utilitarismo, na medida em que recomenda a apreensão das ideias e das coisas a partir dos seus efeitos práticos na realidade, o que é o mesmo que dizer : a partir daquilo que elas prestam, ou ainda, a partir da medida em que elas servem. As ideias e as coisas existem, concretamente, em razão directa da sua utilidade.

Porque é que o utilitarismo nos repugna tanto ? Porque desconfiamos que ele conduz ao atropelo das finalidades que consideramos mais elevadas. As nossas categorias morais, impregnadas de kantismo, condenam o utilitarismo como uma indignidade porque troca os fins com os meios, o que nos parece desembocar inevitavelmente no sacrifício dos primeiros. Daí que vejamos nele um prosaismo, uma vulgaridade, um servilismo.

Esta crítica é injusta, mas sobretudo assenta numa concepção perigosamente inquinada.

É injusta, primeiro, porque radica numa leitura encolhida e superficial dos pais do utilitarismo[5] e da sua pretensão a reduzir tudo ao princípio da maximalização dos prazeres e da minimalização do sofrimento. É compreensível que os seus contemporâneos mais atados, sob influência do beatério, tenham querido ver no princípio uma mera glorificação do prazer carnal e da concupiscência. Já é mais surpreendente que espíritos esclarecidos e abertos, como pretendem ser os que se reclamam da esquerda, continuem hoje a torcer o nariz perante o enaltecimento do prazer, sem ver que ele não exclui nenhuma espécie de satisfação, seja ela “material” ou “espiritual”, “baixa” ou “elevada”, e que se filia numa reflexão próxima da de Aristóteles, procurando enraizar a ética na propensão concreta das coisas para a sua perfeita realização, chamada felicidade[6].

Mas, sobretudo, a crítica resulta duma total incompreensão dum dos aspectos mais fecundos e interessantes do utilitarismo (e também do pragmatismo), que consiste em questionar a nossa mania de sacralizar os fins e de os contrapor sistematicamente aos meios. Os nossos preconceitos mais profundamente entranhados estão completamente eivados de dualismo. Em consequência, colocam-nos numa relação de confrontação com a natureza, que nos condena irremediavelmente à infelicidade. Quando afirmamos que os nossos fins são idealidades que não devem ser conspurcadas ao contacto do trivial, ou que são entidades por essência superiores e soberanas, comportamo-nos na verdade como pequenos deuses despóticos e birrentos. Por detrás da nossa aspiração à transcendência, está o pretenciosismo arrogante com que nos autorizamos a olhar para o mundo que nos rodeia, como se fôssemos os únicos capazes de dar sentido às coisas. Então sim, torna-se imprescindível impor limites e, por exemplo, sacralizar a pessoa humana, caso contrário acabaria tudo rapidamente numa gigantesca carnificina[7].

Bem compreendido, o utilitarismo é um óptimo antídoto, uma vez que nos obriga a olhar para as virtudes próprias das coisas, deixando de as conceber apenas como forças de inércia ou de resistência. Tenho para mim, aliás, que a consideração rigorosa e objectiva do útil, é o primeiro passo para compreender que o ustensílio é algo mais do que um ser inanimado sujeito ao nosso capricho. Com efeito, o útil só o é em consideração do bem e, em primeiro lugar, do bem que se oferece com liberalidade, porque custa menos a cultivar e a colher. Em contrapartida, noto que as piores desgraças e os males mais terríveis que o homem foi capaz de produzir à face da terra, sempre foram favorecidos pela relação ascética, exclusiva e desincarnada que ele pretende ter com o Ideal puro. Os campos de concentração, as bombas atómicas, os genocídios, a própria escravatura, tudo isso são realidades que só crescem ao sol da perfeita Inutilidade…

No fundo, só desconfia do utilitarismo quem desaprendeu a sabedoria dos antigos, que conheciam perfeitamente que o útil e o bem convergem. Perder de vista este princípio afigura-se-me como o prenúncio do pessimismo, senão mesmo do niilismo. É possível ser ao mesmo tempo pessimista e de esquerda ? Pessoalmente, não vejo como.

Para quem acha que as considerações acima são demasiado teóricas, vou dar um exemplo que, na nossa sociedade profundamente clerical, passará por relativamente concreto. Há uns (largos) anos atrás, nas universidades francesas, surgiu um movimento anti-utilitarista chamado MAUSS[8], que pretendia lutar contra a hegemonia do modelo económico inspirado numa visão puramente instrumental da universidade e das ciências sociais. Compreendo o objectivo, mas tenho as mais sérias dúvidas acerca do método. Para começar, gostava que me mostrassem uma análise económica séria que demonstre que a liberdade universitária, nas ciências sociais e fora dela, é inútil do ponto de vista da criação de riqueza. Julgo bastante mais provável que a ciência económica encontre resultados diametralmente opostos… Receio que muitas vezes, neste particular, capitulemos sobre o essencial. É que se confundirmos tudo, análises económicas feitas com rigor e baboseiras proferidas em tom de autoridade por jornalistas reles a soldo de banqueiros[9], então não é da ciência do útil que nos devemos queixar, mas apenas da nossa impreparação e ingenuidade...

De resto, quando olho com atenção para o comité de redacção da revista do MAUSS, vejo lá uns quantos economistas… Cabe talvez lembrar que qualquer ciência que se preze começa sempre por ser ciência das suas limitações. Ora, conheço suficientemente bem os economistas para saber que, quando são sérios e bons, passam a vida a alertar-nos para que não lhes peçamos aquilo que eles não sabem dizer. Por conseguinte, até pode ser que exista uma hegemonia da economia mas, se ela existe, não deve com certeza nada à ciência. A ciência, a séria, a humilde, a verdadeira – que por sinal é também a verdadeiramente útil – apenas pode conduzir a que a economia seja cada vez menos nómica e cada vez mais lógica. Não vejo aqui nenhuma ameaça para a esquerda, bem pelo contrário…


Melhorismo 


A implicação mais subtil do pragmatismo, e talvez também a  menos conhecida, ou pelo menos a menos compreendida, é sem duvida nenhuma o melhorismo.

Do que se trata ? Já todos ouvimos a máxima que reza que o melhor é inimigo do bom. Em geral, compreendêmo-la como um alerta para os perigos e os inconvenientes do perfeccionismo. Quem procura a todo o custo alcançar a perfeição acaba muitas vezes por borrar a pintura e estragar o que estava bem. Admito que possa haver alguma verdade nesse dito e na maneira tradicional de o entender. No entanto, acho muito mais verdadeira e significativa a afirmação recíproca. Na realidade o bom (ou o bem) é que é inimigo do melhor. O que verificamos quase todos os dias, é que a consideração do bom tem um efeito paralisante que nos cega e nos impede de procurar, mais modestamente, que as coisas melhorem. Quantas vezes encontramos pessoas altamente preocupadas com a Saúde em abstrato, mas que acabam por revelar-se incapazes dos gestos simples que a fariam melhorar concretamente ? Quem nunca viu a sede de Justiça absoluta tropeçar lamentavelmente nos tribunais por não saber como se reclama um trivial, mas útil, direito ? E a Educação completa das massas, a que consagramos tantos recursos, não acaba tantas vezes por funcionar em detrimento da sua simples emancipação ? Poderia multiplicar os exemplos em que, ao contemplar embasbacados a Prosperidade que nos apresentam com foguetes, acabamos por nos distrair e deixar que nos vão ao bolso.

Na verdade, procurar modestamente a melhoria é a forma mais eficaz e satisfatória de nos aproximarmos do bem. Eis uma máxima que merece ser subscrita por todos os autênticos realistas. Se repararmos, ela combina de forma inteligente os dois princípios expostos mais acima. Com efeito, a procura do melhor obriga-nos a deixar momentâneamente de lado a ideia pré-concebida que possamos ter do bom, para experimentar a diversidade das coisas e tentar encontrar, tacteando, a sua utilidade assim como, atravês dela, a realização harmoniosa duma forma de felicidade mútua.

As consequências politicas não são despiciendas. É certo que há virtudes nas grandes revoluções e não nego que seja legítimo aspirar por valentes safanões que ponham cobro à desordem antiga. Mas as revoluções autenticamente fecundas, pelo menos as que pretendem trazer melhorias duradouras, devem também saber adquirir um carácter de permanência, o que implica que sejam capazes de revestir alguma funcionalidade. Quanto a mim, não há oposição mais falaciosa do que a que distingue os “reformistas” e os “revolucionários”. Se forem progressistas, ambos realizam muito cedo que precisam uns dos outros. As revoluções só acontecem quando as reformas estão maduras e as melhores reformas precisam muitas vezes de um empurrão.

Mas, dir-me-ão, esta apologia das concessões não nos leva em linha recta para a capitulação ? não se trata da pseudo-filosofia dos esquerdistas que acordam um belo dia sentados nos concelhos de administração dos grandes bancos ? Ora aí é que está o ponto. Quem vos diz que os conselhos de administração da alta finança se preocupam genuinamente com o útil ? Antes fosse ! Na realidade, as falinhas mansas com que eles protestam do seu apego ao útil, na esmagadora maioria dos casos, não passam de um grosseiro travestimento do interesse (do capital) debaixo do manto do conveniente. Houvesse mais pessoas autenticamente de esquerda a pedir para ver e a morder-lhes as canelas[10], e com certeza que lhes seria muito mais dificultoso continuarem a ludibriar o povo, ou aliás a polícia que vela pelo cumprimento da lei do povo…

É certo que o melhorismo pode revelar-se exigente e mesmo inconfortável. Mais fácil e mais barato é esperar sentado e contentar-se com a incarnação semanal a acontecer na televisão ou noutro púlpito qualquer, em que nos mostram o vinho a transformar-se em sangue. Só que não sei se semelhante atitude pode ser dita de esquerda. Quanto a mim, o que caracteriza a esquerda, tem mais a ver com a procura de vias de facto que levem, efectivamente, a algum lado.

Como saber onde estão ? “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.


[1] Os curiosos podem ler a este respeito o artigo de Pierre Hadot “Sur les divers sens du mot pragma dans la tradition philosophique grecque”, reeditado recentemente em Etudes de philosophie ancienne, Paris, Belles Lettres 2010. Aproveito para recomendar calorosamente a leitura de Pierre Hadot a todos os leitores que se interessam por filsofia antiga, ou por filosofia em geral. Algumas das suas obras estão traduzidas em Português (por exemplo O que é a filosofia antiga, Ed. Loyola 1999)
[2] A máxima foi primeiro formulada por Charles Sanders Peirce  em 1878 : “It appears, then, that the rule for attaining the third grade of clearness of apprehension is as follows: Consider what effects, that might conceivably have practical bearings, we conceive the object of our conception to have. Then, our conception of these effects is the whole of our conception of the object” (conhece-se também uma versão da mesma frase em francês, redigida em 1877, para um artigo destinado a ser publicado na Revue philosophique).
[3] De forma muito esquemática, o pragmatismo é uma corrente filosófica habitualmente identificada com três grandes nomes : Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). Embora tenha despertado imediatamente muito interesse e algumas adesões, só lentamente lhe foi reconhecida a importância que merece. Hoje, reclamam-se do pragmatismo filósofos tão diferentes como Jurgen Habermas, Hilary Putnam ou Richard Rorty.
[4] O que se segue inspira-se directamente dos 3 últimos capítulos do livro de John Dewey, de 1919 (reeditado com novo prefácio em 1948), Reconstrução em Filosofia (há tradução portuguesa, publicada no Brasil em 1959, na Companhia Editora Nacional), pequeno livro sintético, pedagógico, de leitura agradável, que recomendo sem hesitações. Julgo perfeitamente possível começar directamente a leitura pelos 3 capítulos finais que contêm o sumo da obra. O resto tem interesse, mas é mais datado. A personalidade de Dewey é interessante a todos os títulos. Lembremos, entre outras coisas, que foi um progressista com intervenções políticas marcadamente de esquerda, pelo menos no contexto americano.
[5] Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
[6] « Por utilidade, entende-se a propriedade de qualquer objecto pela qual ele tende a produzir um benefício, uma vantagem, um prazer, um bem ou uma felicidade (tudo isso, para o que nos interessa, vai dar ao mesmo)” (Bentham, Introdução aos princípios da moral e da legislação, I, 3).
[7] O uso do condicional nesta frase é misericordioso.
[8] Referência óbvia ao genial autor do Essai sur le don a sigla significa Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales. A revista editada pelo movimento contou com a participação de Castoriadis e existe um livro publicado recentemente, que não li ainda, com os diálogos entre ele e os membros da associação : Démocratie et relativisme. Débat avec le MAUSS, Paris Mille et Une Nuits, 2010.
[9] Os exemplos são de tal maneira abundantes que vou deixar o leitor preencher esta nota de rodapé.
[10] E cabe aqui referir que as há, e em muito maior número do que por vezes imaginamos. Não vou cair na facilidade de lembrar onde é que o próprio Castoriadis fez carreira, mas lembro que há juízes de esquerda, e também economistas de esquerda, e altos funcionários de esquerda, etc. Se não se vêem mais, não é tanto porque não existem, mas porque não são ouvidos

8 comentários:

Pedro Viana disse...

Caro João,

Um excelente post, que me merece os seguintes comentários.

No caso do Relativismo, iria mais longe: é um dos pilares básicos do que significa ser de Esquerda. A compreensão do Outro, integra-lo na nossa visão do mundo e na "nossa" comunidade, requer a capacidade de "ver com os olhos" do Outro. É à Direita que encontramos o Fundamentalismo, que radica não só na incompreensão do Outro, mas também na recusa da vontade de compreender esse Outro.

Quanto ao Utilitarismo, abordaria a questão de outro modo. Parece-me que o foco no contraste meios vs. fins é enganador. Segundo tal ponto de vista o não-utilitário tende a valorizar os fins em detrimento dos meios, enquanto que o utilitário faria o oposto. Mas, haverá na realidade alguma distinção entre meios e fins? Ou apenas uma valorização distinta do "ganho" ao longo do tempo? Julgo que um utilitário extremo poderia ser caracterizado como alguém que é céptico relativamente à sua/nossa capacidade para prever e controlar o futuro, mesmo a médio prazo, e portanto concentra-se em obter o que se pode caracterizar como fins de curto prazo. No outro extremo, encontramos o não-utilitário (o "idealista"), que crê conseguir prever e controlar o futuro, e portanto executa as suas acções tendo em vista conseguir o futuro que deseja. Em qualquer dos casos, o desejo de maximizar o prazer, o bem (individual ou comum), e minimizar o sofrimento, o mal, existe. Mas enquanto o utilitarista se concentra numa visão de curto prazo, o idealista tem um horizonte mais longo, ou seja, acredita que no médio/longo prazo a maximização do prazer/bem e minimizarão do sofrimento/mal pode requerer uma diminuição do prazer e algum sofrimento durante um certo intervalo de tempo. Acredita ainda que uma visão "utilitarista" extrema acabaria por levar, no médio/longo prazo, a um menor prazer/bem e maior sofrimento/mal, do que aquele que seria possível através dum caminho alternativo. Parece-me assim que a dicotomia utilitarismo/idealismo não tem muita... utilidade. Devíamos antes enfatizar que é preciso exercer a razão crítica sobre o caminho que pretendemos percorrer, maximizando **ao longo do percurso** o bem individual e comum. Sempre conscientes de que a nossa capacidade para prever e controlar o futuro torna-se cada vez mais limitada à medida que este se torna mais longínquo ("utilitarismo"). mas também que só pela tentativa de previsão e controlo do futuro (idealismo) é que poderemos evitar (algumas) situações de (forte) diminuição desse bem que pretendemos atingir. Note-se que idealismo e fundamentalismo não são a mesma coisa. É possível ser-se idealista e ao mesmo tempo aberto à realidade, céptico perante o ideal que se pretende atingir e o modo de o fazer, capaz de introduzir alterações nesse ideal com o tempo.

(cont.)

Pedro Viana disse...

(cont.)

Finalmente, o Melhorismo. Em certos aspectos, confunde-se com a questão do Utilitarismo. Pelo menos, na minha interpretação deste como reflectindo uma valorização diferente do curto vs. longo prazo na acção. Vou por isso focar-me na dicotomia Reforma vs. Revolução, ou seja no Reformismo. No extremo do Reformismo encontramos quem acredita que um (ex. o actual) sistema político, social e económico só poder modificado "trabalhando dentro do sistema", i.e. sem provocar rupturas na "ordem" estabelecida. No outro extremo, estão o que acreditam no oposto, menosprezando as alterações endógenas ao sistema como irrelevantes, ou mesmo perniciosas caso contribuam efetivamente para o reforço desse sistema (quando apenas afectam o superficial, contribuindo para reforçar o fundamental). Tendo em conta o que foi dito acerca do Utilitarismo, e da necessidade de articular um caminho que envolva várias dimensões temporais, curto, médio, e longo prazo, bem como a constatação de que a acção benéfica no curto prazo e de grande alcance (em número de pessoas) é apenas possível através da Reforma, enquanto que a visão de médio/longo prazo só é possível através da Ruptura (ie. Revolução), ou de várias Rupturas, julgo que é essencial agir **simultaneamente** através da Reforma e da Ruptura. Para isso é necessário que: haja quem se dedique à Reforma (ex. Partidos políticos), e quem se dedique à Ruptura (ex. Movimentos cívicos), compreendendo cada um o seu papel, sem menosprezar o do outro; haja reformas com visão de longo prazo, ou seja que facilitem o aparecimento de Rupturas, e que as Rupturas resultem da consolidação de movimentos sociais.

Abraço,

Pedro

joão viegas disse...

Caro Pedro,

Obrigado pelo teu comentário, que me leva a tentar afinar dois pontos em resposta às tuas reflexões tão pertinentes como certeiras :

1/ A parte sobre o utilitarismo é um pouco provocadora e é talvez a mais delicada. Inspira-se numa reflexão de Dewey no livro que cito que, respondendo precisamente às tuas preocupações, é quase inteitamente construído a partir de uma crítica da oposição radical (mas falaciosa) que fazemos entre fins e meios. Dewey defende que a história do conhecimento científico mostra que somente passámos a compreender as coisas na exacta medida em que as dessacralizámos, submetendo-as a inquérito e ao questionamento racional, que é já uma forma de as utilizar. A compreensão das coisas passa por conseguinte por considerá-las como “meios” (e não como “finalidades” intangíveis). Ora, deveríamos também proceder assim com o que concebemos como as nossas finalidades, pelo menos se as quisermos compreender melhor. Indo até ao extremo do raciocínio, completamente paradoxal mas genialmente coerente, poderíamos dizer que devemos submeter as nossas finalidades últimas a inquérito, questionando a sua aptidão, como meios, a dar-nos uma felicidade que sirva…

2/ Mas, para tentar responder às tuas outras preocupações, eu acrescentaria o seguinte : o que se critica é apenas a “oposição radical”, ou seja a forma como opomos absolutamente “meios” e “fins”, sem ver que há entre eles uma solução de continuidade. Esta crítica não me parece dever ir até uma negação total da diferença entre as duas coisas, ou à redução completa de uma à outra. E também julgo posssível, e mesmo necessário, continuarmos a fazer a diferença entre fins próximos (o tal “curto prazo”) e fins mais longínquos (o “longo prazo”). Quanto a mim, nem os pragmáticos, nem os utilitaristas, preconizam que nos limitemos aos fins imediatos, urgentes e ditados pela necessidade premente com vistas curtas. Dizer que as ideias devem ter em vista a realidade não equivale a dizer que não existe maneira de expressar as relações entre as coisas com alguma perspectiva e com alguma elevação (que é precisamente para que servem as ideias). Eu diria mesmo que o que é demonstrado pela longa história do nosso domínio progressivo sobre os meios, com vista a uma vida mais autónoma e mais harmoniosa, é também que as ideias abstratas, os ideais, os projectos e a consideração do longo prazo foram sempre, e vão com certeza continuar a ser, um possante auxílio e um contributo decisivo para termos da realidade uma maior compreensão e para vivermos melhor com ela. Ponto é que saibamos que o valor das ideias está estreitamente dependente da sua aptidão a dar conta da realidade, directa ou indirectamente. Há uma frase do Stuart Mill que diz “as abstracções não são realidades em si, mas modos condensados de expressar factos e a única forma prática de lidar com elas consiste em voltar aos factos de que elas são a expressão”.

Em conclusão, julgo que nem o utilitarismo, nem o pragmatismo, me parecem renegar o conselho de Oscar Wilde que defende que é importante termos sonhos suficientemente grandes para não os perder de vista enquanto os perseguimos, pelo menos desde que “perseguir” se entenda como “tentar realizar”.

Abraço

Miguel Madeira disse...

Acerca de relativismo, esquerda e direita - era Joseph de Maistre que dizia que não havia homens, apenas franceses, ingleses, russos, persas, etc.; e penso que Burke também disse qualquer coisa sobre os "direitos dos ingleses" versus os "direitos do homem". A mim parece-me que, se alguma coisa, o relativismo até está mais associado à direita e ao tradicionalismo, e normalmente era a esquerda e os revolucionários que eram universalistas.

joão viegas disse...

Caro Miguel (Madeira),

Julgo que estas a confundir o relativismo com outro coisa, a que poderiamos chamar talvez "particularismo", "casticismo", "integralismo" ou mesmo "idiotismo". O relativismo não me parece ter nada de contrario ao universalismo, e vejo até como se pode defender que o primeiro é uma condição necessaria do segundo. O que o relativismo defende, apenas, é que nem eu, nem ninguém, tem o monopolio da compreensão ou da inteligência daquilo que é universal...

Abraço

joão viegas disse...

Addenda : quando digo que "o relativismo não me parece ter nada de contrario ao universalismo", sera bom acrescentar "a não ser na medida em que nos leva a criticar a postura de quem pretende impor de forma autoritaria a sua racionalidade propria como sendo ou devendo ser universal". Esta critica não me parece aplicar-se ao "universalismo de esquerda" que tem (ou devia ter) mais a ver com uma aspiração generosa a alcançar o bem comum a todos. Admito no entanto que pessoas que se reclamam da esquerda possam ter assumido posições menos felizes nesta matéria...

Abraços

José Guinote disse...

Meu caro João Viegas, quero apenas dizer que me agrada bastante o tom geral desta reflexão. Tenho vontade de abordar esta questão com mais detalhe a partir de um debate que decorre na área das ciências sociais, entre os geógrafos marxistas e alguns de carácter mais social-democrata, e que tem por tema a construção da "cidade justa" . Prometo voltar à caixa de comentários nos próximos dias. Um abraço. Afinal o que está aqui implicito é a possibilidade ou não de nós melhorarmos as sociedades em que vivemos, exercendo os nossos direitos, lutando pelos nossos ideais, confrontando-nos com os que pensam de forma diferente de nós e defendem outros interesses ainda que continuemos a fazê-lo no contexto de uma sociedade de economia de mercado isto é no contexto da sociedade capitalista.

Niet disse...

" ...é impossivel apresentar a constituiçao da ordem histórica como um empréstimo, um desdobramento, uma " gota gelada de outra coisa ".(...) Nao há, em história, "objectividade " que seja perturbada pelo condicionamento. (...) O presente nao resulta do passado, logo, nao pode ser apreendido a partir das consideraçoes de sistema de causas postas de uma vez por todas à partida.(...) a "verdade" a haver uma, de uma situaçao histórica e social, seja individual ou colectiva, supera necessariamente o vivido efectivo dos sujeitos desta situaçao- por outras palavras, a história é o terreno " dos fins nao queridos e das intençoes inconscientes ", que o historiador, necessariamente, sabe sempre menos e sabe sempre mais do Ateniense
do que este de si próprio ". C. Castoriadis. in " Compreender a História ". Sem data. in " Histoire et création ", inedits. 2009. edits. Du Seuil.

Esta muito louvável e corajosa iniciativa teórica de Joao Viegas gera a maior das perplexidades e implica um cerrado dispositivo de análise critica de um arrojo monumental porque trans-disciplinar, sob pena de toda a gente se perder... Tudo se joga na determinaçao- ou nao,claro- de fazer explodir as sequelas incongruentes e funestas do imaginário social e politico instituido que enforma a realidade social. E ai,como frisa Castoriadis, " Nao há , na historia, processos automáticos. Nao há, na sociedade capitalista, processos revolucionarios cujo significado revolucionario seja demonstrado de uma vez por todas e esteja neles gravado para permitir aos revolucionarios que o decifrem facilmente . A própria proletarizaçao( a única coisa verdadeira na " Acumulaçao primitiva ") terá ela um significado revolucionário unívoco? Salut!. Niet