15/01/17

Cadáveres, carpideiras e Despedidas


 Um acontecimento banal, a morte de um homem de idade avançada. Como tantas outras mortes. Que foi transformado em acontecimento excepcional pelo trabalho intenso da chamada comunicação social, ou melhor, da propaganda social.
Em última análise, a morte do Sr. Soares só tem um aspecto que nos interessa. Mostrar que só na morte os políticos são iguais aos seres humanos. Ou, melhor dizendo, que só no destino humano da morte se tornam verdadeiramente humanos. Para além disso, há que reconhecer que o desaparecimento de um político deixa sempre o mundo melhor, o que nestes tempos terríveis já é alguma coisa.
Toda a gente carpiu o Sr. Soares, desde ex-esquerdistas até ex-salazaristas. O que se pode ler e ouvir foi um verdadeiro atentado à inteligência. Mais um exemplo de como a política puxa os espíritos para baixo, reduz tudo a um denominador comum medíocre. Que falta de exigência e de respeito por si próprio revelaram todos estes comentários, elogios bacocos asseptizados com a amnésia do passado! Finalmente qual foi o verdadeiro papel político do personagem nos anos da Revolução ? Merecemos melhor do que isto.
Surpresa feliz: lá para os lados da Póvoa de Varzim, alguém foi capaz de levantar o estandarte de um jornalismo de opinião livre e frontal. Estou a falar do texto assinado por Artur Queiroz no modesto jornal local, A Voz da Póvoa, que um amigo me fez chegar. E que aqui vos deixo como meu último post no Vias de Facto. Como comenta o dito amigo: a única voz livre neste país, o único jornal pluralista, é a Voz da Póvoa! Ele exagera um pouco, mas só um pouco, que a miséria está à vista!

Sim, o último post. Não é que a morte do tal político tenha algo a ver com a minha decisão, igualmente insignificante, sobre o fim da minha colaboração com o Vias. Embora, tenho de o reconhecer, o que tenho lido no blog a este propósito e sobre outras politiquices não me tenha encorajado a continuar… Como se viu com o Sr. Soares, desde merceeiro a falsário e a político, toda actividade tem um fim. Mesmo a de blogueiro. Gostei de por cá andar, li textos que me interessaram e instruíram, outros que me danaram, escrevi umas linhas sobre as minhas convicções, que tocaram alguns, desagradaram a outros. Assim foi. Nestes tempos difíceis, que mais difíceis vão ser, é bom não dispersar as energias, e vou dar preferência à minha crónica no jornal Mapa que a malta jovem vai lutando para fazer viver, e de cujo último número, que acaba de sair, aconselho a leitura. Agradeço ao Miguel Serras Pereira por me ter convidado para a aventura, a confiança, a ajuda e o apoio que me deu para além dos desacordos circunstanciais, e também ao Miguel Madeira, que nos momentos mais angustiados da minha incompetência com as novas tecnologias esteve disponível e solidário. Que por obra do santo espírito das novas tecnologias o meu nome desapareça da lista dos colaboradores do blog. Agradecido e a todos boa sorte e saúde.


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UMA TRAGÉDIA A DOBRAR

O jornalismo Português e a Morte de Mário Soares

A morte de Mário Soares foi uma tragédia para a comunicação social portuguesa, porque revelou estar totalmente virada para a propaganda, abandonando em definitivo princípios como o rigor e a objectividade. A imprensa chinesa passou dias a endeusar Mao Tse Tung quando o velho revolucionário da Longa Marcha morreu. Os portugueses bateram largamente os chineses no culto da personalidade e no endeusamento do antigo Presidente da República. Bateram-se mano a mano com os propagandistas da Coreia do Norte, quando Kim Il Sung faleceu.
Balsemão, Belmiro, Rosita da TVI, polícias-jornalistas do “Correio da Manhã” ou da “Sábado” perderam a cabeça e fizeram de Portugal uma espécie de Alemanha de Hitler ou de Uganda de Idi Amin. O sector público da comunicação social copiou escandalosamente o “Diário do Povo” de Pequim ou o velho “Pravda” da defunta União Soviética. A morte de Mário Soares serviu para a mais primária campanha de propaganda que alguma vez se viu em Portugal. Se António Ferro, o propagandista do regime salazarista, estivesse vivo, morria de vergonha. Os propagandistas até conseguiram fazer de Mário Soares o primeiro Presidente da República eleito! Claro que acrescentaram uma palavra: “civil”. Eanes que se lixe, não passa de um general que recusou ser marechal. Apresentaram o extinto líder socialista como pai da liberdade e da democracia em Portugal. O maior de todos os políticos. O máximo da tolerância, o supremo guardião da paz. Nem uma voz, em surdina que fosse, ousou perturbar a propaganda.
Quando o pai da liberdade era primeiro-ministro, Otelo Saraiva de Carvalho foi preso. E esteve vários anos na cadeia. Depois foi absolvido. O comandante operacional do 25 de Abril e seus companheiros do MFA, que deram o corpo ao manifesto para libertarem os portugueses do regime fascista, não valem nada comparados com Soares.
O expoente máximo da tolerância cilindrou figuras do seu partido como Salgado Zenha ou Lopes Cardoso. Aliou-se ao Exército de Libertação de Portugal (ELP) para derrubar o regime revolucionário nascido no 25 de Abril de 1974. Criaram uma rede bombista que fez atentados em todo o país. E nas explosões morreram civis inocentes. Soares foi amigo e aliado de Alpoim Calvão, Spínola, Cónego Melo e vários operacionais que fizeram atentados à bomba e incendiaram sedes de partidos políticos democráticos.
O pai da democracia recebeu Jonas Savimbi no Palácio de Belém, na época líder de um grupo armado ao serviço do regime de apartheid da África do Sul, que matava e destruía em Angola, país amigo de Portugal. Em Pretória pontificavam os nazis. Savimbi, quando foi recebido pelo presidente Soares já tinha assumido publicamente um atentado bombista na sala de embarque do Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda, que causou dezenas de vítimas civis. O amigo do antigo Presidente da República fez explodir vagões-cisternas, cheios de combustíveis, num comboio que estava parado na estação de Zenza do Itombe. Resultado: centenas de mortos civis. Alguns sobreviventes ainda hoje mostram as cicatrizes das queimaduras graves que sofreram com o ataque terrorista.
O pai da liberdade esteve conluiado com a CIA, organização responsável por milhões de mortos em todos os continentes. O embaixador Frank Carlucci e o antigo líder socialista prepararam várias acções que culminaram com o derrube do regime revolucionário iniciado em 25 de Abril de 1974.
A operação de propaganda serve para esconder estes e outros factos que dão de Mário Soares uma dimensão mais própria de homens do que de deuses. E mostram um político que não hesitou em aliar-se ao pior lixo que sobreviveu ao regime fascista ou apoiou Savimbi, ponta de lança da agressão dos racistas sul-africanos a Angola.
Quando estive na Coreia do Norte, uma simpática guia mostrou-me os sítios, de norte a sul do país, onde Kim Il Sung descansou, onde comeu uma bucha, limpou a arma, tirou uma soneca, escreveu um poema, desbaratou um grupo inimigo, falou aos soldados, amou uma mulher. Tudo o que eu via, tinha a ver com o grande líder. Mais de 40 anos depois levo uma injecção de Mário Soares, atrás da orelha e nos olhos, que me deixou abananado. Que ressuscite a liberdade de imprensa! Soares é imortal.

Artur Queiroz,
Jornal Voz da Póvoa  (9 a 15 Janeiro 2017) 



14 comentários:

Pedro Viana disse...

Olá Jorge,

Tem sido um prazer esclarecedor ler os teus textos. Continuarei a lê-los no Mapa. Vamos-nos vendo por aí.

Um grande abraço,

Pedro

Niet disse...

O Jorge Valadas está a iludir-se e muito com a personagem que cita e incensa. Só por desconhecimento real e crucial se pode adiantar em tantos elogios, creio. Vaneigem pode-nos ajudar a escapar a um jardim das tormentas indizivel: " Entre os regimes parlamentares e os regimes ditatoriais não existem diferenças senão entre a força da mentira e a verdade do terror ". Niet

David da Bernarda disse...

Este texto ajuda a repor uma parte da verdade histórica, na contracorrente de todos os manipuladores e das carpideiras arrependidas, do que foi a acção de Mário Soares no Poder e do seu papel no pós-25 de Abril. Podem roubar-nos tudo menos a memória.

Miguel Madeira disse...

"O Jorge Valadas está a iludir-se e muito com a personagem que cita e incensa"

Quem, o Artur Queiroz?

Libertário disse...

Não deixa de ser curioso que o Niet se sinta mais incomodado pelo texto crítico publicado por Jorge Valadas do que pelo texto laudatório de Mário Soares de José Guinote que não lhe mereceu nenhum comentário...

Niet disse...

O Libertário está a enganar-se a si próprio e desonhece a gravidade dos problemas em jogo. Conheci Soares no exilio quando ele conspirava de igual para igual com o grande Palma Inácio e companheiros, por exemplo. Em relação ao texto em apreço convém pensar com toda a força, como precisa Bouveresse: " A Imprensa quase sempre confirma que, com ela, o pior é sempre certo, e, como dizia Kraus, não é mesmo possivel realmente exagerar ..."Niet

Libertário disse...

Essa do «leitor» universitáreio Mário Soares conspirar «de igual para igual» com Palma Inácio é uma boa anedota que não consta ainda da história da Luar. No entanto lembro-me de como Mário Soares conspirou «de igual para igual» com Frank Cia Carlucci. Mas admito que desconheço a gravidade dos problemas em jogo quando o Niet conheceu Mário Soares no exílio, e acrescento até que não quero conhecer. Chega de problemas graves.

Niet disse...

Todos andavamos extasiados com os avanços teóricos do Libertário. Limitados mas assertivos. Ora, num equivoco primário decretou o retorno à mais dura das lógicas de " aparelho " e recusa admitir ignorância dos factos reais do problema em discussao; tenta pirueta e por má fé ensaia manobra de diversao canhestra e rasa. Eu é que nao lhe vou explicar as coisas certas e soberanas do caso em apreço. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

"…coisas certas e soberanas", diz o Niet, calando todavia quais. Quanto à minha certeza soberana é que não há hipérbole que diga suficientemente a que ponto a sua argumentação, bem mais do que o coração de Pascal, tem por base a expansão ilimitada da produção de razões que a razão desconhece.

msp

Niet disse...

Nem com uma dose fulgurante de Captagon- a grande métamphétamine a n-potência - terei coragem para contar a história nua a crua das catacumbas do texto contra o legado do Soares. Claro, só podemos, como frisa Kafka,tentar conhecer pessoalmente unica e exclusivamente Deus...E recuso o espirito de vingança...toda a gente se quer vingar de qualquer coisa.Mesno o Espectáculo é concebido para a suscitar. Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

O objecto do meu comentário anterior não eram as catacumbas — nuas e cruas(?) ou não —, nem o legado de Soares, nem o próprio Deus, ou, menos ainda, o espírito de vingança. Referia-me apenas à prosa e à argumentação do Niet. E, modéstia à parte, dir-se-ia que acertei em cheio.

msp

Niet disse...

Nao parece mas é. Até parece que o próprio MSP tende a ser involuntariamente manipulado pelo espirito de vingança, a última mézinha sofisticada reinventada pelos lacanianos puros e duros de Paris, Sollers e JA Miller, Oh.Céus! Niet

Aventar disse...

Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido. Mário Soares e o 25 de Novembro.

https://aventar.eu/2010/01/12/contos-proibidos-memorias-de-um-ps-desconhecido-mario-soares-e-o-25-de-novembro/#more-1044609

Niet disse...

Ponderei alguns elementos tácticos e, contra toda a má-fé e manobras indecorosas de um perverso nihilismo circunstancial, informo os leitores puros que conheci o autor do texto, A. Queiroz, em Paris no exilio mútuo. Faziamos parte de um núcleo muito heterogéneo ideologicamente que incluia a Rosa Abelaira, a R. Büsse, a Barbára M. Costa,o Alfredo Franco Alexandre, o Siddik Ahmad, a Manuela e o Arnaldo Fleming, o Toy Caeiro, o Carlos Ventura, entre muitos outros. Depois do 25 de Abril, fui colega do A. Queiroz em dois jornais. Ponto final. Niet