28/08/10

Um anti-imperalismo sem danos colaterais

Esta resposta do Renato Teixeira à Fernanda Câncio e à Inês Medeiros, em que pelo meio me acusa de ser uma pessoa respeitável, incorre neste vício: o Renato reduz os argumentos de quem critica a argumentos de índole emocional e responde-lhes em nome da racionalidade. Diz que não é por a situação ser penosa (o Renato não gosta de ver mulheres serem lapidadas) que agirá assim ou assado, que ele, Renato, não se deixa enganar por emocionalismos e coisas do género. Mas o que este argumento do Renato quer dizer, simplesmente, é que o Renato entende que a sua razão, fundada no seu superior conhecimento das leis geopolíticas que governam a história, é infalível, e que a razão da Inês de Medeiros e da Fernanda Câncio é equívoca. O Renato deveria perguntar a si próprio, talvez, porque precisa ele deste subterfúgio argumentativo, que passa por desqualificar a racionalidade de quem critica, e a resposta talvez esteja na dificuldade que ele Renato terá em assumir que o seu argumento não é simplesmente racional, mas é feito daquela racionalidade que ele próprio abominaria por princípio, racionalidade instrumental de acordo com a qual se diz: a senhora será lapidada, sim senhor e é uma pena, mas a lapidada é um dano colateral no quadro da luta contra o imperialismo.

A mim, por isso, cumpre-me apenas recapitular os termos do problema que se coloca à malta que não quer ver as mulheres iranianas serem lapidadas e que não quer ver Teerão ser bombardeada, partindo do pressuposto que todos os intervenientes neste post estão neste barco. E os termos do problema são estes: todos devemos saber que as campanhas humanitárias fazem parte da geopolítica internacional e ninguém deve ser ingénuo em relação às dinâmicas das mesmas, de tal modo que não é possível refugiarmo-nos no simples campo dos princípios quando discutimos estas coisas, até porque injustiças é o que não falta por aí e convém a turba não abandonar a sua agenda de protesto à aleatoriedade das coisas, aleatoriedade que nunca é aleatória, por certo; mas se parece sensato que o Renato pretenda alertar o povo ignaro para os malefícios da ingenuidade e do tontismo humanitarista, conviria, porém, altertar o Renato para um risco que não é menor: o da redução da história a um mecanicismo determinista, que tem mais de policial do que de político, do género "se és contra o governo de um país então és a favor do governo do país estrangeiro".

Os posts do Renato sobre este assunto mostram, na verdade, como o nacionalismo anti-imperialista (que tem no anti-americanismo uma das suas expressões mais acabadas) continua a ser um dos principais problemas de uma esquerda revolucionária. Sabemos que existe no PS e no PSD um certo fascínio pela modernização económica e pelo ocidentalismo reinantes e que esse fascínio continua a fazer dos EUA o seu referencial, mas, à esquerda do PS, por vezes, temos mais ou menos a mesma coisa só que ao contrário. O que dá em anti-americanismo e não digo primário porque me parece redundante. Os males do anti-americanismo são vários e penalizam sobretudo a hipótese de uma política internacionalista comunista, hipótese que, creio, seduz o Renato, o que, diga-se, faz com que eu e ele tenhamos à partida alguma coisa em comum. Mas vamos lá aos malefícios do anti-americanismo, que é o que aqui me interessa. Em primeiro lugar, com o anti-americanismo não perguntamos o que significa o facto da lógica anti-americanista ser simplesmente oposta – e por isso formalmente idêntica – à lógica americanista. Em segundo lugar, e passando do abstracto ao concreto, com o anti-americanismo tendemos a não compreender as ocultações que dele resultam; não reparamos que ao dizer “o” Irão e “os” iranianos deixamos de poder dizer algo relativo à conflituosidade social no Irão, secundarizando o conflito entre islâmicos e ateus, entre fundamentalistas islâmicos e islâmicos, entre homens e mulheres, entre proletários e burgueses, etc. Em terceiro lugar, e por consequência do antes exposto, com o anti-americanismo não vemos as dinâmica a-nacionais, anti-nacionais, transnacionais e pós-nacionais (como queiram) que fazem muitos desses conflitos. Em quarto e último lugar, com o anti-americanismo não vemos que a oposição Irão/EUA igualmente coloca na sombra a conflituosidade social nos EUA. Quando se diz “os” americanos ou "o" Irão, não se está longe de fazer o mesmo que os primeiros-ministros entusiastas, como Sócrates, e os cronistas decadentistas, como Pulido Valente, que dizem “os” portugueses isto e aquilo. Entre a ciência marxista-leninista e as espertezas da psicologia étnica, por vezes, a distância reduz-se de modo assustador.

6 comentários:

Anónimo disse...

Consegues ler coisas fantásticas de tão poucas palavras.

Pedia-te que mudes o link se queres referir-te à posta em que te acuso de seres "respeitável".

Diz que isso faz parte da "ética blogosférica" embora como já disse algures não sei bem o que isso significa.

Renato T.

Miguel Serras Pereira disse...

Maré alta, camarada Zé Neves

Abraço internacionalista

miguel sp

João Vilhena disse...

O Renato não gosta de ver mulheres serem delapidadas ou não gosta de ver mulheres serem lapidadas?

nunocastro disse...

a tua redução é absurda. poderias continuar o mesmo exercício até ao limite de duas pessoas. por ex. não vamos falar do Irão, vamos falar de burgueses e proletários, não, vamos antes falar de falanges religiosas burguesas e falanges religiosas operárias, contra as suas inimigas seculares; não, isto não chega: vamos antes falar dos grupos dominantes dentro das facções religiosas versus os grupos dominados dentre as mesmas e dos grupos dominantes dentre as facções seculares e dos dominados; e podemos ainda traçar relações oblíquas, etc, etc. acaba quando quiseres. é um preciosismo metodológico que ao limite leva a uma regressão ao infinito - e só não leva porque tu estipulaste fronteiras absolutamente arbitrárias dentro do teu esquema de causalidade, como sejam burgueses e proletários, ou trabalhadores e capital; ou homens e mulheres, etc. Quando escreves incorres sistematicamente no mesmo vício (se é que de vício se pode falar) daí que esta espécie de desconstrucionismo propedêutico não leve a nada.
"Irão", "América" acabam por ser tão bons conceitos como outros quaisquer dependendo do nível analítico a que te propões. O nível pós-nacional não exclui o nacional assim como este não exclui o local bem assim como as redes que em cada um destes estratos podes observar. não há nada de mutuamente exclusivo em nenhum deles.

de resto, a treta das conspirações, e isso, revela apenas um cultura da desconfiança muito típica da militância do pcp. do que eu dela conheço. e sim, tens razão, revela, e sempre revelou, uma imensa falta de argumentos.

Zé Neves disse...

caro nuno castro,

sim, as palavras são problemáticas, o que não quer dizer que se deixe de problematizar as ditas. e de procurar alternativas: nomes e categorias e conceitos que consigam escapar à lógica identitária que, como dizes, pode ser desconstruída até ao infinito. Embora, repara, a desconstrução até ao limite de duas pessoas não seja o fim da desconstrução, porque é ainda possível desconstuir uma pessoa só. E a partir daí, porém, a desconstrução torna-se já construtiva (a coisa vira do avesso) porque trata-se de descobrir as várias pessoas que há numa. Estaremos já numa lógica de relação que é diferente da lógica da identiticação.

Isto não impede que se discuta que categoriaç~eos se utiliza. categorizar é tomar partido e a arbitrariedade em traçar a fronteira entre burgueses e proletários em lugar de iranianos e americanos é evidentemente uma arbitrariedade que faz parte daquilo a que se chama fazer política.

ainda o seguinte: as teorias da conspiração nem são assim uma parte tão necessária da tradição do PCP e dos PCP's, pelo menos em comparação com parte das extremas-esquerdas, nas quais palavras como "traição", por exemplo, têm uma carga histórico-política bastante forte.

cumps

nunocastro disse...

certo. e obrigado pela tua resposta

mas isso nada diz da justeza, adequação - ética, empírica - ou eficácia dessas mesmas categorias.
dizer que são políticas enuncia uma tautologia - se a categorização separa arbitrariamente, ao limite é sempre política. é essa a esperteza do poder simbólico.

agora, pouco me diz das suas causas. é político, sim. mas com que objectivos? acusar Israel de ser um Estado facínora, é "logicamente" bom, por causa da parcimónia na economia dos signos políticos. claro que, como tantos fazem, poderia ser invocado que nao pode ser assim, que há facções dentro de Israel que se opõem, que não podemos tomar a parte pelo todo, etc, etc. mas isso diz apenas da luta e das armas retóricas que ela coloca à disposição.

da mesma forma, aposto consigo que descubro um qualquer escrito seu a dizer mal do imperialismo norte-americano aquando da invasão do Iraque (não me faça agora a desfeita de não o ter...).

o caso do anti-americanismo que está aqui em causa (o caso da delapidação) não é de um problema de escala. parece-me mais decorrente de uma certa "insanidade política" que deve poder ser julgada enquanto tal com argumentos passíveis de algum grau de veracidade, semn que estes seja sempre reduzidos ou a um problema de perspectiva ou de investimento prático numa determinada luta ou jogada (nem sempre as lutas são reais lutas)