A democracia, em sentido próprio, é o governo dos cidadãos e não a eleição dos governantes. Esta última pode, sem dúvida, limitar o poder dos aparelhos de governo de uma sociedade oligárquica e reduzir a "liberdade do Estado", sempre, como dizia o outro, "inversamente proporcional" à dos cidadãos. Mas não equivale nem à igualdade nem à liberdade democráticas.
Dito isto, o autogoverno democrático dos cidadãos poderá ter delegados cujo mandato seja por definição revogável, mas não representantes permanentes, legitimados ou não por via eleitoral, que reproduzam a divisão do trabalho político — do qual a direcção da economia é parte essencial — entre governantes e governados.
Como, em 1995, dizia Castoriadis (cf. Diálogo Seguido de Post-Scriptum Sobre a Insignificância, Lisboa, Fim de Século, 2004): a democracia dita representativa não é uma verdadeira democracia. Os seus representantes representam muito pouco aqueles que os elegem. Em primeiro lugar, representam-se a si próprios ou representam interesses particulares, lobbies, etc. E, ainda que não fosse este o caso, dizer que alguém me vai representar durante cinco anos de modo irrevogável equivale a dizer que me despojo da minha soberania enquanto povo. Rousseau já o dissera: os ingleses julgam que são livres porque elegem representantes de cinco em cinco anos: são-no no dia das eleições. E nem mesmo isso é verdade: a eleição está viciada, não por "chapeladas" nas urnas, mas porque as opções foram de antemão definidas. Ninguém perguntou ao povo sobre o que ele quer votar. O que se diz é: "Votem a favor ou contra Maastricht", por exemplo. Mas quem fez Maastricht? Não fomos nós. À pergunta: "Quem é cidadão?", Aristóteles dava uma resposta maravilhosa: "É cidadão aquele que é capaz de governar e ser governado". Não há quarenta milhões de cidadãos em França, neste momento? Porque não seriam capazes de se governar? Porque toda a vida política visa precisamente desensinar-lhes o que é governar. Visa convencê-los de que há especialistas aos quais os seus assuntos devem ser confiados. Quer dizer, que existe, portanto, uma contra-educação política. Em vez de se habituarem a exercer toda a espécie de responsabilidades e a tomar iniciativas, as pessoas habituam-se a seguir opções que outros lhes apresentam ou a votar por elas (…) numa espécie de apatia política.
Na mesma ordem de ideias, uma república democrática exclui a existência de qualquer coisa como um "chefe de Estado". Pode, para certos efeitos — fundamentalmente simbólicos e estritamente limitados —, designar um "Presidente da República". Mas não há qualquer razão para que este seja eleito, de preferência a tirado à sorte. A eleição de chefes e dirigentes é, por um lado, um princípio mais oligárquico do que democrático, e o facto de adoptar a votação como procedimento, não deveria levar-nos a confundi-la com a votação como modo de tomada de decisões ou adopção de medidas políticas. Em suma, uma intervenção democraticamente alternativa nas eleições presidenciais que aí vêm deveria preocupar-se menos com assegurar a vitória deste ou aquele candidato à chefia do Estado como empreender, no teatro eleitoral e contra ele, a crítica radical desse "órgão de soberania" e do conjunto da arquitectura da ordem instituída, oligárquica e classista, da qual a "chefia do Estado" faz parte. O que acima fica limita-se a sugerir alguns temas — desprofissionalização igualitária da política, tiragem à sorte versus eleição, universalização do exercício governante versus representação e direcção oligárquicas, etc. — de uma campanha que valeria a pena fazer.
28/08/10
Eleição ou Tiragem à sorte? A propósito das próximas eleições presidenciais
por
Miguel Serras Pereira
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4 comentários:
MSP: Mais uma belo texto que implica a nossa tomada de posição. O artigo- " O pensamento Político "- que vem no I. vol sobre a Grécia - Criação Humana(2) - aprofunda a crítica filosofica interna da Autonomia e auto-instituição, flectindo também para textos essenciais da Hannah Arendt , J-P.Vernant/Vidal-Naquet,os Escritos Políticos de Rousseau e um texto nuclear do "Conteúdo do Socialismo".É toda uma visão estrutural concreta,apologética e revolucionária que entusiasma e nos faz sonhar acordados. " A autonomia não é simplesmente um projecto, é uma possibilidade efectiva do ser humano. Não podemos decretar o seu surgimento ou o seu apagamento, temos que trabalhar para que ela se constitua ". Salut! Niet
Claro que estou de acordo com o Castoriadis, com o MSP, e muito, muito, muito de acordo com a última frase do Niet:" ... temos que trabalhar para que ela se constitua."
nelson anjos
Nelson Anjos: Como é sempre estimulante receber o retorno crítico da mensagem que pensamos emitir para colaborar e partilhar, tão só! No entanto, meu caro, o projecto da frase é também do Castoriadis, como lá está com as devidas aspas! Salut! Niet
... o seu a seu dono! - não tinha reparado nas aspas.
nelson anjos
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