29/08/10

A realidade segue dentro de momentos


Empenhado noutros afazeres e com pouca disponibilidade para seguir atentamente os argumentos esgrimidos de forma persistente ao longo dos últimos dias, quero apenas partilhar aqui a minha estupefacção pelo vigor imprimido a esta polémica. Eu estava, à hora a que decorreu a concentração, a comer lagostins e a beber Bordéus (juro) em casa de gente amiga, vingando-me em tão fidalgo repasto da condição proletária que  me calhou em sorte. Mas se soubesse que a vida de uma mulher no Irão  (ou a possibilidade de uma invasão/ataque militar àquele país) dependia apenas e exclusivamente da minha presença no Largo Camões, seguramente não teria faltado. 
Simplesmente, e não consigo deixar de me espantar por ter de o relembrar, o apedrejamento não foi convocado para aquela praça nem consta que a dita senhora (ou a próxima a quem calhar semelhante destino na rifa) esteja detida nas imediações. Se assim fosse, nenhum esforço seria demasiado para a libertar (o que é um pouco diferente de exigir a sua libertação). Como assim não é, houve em tudo isto qualquer coisa de "banco alimentar contra a fome" e "dê uma moeda contra o cancro" que o meu cinismo não autoriza. Mas se o convívio de tantos e tão distintos e distintas democratas serviu para lhes tranquilizar as consciências, então estou certo de que a iniciativa cumpriu plenamente com os seus propósitos. Que estão para a fortuna de Sakineh como a caridade cristã para o estômago dos pobres. A uma distância suficientemente confortável para que nada disto tenha demasiada importância.

7 comentários:

Luis Rainha disse...

OK. Da próxima manif contra as malfeitorias dos EUA ou de Israel no Médio Oriente, é melhor ficarmos todos em casa. Afinal, nada se passa de relevante para palestinianos, afegãos ou iraquianos em Lisboa...

Miguel Serras Pereira disse...

Grande Camarada Ricardo,
no melhor pano cai a nódoa e ou eu me engano muito, ou aqui falhaste completamente o alvo.
Devemos, então, limitarmo-nos às campanhas locais?
Devemos, então, ficar calados e em casa se os sindicatos locais convocarem uma manifestação contra as condições de precariedade laboral e social - para não falar da repressão policial e concentracionária - imposta pelas autoridades da RPC aos seus súbditos?
Devemos abster-nos de todas as atitudes de protesto ou luta que não tenham alvos ao pé da porta ou que não disponham, à partida e desde o primeiro momento, da força necessária para impor as suas exigências, ainda que isso contribua para diminuir as probabilidades de virem a ter essa força?
Julgo saber - por partilhar contigo uma concepção da democracia que exclui efectivamente a distinção hierárquica - o que te irrita nisto: as tentativas locais de apropriação da campanha por um punhado de mediatocratas que aspiram ao monopólio da verdade e do poder de disciplinar os espíritos dos outros e a projecção que esse núcleo conseguiu garantir-se em certos momentos e espaços, apresentando-se como vanguarda fora de cuja direcção só haverá trevas e ranger de dentes. Mas julgo saber também que abandonar-lhe o terreno só contribui, no plano local, para reforçar a sua claque classista e as suas cliques censórias (da ortografia do Miguel Madeira, da terminologia de um improviso militante do Sérgio, de quem quer que seja que se mexa ou fale sem ter em conta a direcção histórico-linguística correcta) - ao mesmo tempo que, para ao nível global, garantir a impunidade da lei da lapidação e outras não menos ameaçadoras.
Quanto, por fim, à selectividade do alvo - trata-se de um traço inevitável de qualquer campanha. A única saída é multiplicá-las e não renunciar a empreendê-las argumentando que são unilaterais: denunciarmos o governo de Israel não deve fazer as vezes de sermos solidários ao lado dos precarizados chineses; denunciarmos o regime iraniano não deve fimpedir-nos de fazermos o mesmo frente ao da Arábia Saudita ou perante o governo francês. Mas dizer que aquilo que podemos fazer é tão pouco que mais vale não fazermos nada, estabelecer uma fronteira estanque entre "libertar efectivamente" e "exigir a libertação", enfim, não me parece razoável.

Um abraço para ti

miguel sp

Zé Neves disse...

ricardo,

também acho que não tens razão. o tom insuportavelmente controleiro de quem faz posts a acusar presenças e ausências deve ser gozado e é motivo para rir e chorar. nisto, estamos de acordo. agora isso não tem relação necessária com o motivo do protesto e a sua pertinência.

abç

James disse...

:)

Vcs. não me levem a mal, mas envelheci.

Continuo igual ao que era, mas perdi a paciência para andar a calcorrear as ruas e depois tudo ficar na mesma.

Não sei bem como se haviam de faxer as coisas, mas tenho ideia que "passeatas" não funka.

Entretanto Ricardo N. parabéns pela escolha da imagem que encima a sua "propriedade", fantástica...

:)

nunocastro disse...

mas quem é que come lagostins e Bordéus? chiça que há gente com sorte...

Ricardo Noronha disse...

Não me passaria pela cabeça dramatizar a presença ou não numa manif em frente à embaixada de israel colocando-a nestes termos: se não estiveste lá és de alguma maneira cúmplice com o que se está a passar.
Limito-me a constatar que a realização de iniciativas como esta tem mais a ver com a sensibilidade de quem nelas participa do que com a situação que se propõem combater. E isso não tem mal nenhum, simplesmente parece que a dada altura alguém (gente a mais, para dizer a verdade) o esqueceu. Se a justeza de cada causa tornasse incontornável a mobilização de rua em torno dela, não faríamos outra coisa senão andar de manifestação em manifestação.
E é tudo. O resto não entra neste post.

Miguel Serras Pereira disse...

Insigne Camarada Ricardo,
eu bem disse que julgava saber o que te irritava nesta história…

Abraço para ti

miguel sp