27/08/10

Terão as utopias prazo de validade?

O Nuno Ramos de Almeida deixou-nos uma excelente reflexão sobre a presença viva e inspiradora das utopias (enquanto lugar não realizável), por oposição à preferência por mudanças incrementais, dentro do horizonte de acontecimentos que são as fronteiras do capitalismo, para lá das quais nada nunca existirá. Temos assim que a «utopia irreal se demonstrou muito mais interessante do que eles achavam», pois «ao caminho dessa alternativa passa mais pela construção de uma ideia da possibilidade de uma ruptura global do que de um conjunto de pequenas reformas ou “utopias possíveis”. Um dos principais passos no sentido de uma emancipação global é recusar os limites do pensável que a ideologia do capitalismo nos impõe.»
Concordo e aplaudo, em termos gerais. Pode o socialismo soviético ter redundado naquilo que se sabe; mas o anúncio da irrupção no plano imaginável de um inimaginável (para acomodar o bom Žižek) actuante e afinal bem real acabou por ter reflexos positivos nas vidas de biliões: do fortalecimento do sindicalismo à descolonização, nunca o pacato mundo capitalista voltou ao que era.
No entanto, tudo isto dá-me vontade de lançar ao Nuno duas ou três provocações:
1- Não sei bem até que ponto é que existirá mesmo uma «ideologia do capitalismo», ou antes uma difusa nuvem de concordâncias e subserviências espalhadas pelo mundo como um continente subterrâneo onde assentam as fundações do “bom-senso” e do “bem-pensar” contemporâneo. Um ambiente discursivo/político/económico que nos enreda numa subtil, mas nunca brutal nem explícita, rede de enquadramentos, prescrições, regulamentos, vigilâncias. Sem que o seu reconhecimento e a anuência que lhes votamos sejam nunca admitidos de outra forma que não a tácita; a eficácia de tais sistemas depende mesmo, e já o sabia Foucault, da forma sub-reptícia e camuflada com que se impõe. E qual a razão por detrás desta vontade de dominar o discurso? Simplesmente porque ele se articula ao longo de significativas dimensões de poder. Capitalismo, uno e indivisível? Ná. Pouco há de comum, sem sairmos da blogosfera nem dos Joões, entre um Miranda e um Rodrigues; mas ambos parecem satisfeitos em operar dentro do tal horizonte de acontecimentos, parecendo até o liberal Miranda bastante mais revolucionário e disposto a aceitar uma mudança de paradigma mais ampla.
2- A opção pelos retoques à infra-estrutura e organização capitalistas não tem tido resultados sempre abomináveis. O capitalismo não se manifesta como uma hidra de cabeças igualmente hediondas e esfaimadas. Da Finlândia a New Orleans, vai um mundo de diferenças, políticas e resultados. Para os cidadãos, em termos do que realmente importa – a liberdade e a busca da felicidade – não há um capitalismo. Há um continuum de sociedades diversas e diferentemente hospitaleiras ao Homem.
3- Quando o Nuno menciona o que um «verdadeiro partido socialista» deve propor, não estará ainda a confiar a sua cidadania ao domínio marcado pelos antigos e omnipresentes «alfa e omega»? Não faz a própria utopia socialista já parte desse universo inescapável de onde cada vez mais indivíduos e colectivos desistem de procurar saídas? Não estará na hora de começarmos a perscrutar novos horizontes, estejam eles onde estiverem? Se queremos mesmo evitar as catástrofes para onde o actual modelo dominante nos está a empurrar, será mesmo boa ideia confiar no seu doppelgänger antitético e igualmente insatisfatório?

4 comentários:

osátiro disse...

Essa de afirmar que o marxismo (em termos largos...) deu algo de bom às sociedades está muito longe da prova e da realidade. Ideologia que criou alguns dos piores monstros do sec XX ter algo de "aproveitável" dava vontade de rir se não fossem os mais de cem milhões de vítimas em todo o Mundo. Sendo ideologias totalitárias, policiais e intolerantes não têm capacidade intelectual para perceber contributos mais importantes para o desenvolvimento da Humanidade. Como a Doutrina Social da Igreja, por ex. A descolonização (excepto a portuguesa, que provocou dezenas de milhar de vítimas inocentes...) foi obra de políticos que eram o oposto do marxismo. Pelo contrário, os Partidos Comunistas Chinês e Vietnamita exploram de modo selvagem os trabalhadores, o marxismo em Angola e Cuba só criou miséria em contraste com o luxo da classe dominante, idem no Laos, a Coreia do Norte é o maior campo de concentração do Mundo...Portanto, a herança do marxismo é só podridão, miséria e matanças...

Justiniano disse...

Rainha, bom texto!!

Nuno Ramos de Almeida disse...

A minha fotografia dos carochas é mt mais gira do que a tua. Respostas ao teu texto só para a semana. Até segunda não tenho tempo nem para me coçar.

Luis Rainha disse...

Sátiro,
Presumo que nem valha a pena apontar-lhe os milhões que por certo foram vítimas das várias desgraças do capitalismo, pois não?
Quanto a isso da descolonização, explique-me então porque é que ela se tornou premente, se não pela acção de infindos movimentos de libertação, grandemente inspirados e apoiados por... exacto.
Já que estamos a cotejar aa obras do capitalismo e do socialismo, conte lá os lindos "paraísos", do Congo Belga à miséria endémica da América Latina, passando por um sem-fim de histórias de opressão, exploração e morte, que jazem na história do "seu" lado...
Para fechar, só dois pormenores: em Cuba não se vislumbra, por mais que tente, o tal luxo da classe dominante (nem a oposição denuncia essa invenção); e é "dezenas de milhares".