24/10/10

Quando os senhores Puntilas diluem os rostos em papeis de acções, como bem podia ser em aguardente



Neste tempo de redesenho social à vista em que o clássico parece gasto, nem todo o Brecht ajudará à missa a inventar, mas, seguramente, este “O Senhor Puntila …” (*) não só resiste ao questionar brutal dos estereótipos como é ponte para a reinvenção, seja ela qual vier a ser, da luta de classes. Em primeiro lugar, porque a bipolaridade do homem da propriedade (no caso, pelo álcool, mas podia bem ter sido utilizado um outro pretexto), uma abstracção em tempos em que o capitalismo perdeu os rostos, corta as vazas às simplificações dogmáticas e sectárias de uma banda só e prefere a magia do delírio. Depois, porque nos alerta e instrui sobre o quão difícil, mas possível, é não perder o sentido de orientação sobre enganos e encomendas, em que a batuta tem uma mão e “não é possível misturar o azeite e o vinagre”. Pois não, mesmo na aparência do hedonismo mais desbragado.

Como se não bastassem a oportunidade desta reposição de uma das mais legíveis, divertidas e um eficaz convite à cumplicidade (coisa rara com Brecht, o homem da distanciação feita teatro) no prazer da descoberta da fábula sobre a exploração entre as peças de Brecht, sendo assim uma das peças do universo brechtiano que melhor resiste ao tempo, ela, nesta encenação, está entregue ao maior especialista português na representação de Brecht (João Lourenço). Que faz aqui o que é costume nele – trabalho asseado, suado e inspirado. Com um Senhor Puntila “de encomenda” (e faltando-nos Mário Viegas, dificilmente se poderia pensar noutro), o Miguel Guilherme. A não perder, pois, um salto ao Teatro Aberto, Sala Azul.

(*) “O Senhor Puntila e o seu Criado Matti”, Bertolt Brecht (com dramaturgia de Vera San Payo de Lemos), Teatro Aberto (Praça de Espanha, Lisboa), com Miguel Guilherme à frente de um elenco homogéneo e de muito aceitável performance, incluindo um excelente e interventivo trio musical.

(publicado também aqui)

0 comentários: