20/10/10

Noite e dois nevoeiros


Ainda hipnotizado por este livro,  resolvi há dias encenar um pequeno ciclo doméstico de cinema centrado no Holocausto. Assim, comecei por mostrar aos meus filhos mais velhos o documentário Nuit et Brouillard, de Alain Resnais. Depois, para aligeirar um pouco a pastilha, seguiu-se Escape from Sobibor, um telefilme de 87 com Rutger Hauer, objecto surpreendentemente bem fabricado.
Então, aconteceu o inesperado: dei por mim a embirrar um pouco com a obra de Resnais, Jean Cayrol e Hanns Eisler – que já vira duas ou três vezes sem engulhos. Não pela bizarra ocultação do gendarme que é mostrado junto ao campo de Pithiviers; durante mais de 40 anos, o filme foi sendo distribuído com esta cicatriz censória (podem vê-la aos 4’28” desta versão), mas a cópia que tenho em casa está conforme ao original. O meu desgosto tinha mais a ver com o silêncio que ouvia cair sobre a identidade dos prisioneiros que nos davam ali a ver a sua agonia, a sua morte – o conhecido facto de a palavra “judeu” apenas ser pronunciada uma vez.
E recordei-me da reacção de Primo Levi quando os gulags começaram a ser conhecidos no Ocidente e suscitaram a tentação do símile com os lager nazis. A «lúgubre comparação entre dois modelos de inferno» tendia a ignorar as especificidades do Holocausto – começando pela sua eficiência letal –, no que ele tem de mais central: pessoas como os judeus, os ciganos ou os homossexuais não foram eliminadas em nome do domínio de uma ideologia ou de uma religião. Os judeus, sendo considerados uma raça, não dispunham de qualquer saída: nem a abjuração, nem a confissão, nem sequer a traição. Tanto merecia morrer um agitador como uma criança. Enquanto que o gulag desejava afastar oponentes e quebrar resistências, o lager só se contentaria com o extermínio total, o mais rápido possível. Desfocar os sinais distintivos do horror dos campos quase equivale a aceitar a sua normalidade; diferir para a ambígua categoria de «deportados» os seus mártires soa a esforço para aceitar como compreensíveis tais destinos.

Mas, por outro lado, naufragar nestes escolhos da obra de Resnais é esquecer o nevoeiro da História. Em 1956, a narrativa da Shoah ainda estava em construção – aliás, Noite e Nevoeiro veio a ter nessa edificação um papel importante, tal como muitos outros filmes, do excelente Le Chagrin et la Pitié, de Marcel Ophüls (agora no doclisboa), ao spilberguiano Schindler’s List e centenas de obras nos mais diversos registos e media. Se o foco do documentário é sempre «os deportados» (ignorando ostensivamente as diferenças entre os campos do Ocidente e os de Leste) tal não se deve a uma vontade de ocultar a liquidação pacientemente programada de milhões de judeus; mas sim ao facto de o Holocausto ainda não existir à data como parte fundadora (e quase em exclusivo) da história judaica. Aliás, o próprio título do documentário era uma alusão à directiva nazi Nacht und Nebel, apontada a ameaças à segurança do Reich, não a etnias.
E assim surpreendemos, a posteriori, o processo de criação da História, com os factos que lhe deram origem ainda bem frescos na memória e na pele de muitos: em 1956 o Holocausto era um crime contra a Humanidade; hoje, é um crime perpetrado contra os judeus (com os ciganos e os homossexuais a conquistar uma ou outra presença de rodapé). Afinal, o eclipse que me ofendia não passa de um efeito de paralaxe.
De qualquer forma, percebe-se porque é que a visão desta obra continua a ser imposta às crianças das escolas francesas, apesar da quase insuportável dureza de muitas das suas imagens. Hoje ainda, importa contrariar o adágio vital que um prisioneiro gravou no fundo da sua marmita, durante o pesadelo de Levi: «Ne pas chercher à comprendre».

24 comentários:

Anónimo disse...

Luís,

Aconselho-te uma visita ao Yad Vashem. Os gays, doentes mentais, ciganos e outros (Polacos, Eslavos etc) também são contemplados.

Google: Yad Vashem + Gypsies + mental patients etc

Não te esqueças do seguinte: todos estes grupos foram vitimas da agressão nazi mas apenas os judeus foram (publicamente, oficialmente) descritos como inimigos do Reich. O judeu ocupa um lugar "privilegiado" na ideologia nazi, como sabes.

Luis Rainha disse...

Não te contrario. A não ser no que diz respeito aos "inimigos do Reich": se leres a directiva Nacht und Nebel, que esteve na génese até do título deste documentário, verás que se refere a culpados de "ofensas contra o Reich" e contra as tropas de ocupação. Isto englobaria os judeus mas ia muito além.

Luis Rainha disse...

E olha que o remoque acerca da relativa invisibilidade dos homossexuais não surge do nada. Ainda há uns anos, havia rabis que se insurgiam contra as menções a tal gente do museu do Holocausto. Com ameaças de boicote e tudo:

http://www.jweekly.com/article/full/5259/rabbis-attack-gay-inclusion-in-shoah-museum/

Ana Cristina Leonardo disse...

«Existe, com efeito, uma confusão antiga, amiúde fruto da ignorância, ou talvez de um pensamento equívoco ou malévolo, entre a deportação de inimigos do nazismo – alemães anti-hitlerianos, resistentes europeus –e o extermínio de judeus e ciganos. Os primeiros foram detidos e deportados pelos seus actos, quaisquer que fossem as suas origens sociais ou a sua religião. Os segundos são exterminados por serem o que são, mesmo que nunca tenham cometido um acto ou um mero gesto de oposição ao regime. A diferença, mesmo que o número de mortos resistentes fosse comparável ao dos judeus exterminados – e não o é, de forma alguma –, não é uma diferença quantitativa: é ontológica.»
Jorge Semprún, comunista, escritor e hóspede do Campo de Buchenwald

http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2008/02/isto-foi-o-que-eu-vi-em-auschwitz.html

joão viegas disse...

Caro Luis Rainha,

Surpreende-me a ignorância subjacente a esse texto. Não digo que não haja por vezes derrapagens lamentaveis em torno da questão de Israel.

Mas convém voltar ao basico :

Desde o fim da guerra (veja por exemplo a DUDH de 1948 que acrescenta a palavra "dignidade" às declarações anteriores e, nomeadamente, à de 1789), e portanto muito antes de 1956, ou de hoje, o que se considera crime é o crime perpetrado contra o homem reduzido ao judeu (ao cigano, ao comunista, ao homosexual) e instrumentalizado enquanto tal.

Ou seja, o que se considera crime é a negação da IGUALDADE, é o facto de se não considerar alguns homens, porque são judeus (ciganos, homosexuais, comunistas), como merecedores de um tratamento de igual para igual.

Isto não veio com o tempo, não mudou com o tempo, e muito menos se perverteu com o tempo.

O crime contra a humunidade e o crime contra o judeu são as duas faces da mesma moeda : redução da humanidade do homem judeu a um dos seus atributos.

Depois ha a historia, a evolução da nossa percepção da gravidade dos factos, o conhecimento documentado do que eram esses factos, etc.Não digo que não. Existe uma historia da historia do holocausto, todos nos sabemos isso.

Mas a base é a base.

Você não pode errar na base (que eu não deixo).

Abraço

Luis Rainha disse...

Ana,
É precisamente essa confusão entre os campos de oeste e de leste que está na raiz da elisão aparente dos judeus neste filme. Não sei se tal é "malévolo"; parece-me mais coisa do air du temps e de insuficiente maturação da narrativa da Shoah.
Mas belo post, o teu.

Anónimo disse...

Luís, o que interessa aqui, verdadeiramente, é que os gays, os ciganos, os comunistas etc não foram esquecidos ou negligenciados pelo Yad Vashem e asociedade/estado Israelita apesar das objecções dos radicais religiosos.

A bem da verdade, os nazis odiavam todos os não-arianos. (respeitavam os brits por terem constituído um império e por descenderem, em parte, dos saxões germânicos)

Além disso, como poderás ler no artigo que mencionas:

"The boycott threat (dos radicais anti-gay), however, has sparked reproach from more mainstream Orthodox rabbis nationally and in the Bay Area.

Luis Rainha disse...

Ninguém aqui sugeriu que esteja em prática uma qualquer operação de apagamento dos homossexuais e dos ciganos do retrato da Shoah. , muito menos por parte de Israel ou de qualquer autoridade.
Mas que o seu extermínio nos Campos é desconhecido da maioria dos cidadãos de hoje, isso parece-me evidente.
Por outro lado, os nazis até consideravam os ciganos como um povo ariano, tendo inventado uma teoria de bastardização da etnia para justificar o seu extermínio.

Luis Rainha disse...

João,
Não consigo ver a relação entre isso e o filme aqui em apreço.
E espero que não esteja a sugerir, por exemplo, que o racismo, o sexismo e o Holocausto, descendendo da mesma matriz de denegação da igualdade, sejam atrocidades do mesmo jaez.

Anónimo disse...

Eu não sugeri ou argumentei tal coisa (que pretendesses apagar seja o que for).

Quanto ao resto (o desconhecimento da maioria dos cidadãos das atrocidades cometidas contra gays, ciganos etc) é verdade (no nosso país). Em Israel isto é sobejamente conhecido. Nos EUA e Canadá, por exemplo, os profs do secundário de história incluem os gays, ciganos na narrativa da Shoah...

Na França e na Alemanha também.

Mas no que diz respeito a Portugal, parece-me que tens razão.

joão viegas disse...

Caro Luis,

O meu comentario reagia à frase : "em 1956 o Holocausto era um crime contra a Humanidade; hoje, é um crime perpetrado contra os judeus (com os ciganos e os homossexuais a conquistar uma ou outra presença de rodapé)".

Isto esta errado. Em 1956 (e ja em 1948) o Holocausto era considerado um crime contra a humanidade PORQUE era um crime contra judeus (e ciganos, e homosexuais, etc.), porque era um grave atentado à dignidade da pessoa humana, que por sua vez radica num atentado à igualdade.

A esse respeito, não houve, e ainda bem, nenhuma evolução substancial entre 1948, 1956 e hoje.

O Holocausto é, como o sexismo e o racismo, um atentado à dignidade, embora, como é obvio, permaneça um exemplo quase unico, ou pelo menos excepcional, quanto ao grau de atrocidade que atingiu.

Parece-me artificial e profundamente errada a leitura que você faz do filme, como se em 1956 as pessoas estivessem realmente convencidas que o motivo da deportação fosse secundario, ou se o ignorassem. Não ignoravam, nem consideravam secundario.

O filme de Resnais não foi uma espécie de "manifesto contra a pena de deportação considerada enquanto tal como atentatoria da dignidade", assim como poderiamos imaginar, hoje em dia, um documentario contra apena de morte.

Ja na altura, as pessoas estavam conscientes de que o Holocausto era o exterminio de populações (principalmente os judeus, mas não so) por pertencerem, alegadamente, a uma raça, ou por se reduzirem a um dos seus atributos.

E' isso também, alias, que diz o texto de Primo Levi.

Perbebo o que você quer dizer, e aceito a ideia que a percepção do Holocausto, na sua dimensão, nas suas consequência, etc, tenha evoluido.

Mas não me parece legitimo afirmar-se que o Holocausto era considerado (em 1956) como um crime contra a humanidade enquanto é (hoje) considerado sobretudo como um crime contra os judeus.

São as duas faces da mesma realidade.

Senão fosse assim, a DUDH não teria sido escrita da mesma forma...

Luis Rainha disse...

Essa frase não é um juízo de facto meu sobre uma suposta evolução do enquadramento jurídico do Holocausto; apenas um aparte irónico. Mas permito-me continuar a afrmar que não está errado – e o filme de Resnais prova-o amplamente: isto porque não coloca em evidência o carácter de perseguição étnica subjacente ao labor dos Campos.
Aliás, a London Charter of the International Military Tribunal, que deu origem e poderes ao Tribunal de Nuremberga, primeira instância legal onde a figura dos “crimes contra a Humanidade” foi usada, definiu-os de forma muito clara e que nada tem a ver com a sua acepção dessa expressão: «Murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war, or persecutions on political, racial or religious grounds in execution of or in connection with any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated».
Ou seja: esse entendimento era mais amplo e geral. Como o documentário em apreço. Hoje, o entendimento vigente da Shoah é muito, muito mais focado no aspecto de perseguição étnica. Ninguém hoje faria um documentário sobre tal tema mencionando apenas uma vez a palavra “judeu”. E olhe que esta crítica não fui eu quem a inventou.
A minha leitura do filme nada diz sobre aquilo de que as pessoas (mas que entidade será essa?) estavam ou não convencidas. O facto é que a motivação racial dos Campos é secundarizada neste documentário. Facto. Quem veja o filme sem saber da Shoah, ficará com uma ideia de massacres só remotamente motivados pelo ódio racial. Trata-se de um libelo contra uma monstruosidade quase impensável; mas não a tipifica com a clareza que hoje seria exigida.

Volto ao Tribunal de Nuremberga: para este órgão, estaríamos na presença de um crime contra a Humanidade face a perseguições políticas ou raciais. Isto é um ponto de vista oposto àquele que você tem como dominante na época.

joão viegas disse...

Caro Luis,

Compreendo o que você quer dizer, e reconheço que não é unico a fazê-lo, mas discordo.

Esse discurso assenta no pressuposto (desmentido pelas definições juridicas, mesmo as mais recentes, do crime contra a humanidade) de que haveria uma espécie de "hierarquia" entre tais crimes e que a tonica "etnica" seria uma agravante, ou um factor determinante do ponto de vista analitico.

Isto não é assim : mesmo nas definições recentes, tanto quanto sei (bom, não tenho seguido passo a passo a abundante literatura que se produz a esse respeito, mas enfim), um crime contra a humanidade continua a ser, como em Nuremberga, uma negação da igualdade entre os homens, ou seja um atentado à dignidade.

A questão da "diferença" entre o Holocausto e outros crimes contra a humanidade é historica e diz respeito à amplitude, às consequências, e ao que você quiser, mas não põe em causa a essência do que se condena, nem a razão da condenação.

Acho que estamos a misturar duas coisas que não se podem pôr no mesmo plano : o repudio pelo Holocausto aplica-se tanto à qualificação do facto de um ponto de vista moral e juridico, como à sua amplitude ou à sua gravidade.

Na frase do seu post que citei, poderiamos ler que o que nos parece hoje mais grave no crime Holocausto, é o facto de ter sido dirigido contra judeus. Isso não me parece corresponder à verdade.

E' natural que, conhecendo hoje melhor do que em 1956 a historia do Holocausto, o repudiemos também em razão das dimensões que assumiu e, claro, que sejamos sensiveis ao facto de um crime contra a humanidade com essas proporções ter sido cometido por motivos racistas, ou antisemitas. Isto afecta muito provavelmente a nossa compreensão das coisas e explica (juntamente com a permanência de algumas das causas do antisemitismo) que de alguma forma "privilegiemos" hoje esses aspectos.

Mas não afecta em nada a definição do crime.

E para ser completo, embora não seja historiador, tenho as mais sérias duvidas que se possa afirmar que o facto de se dirigir contra judeus enquanto judeus fosse desconhecido do publico em 1956.

Dito de outra forma, o que me choca na sua frase é que ela parece implicar :

1/ que o facto do holocausto ter vitimado judeus por serem judeus era secundario para o publico (ou para o realizador do filme) em 1956

2/ que para nos, hoje em dia, é mais grave o crime contra a humnidade perpetrado contra judeus (ou contra membros de uma etnia por pertencerem a essa etnia) do que noutros casos(*)

Ambas as afirmações parecem-me injustificaveis.

Abraço, e desculpe se não foi isso que você queria dizer.

(*) = Ha uma dificuldade quando transpomos para caracteristicas como a ideologia politica, porque a identificação dadita caracteristica é mais dificil, mas de um ponto de vista analitico, isso é negligenciavel : o nosso repudio seria o mesmo se um Estado totalitario decidisse exterminar as pessoas que têm ou alguma vez tiveram ideias comunistas, pretendendo saber como identificar essas pessoas (por processos tão arbitrarios como era, alias, a identificação dos judeus).

Luis Rainha disse...

João,

Quanto a questões de hierarquia, a noção é discutível e pessoal; mas assumo-a. Tal como o P. Levi, acredito que a “agravante” de se condenar alguém ao extermínio pela sua origem étnica existe mesmo; nem que apenas por tal dar origem a condenações sem apelo: quem consegue mudar de etnia, descircuncisar-se, mudar a sua origem ou cor de pele?
Para mim, como escrevi, o lager representa um abismo moral mais fundo do que o do gulag. Independentemente de escalas ou números envolvidos. Condenar alguém à morte por roubo ou por delito ideológico é infame; mas condenar essa mesma pessoa por ser ruiva, preta, amarela ou judia parece-me coisa bem mais abjecta. A culpa ou arrependimento ou vontade de abjurar do condenado de nada valem. Não há remissão, não há fuga a essa “justiça”. Até no Portugal da Inquisição muitos puderam salvar-se como cristãos novos. Até nos gulags os traidores podiam ser poupados.
Mais: o objectivo primeiro era a liquidação física de pessoas, claro. Mas o alvo último era a aniquilação de uma cultura, de uma história de todo o património de um povo. Isto é um crime por si mesmo, a acrescentar à ingomínia dos asassinatos em massa.
Tudo isto, para mim – repito – modula e muito a definição do crime.
Por outro lado, não escrevi que o público desconhecesse o verdadeiro âmbito do Holocausto; apenas que o filme em questão minimiza a sua vertente ligada ao ódio racial. Mas não me custa a crer que tão perto dos acontecimentos, e com milhões de histórias de deportações, de prisioneiros de guerra, etc, a cruzar o espaço público e a esfera íntima de tantas famílias europeias, a confusão fosse fácil e abundante.

Respondendo aos seus pontos:
1/ o facto do Holocausto ter vitimado judeus por serem judeus foi apresentado de modo secundário no filme, em 1956. Isto é evidente: nunca no texto tal é enunciado ou sequer insinuado.
2/ o meu ponto de vista continua a ser esse. E, mais uma vez, o de P. Levi andava lá perto:
«La principale differenza consiste nella finalità. I Lager tedeschi costituiscono qualcosa di unico nella pur sanguinosa storia dell'umanità: all'antico scopo di eliminare o terrificare gli avversari politici, affiancavano uno scopo moderno e mostruoso, quello di cancellare dal mondo interi popoli e culture.»

Luis Rainha disse...

João,

Quanto a questões de hierarquia, a noção é discutível e pessoal; mas assumo-a. Tal como o P. Levi, acredito que a “agravante” de se condenar alguém ao extermínio pela sua origem étnica existe mesmo; nem que apenas por tal dar origem a condenações sem apelo: quem consegue mudar de etnia, descircuncisar-se, mudar a sua origem ou cor de pele?
Para mim, como escrevi, o lager representa um abismo moral mais fundo do que o do gulag. Independentemente de escalas ou números envolvidos. Condenar alguém à morte por roubo ou por delito ideológico é infame; mas condenar essa mesma pessoa por ser ruiva, preta, amarela ou judia parece-me coisa bem mais abjecta. A culpa ou arrependimento ou vontade de abjurar do condenado de nada valem. Não há remissão, não há fuga a essa “justiça”. Até no Portugal da Inquisição muitos puderam salvar-se como cristãos novos. Até nos gulags os traidores podiam ser poupados.
Mais: o objectivo primeiro era a liquidação física de pessoas, claro. Mas o alvo último era a aniquilação de uma cultura, de uma história de todo o património de um povo. Isto é um crime por si mesmo, a acrescentar à ingomínia dos asassinatos em massa.
Tudo isto, para mim – repito – modula e muito a definição do crime.
Por outro lado, não escrevi que o público desconhecesse o verdadeiro âmbito do Holocausto; apenas que o filme em questão minimiza a sua vertente ligada ao ódio racial. Mas não me custa a crer que tão perto dos acontecimentos, e com milhões de histórias de deportações, de prisioneiros de guerra, etc, a cruzar o espaço público e a esfera íntima de tantas famílias europeias, a confusão fosse fácil e abundante.

Respondendo aos seus pontos:
1/ o facto do Holocausto ter vitimado judeus por serem judeus foi apresentado de modo secundário no filme, em 1956. Isto é evidente: nunca no texto tal é enunciado ou sequer insinuado.
2/ o meu ponto de vista continua a ser esse. E, mais uma vez, o de P. Levi andava lá perto:
«La principale differenza consiste nella finalità. I Lager tedeschi costituiscono qualcosa di unico nella pur sanguinosa storia dell'umanità: all'antico scopo di eliminare o terrificare gli avversari politici, affiancavano uno scopo moderno e mostruoso, quello di cancellare dal mondo interi popoli e culture.»

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Luis e João Viegas,

creio que a vossa discussão não põe em causa um acordo fundamental, Apesar do interesse e necessidade de afinar as formulações, o que o JV diz deixa - e muito bem - intacta a validade global da análise do LR.
De um modo geral, também subscrevo a ideia que subjaz ao post, no que se refere à "maturação narrativa" dos acontecimentos.
Há, no entanto, uma nota importante: embora não oficial nem declaradamente - o que constitui uma diferença importante, documentando a homenagem que a hipocrisia presta à virude -, os campos soviéticos também receberam milhões de prisioneiros internados devido, não às suas ideias políticas, mas às suas origens "étnicas" e/ou sociais. É um ponto em que há tempos o Rui Bebiano insistiu nas suas intervenções blogosféricas e que não é contestado por nenhum historiador sério dos campos estalinistas (http://aterceiranoite.org/2009/11/13/rever-e-desculpabilizar-o-gulag/).
A grande diferença entre os campos nazis e estalinistas - além, evidentemente, da ausência na URSS de campos de extermínio de massa directo por meio de execuções colectivas de rotina do tipo das praticadas por meio das câmaras de gás - está no facto de os primeiros, embora também envolvidos em silêncios, admissões tácitas e nevoeiros vários, serem em rigor justificáveis pela ideologia racial hitleriana, ao passo que a realidade dos segundos era, em si própria, incompatível com a sociedade socialista invocada como meta pelo regime soviético.
Com efeito, tocamos aqui um aspecto fundamental da análise contrastada dos dois regimes, que, sendo sugerido por vários autores (Bullock, por exemplo), encontra em Castoriadis a seguinte formulação por assim dizer "definitiva": o totalitarismo "comunista", de facto," está condenado a dizer uma coisa e a fazer o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, invoca a ciência e a verdade e pratica a mentira e o absurdo. É por isso que perde muito rapidamente a sua influência sobre as populações que domina. Mas é também por isso que aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma 'ilusão revolucionária', acreditam de um modo geral que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária. É por isso que um comunista que descobre a monstruosidade do 'comunismo realizado' pode soçobrar psiquicamente, ou tornar-se social-democrata, oiu manter um projecto de transformação social radical desembaraçado do mmessianismo marxista-bolchevique. Um fascista ou um nazi não pode descobrir, nas suas crenças anteriores, nada que o incite a mudá-las" (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva. Entrevistas e Debates, 1974-1997, Lisboa, 90 Graus, 2006, p. 300).

Abrç para ambos

msp

joão viegas disse...

Caros Luis e Miguel,

Apenas uma leve (mas significativa) discrepância em relação ao que vocês escrevem.

O meu ponto é precisamente este : não lemos a mesma coisa no texto de P. Levi.

Quanto a mim, o que o texto de Levi (e o Luis) dizem do Holocausto é verdade de qualquer discriminação entendida enquanto tal. Donde o meu exemplo sobre a discriminação em razão das "ideias". Em rigor, uma pessoa pode tanto fugir à condição de "ter tido ideias comunistas (ou fascistas, ou nazis, não interessa)" como ao facto de ser considerado judeu, ou negro, ou cigano, ou homosexual. O que interessa é que ela é reificada, sendo reduzida a uma caracteristica, verdadeira ou imaginaria, e que os seus direitos de pessoa são negados a partir de ai. Portanto não é tanto o ser judeu, ou preto que é determinante, nem o ser exterminado em razão da pertença a uma etnia. O mesmo problema por-se-ia se um regime decidisse exterminar todos os canhotos, ou os individuos que têm um defeito no pé.

O que vocês dizem, e que faz sentido e que eu aceito, é que as modalidades historicas contam, e é natural que marquem as pessoas. Nesse aspecto, sim, aceito que a nossa noção de crime contra a humanidade permanece marcada pelo exemplo historico extremo do nazismo, e que não conseguimos facilmente asbstrair-nos do facto que perseguiu judeus (embora não apenas judeus). A questão do paralelo com a URSS é mesmo essa : à diferença do nazismo, o totalitarismo estalinista nunca teorizou a discriminação. Na pratica, é verdade que ia dar muitas vezes no mesmo, mas nunca se deportaram pessoas "porque" eram capitalistas, ou "porque" tinham tido ideias capitalistas. O sistema procurou sempre justificar as deportações dizendo que combatia actos, ou atitudes politicas (dai a ideia que, no papel, era possivel uma pessoa "arrepender-se").

No fundo, acho que o Luis devia dizer : somos (hoje mais do que em 1956) sensiveis ao facto de o nazismo ter sido a unica ideologia abertamente e sistematicamente disciminatoria, contra os judeus (e não so). Ou pelo menos de ter sido a unica a levar essa logica doentia às proporções que sabemos.

Mas não me parece legitimo concluir que as caracteristicas historicas do nazismo passaram a moldar a categoria "crime contra a humanidade" e que podemos por isso afirmar que ha crimes contra a humanidade piores do que outros, afirmação que contraria a propria ideia na qual radica a definição do crime "contra a humanidade" (ou seja, a igualdade).

O facto do que o Luis diz sobre o exterminio dos homosexuais pelos nazis não encaixar bem na sua argumentação é sintomatico a esse respeito.

Tanto quanto sei, existe hoje a tentação de estabelecer uma "hierarquia" entre as discriminações, que se inspira em considerações proximas das que expõe o Luis.

Quanto a mim, esta tentação ignora a propria essência da discriminaão : não interessa saber se o critério é real, se a pessoa pode ou não mudar, ou esconder, etc. Basta que o critério seja tido pelo criminoso como suficiente para reificar a pessoa que tem à frente.

Dito de maneira mais simples : as discriminações (inclusive as praticadas pelos nazis) não se apoiam em nenhuma realidade "objectiva" que não seja o preconceito, ou seja o fantasma que existe na cabeça daquele que a pratica.

Logo, a questão da "hierarquia" é uma falsa questão. E é perigosa, porque desvirtua a logica que preside à criminalização da discriminação, ou do crime contra a humanidade, que constitui o seu expoente maximo.

Espero ter sido (um pouco) mais claro.

Abraços.

PS : mas dou o braço a torcer sobre a percepção historica, é obvio que o Holocausto não era encarado em 1956 exactamente como o é hoje.

Luis Rainha disse...

João,

Vamos discordando cada vez menos mas estas paralelas não dão sinais de se quererem encontrar :-)
Francamente, ignoro se é “determinante” se a pertença a uma etnia garante o extermínio. Parece-me relevante, pois elimina a hipótese de cura, confissão, renegação. O “ter tido ideias” não garantia a morte noutros sistemas de massacre – as ideias moldam-se, mudam; ter nascido judeu não.
Reificar algo de que o indivíduo não tem qualquer culpa (ser canhoto, ter defeitos nos pés) não é a mesma coisa do que escolher uma característica que é fruto do livre arbítrio, das escolhas de cada um. Ser-se condenado por características que nunca pudemos mudar é uma injustiça diferente em grau e em irreversibilidade. Não consigo explicar melhor este ponto, receio.
E, a reforçar o carácter excepcional dos extermínios étnicos vem o objectivo confesso de liquidar toda uma cultura, com a sua língua, a sua arte, as suas tradições. Não bastava aos nazis obliterar as pessoas: o seu rasto e a sua herança deveriam desaparecer. Este é mais um crime contra a Humanidade, a meu ver.
Quanto aos crimes contra a humanidade, parece-me evidente, desde a primeira aplicação de tal conceito, em Nuremberga, que nem todos são iguais em escala, gravidade e reiteração. E julgo insofismável que há uns piores do que outros, dependendo do número de vítimas, da intenção, do papel de cada um nos mesmo, etc. Precisamente por isto é que nem todos os dignitários nazis subiram ao cadafalso: uns tinha cometidos crimes piores do que outros.
E esse silogismo que faz equivaler "contra a humanidade" a “ contra a igualdade” não me parece apoiado em nenhuma aplicação concreta desse conceito jurídico que eu tenha encontrado. Publicar anúncios de emprego a pedir candidatos apenas de um género é ilegal, é discriminatório, atenta contra a igualdade, maximiza a importância de uma característica dos indivíduos... mas está a anos-luz de ser um crime contra a Humanidade.
Por outro lado, quando escreves que a questão “dos homosexuais pelos nazis não encaixar bem na sua argumentação”, não entendo: em que é que isso fere o meu argumento, que, repito, é de que o filme de Resnais menorizava o papel dos judeus como alvo central do extermínio nazi? Este ponto permanece insofismável.
Concluindo; mesmo sem isto ter grande coisa a ver com o post, reafirmo: nem todas as discriminações são igualmente abjectas, nem todas têm as mesmas consequências, nem todas são, sequer injustas (alguém que é discriminado por um odor corporal ofensivo pode resolver a questão com um bom banho diário).
Afirmar que basta que o perpetrador tenha em mente um critério discriminatório para que seja de alguma forma equiparável a Himmler, vai desculpar-me mas parece-me absurdo. Eu, por exemplo, nunca gostei de ruivas, nunca me sentia atraído por elas e jamais casaria com uma. Sou culpado de um crime contra a Humanidade? Não; nem todas as discriminações são iguais, nem todas são crimes, quanto mais contra a Humanidade.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros,
sem entrar na análise das vossas divergências, duas notas soltas.
1. A definição de "crime contra a Humanidade" não pode ser fixada, "objectivamente", à margem do que se entenda por "humanidade". Aos olhos de um nazi convicto, o extermínio de uma raça inferior não é um crime contra a humanidade, mas um dever para com esta. O que torna o caso ainda mais grave e o nazismo mais monstruoso, sem dúvida. Mas isso é outra questão.
2. A questão dos campos soviéticos: estes, embora o tenham feito também, estiveram longe de se limitarem a punir adevrsários políticos ou ideológicos, ou qualquer "característica que é fruto do livre arbítrio, das escolhas de cada um": acolheram uma enorme massa de prisioneiros internados em virtude da sua pertença a uma etnia ou "nacionalidade" objecto da política das deportações (na base de outras vertentes da política do terror da mesma cepa, chegram também, na URSS, a existir quotas superiormente fixadas de execuções…). Isto, apesar das diferenças que assinalei no meu comentário anterior, entre os dois sistemas concentracionários.

Abrçs

miguel (sp)

Luis Rainha disse...

Miguel,

Não me parece, embora tenha de investigar mais a coisa, que os judeus fossem perseguidos na URSS explicita e formalmente por motivos étnicos. Para as vítimas, claro que tal não fez diferença alguma; mas hoje isso marca mais uma diferença entre os gulags e o sistema nazi.
Por exemplo, o herói de Sobibor,
Alexander Pechersky, foi preso durante a campanha contra o "cosmopolitismo desenraízado" de Estaline; claro que se tratava de uma acção que tinha os judeus na mira – mas não de modo formal.
Enfim, splitting hairs, como dizem os ingleses.
:-)

joão viegas disse...

Caros,

Quando vos leio, o que eu percebo é que não consegui expressar de maneira clara o meu ponto de vista. Vamos tentar mais uma vez :

1. O Luis não esta a compreender o que eu estou a querer dizer com o exemplo do regime que decide exterminar todos aqueles que "têm ou tiveram ideias x". Ninguém pode mudar a circunstância de "ter tido ideias x" em determinada altura, e de ser considerado por isso como alvo a abater. Nesse aspecto, mudar de ideias não adianta. E' exactamente como ser judeu, qualidade definitiva aos olhos de quem comete o crime contra a humanidade (que é uma forma, a mais grave, de disciminação, de violação do direito fundamental de todos os seres humanos à igualdade em direitos e dignidade). Mas o exemplo dos canhotos é melhor.

2. Eu nunca disse que todos os casos de crimes contra a humanidade são equivalentes. E' evidente que não são. Mas não o são porque assumem na realidade graus diversos. Também ha homicidas mais graves do que outros (na realidade), mas a definição do homicida permanece a mesma. Admitidindo (por hipotese) que ha mais vitimas masculinas de homicidio do que femininas, não passa por isso a ser mais grave o homicida sobre homens do que o homicida sobre mulheres.

3. Também não disse que toda e qualquer discriminação é um crime contra a humanidade. Digo apenas, e é isso que me parece falhar na frase que citei, que um crime contra a humanidade é, por essência, uma discriminação. O crime contra a humanidade é o atentado cometido contra o que existe de mais sagrado no homem, que consiste em ele merecer sempre ser tratado pelos outros homens como um ser igual(la esta a ideia de dignidade, que radica na igualdade).

4. O que me parece errado no que diz o Luis é o seguinte : se admitirmos que existem crimes contra a humanidade qualitativemente diferentes, e hierarquizados, consoante o motivo da discrimnação (etnia, ideias, orientação sexual), estamos a negar completamente o valor fundamental que se pretende proteger. Estamos a admitir que existem traços que "contam mais" do que outros. Estamos a transformar sorrateiramente um "direito" (a igualdade) num "privilégio". Nada justifica essa postura. Não ha estigmas mais ou menos perigosos, ou mais ou menos objectivos, ou mais ou menos repudiaveis. O problema não esta tanto no critério utilizado, mas no proprio conceito de excluir a humanidade da pessoa a partir de um critério, seja ele qual fôr.

5. Compreendo e aceito o que o Luis diz sobre o filme quando se espanta por não haver referências explicitas aos judeus. O que não aceito é a conclusão que ele tira. Penso que o filme, no pos-guerra, procurou pôr a tonica no "isso pode te suceder a ti". Isso não me parece implicar que ignorasse, ou que quizesse ignorar quem eram de facto as vitimas. Nem me parece implicar uma ideia diferente do que a nossa acerca do crime contra a humanidade.

6. Resumindo : em 1948, em 1956 e em 2010, importa perceber que o repudio sobre o holocausto não é acerca de uma coisa que aconteceu "aos judeus". E' sobretudo um repudio vigilante acerca do que pode acontecer ao homem. Não é crime contra uma etnia, ou contra uma religião (esses também existem, isso não esta em causa). E' mesmo crime contra a humanidade.

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Claro, Luís. Se houve períodos marcados por virulência anti-semita na ex-URSS - no período final da ditadura de Estaline, em diversas fases posteriores, etc. - e se o anti-semitismo tem tido nos últimos anos surtos inquietantes em territórios outrora soviéticos, não houve um anti-semitismo oficial, explícito, estatuído como ideologia do regime. Mas os judeus não são a única etnia. E não era neles que pensava quando redigi o segundo ponto do comentário anterior - mas, como diz sinteticamente o Rui Bebiano, no post que ontem citei: "os milhões de indivíduos, cidadãos soviéticos e outros, enviados para os campos ao abrigo dos «povoamentos especiais», o eufemismo utilizado para referir as deslocações colectivas forçadas, bem como um grande volume de prisioneiros sem culpa formada e não registados", etc.
Divergência sanada, portanto.

Abrç

miguel (sp)

Luis Rainha disse...

João,

Centrando-me no ponto 4, que não estou com tempo para mais, só te poso dizer o seguinte: todos os crimes são hierarquizáveis – e de facto hierarquizados – nem que seja apenas quanto à pena correspondente. Aceitar isto nada tem a ver com fazer da igualdade um privilégio.
Aliás, quando se fala em “crimes de ódio” – e estes estão tipificados até na nossa legislação – é precisamente a especial gravidade de tais actos que se quer ressalvar. Isto é um facto, não um ponto de vista meu.
“Excluir a humanidade da pessoa a partir de um critério, seja ele qual fôr” claro que é terminalmente mau, se “excluir da humanidade” implicar a sua morte. De outra forma, navegamos em jogos de palavras. Concordará que não tem a mesma gravidade, face aos princípios da nossa civilização, detestar benfiquistas ou judeus.
Já agora, o ponto 6 não corresponde à verdade: o filme quase esconde por inteiro a presença dos judeus nos Campos. Isto também é um facto; mas não implica nenhuma conspiração ou ocultação com motivos ulteriores.
Por fim, escrever “Não é crime contra uma etnia, ou contra uma religião (esses também existem, isso não esta em causa). E' mesmo crime contra a humanidade” não faz grande sentido. A Shoah foi um crime contra milhões de pessoas, contra uma etnia, contra uma cultura e contra a Humanidade. Mas este último conceito é o menos “natural” e o mais recente, tendo sido só aplicado pela primeira vez, em termos penais, em Nuremberga.

joão viegas disse...

Caro Luis,

E' possivel que estejamos a ter uma mera querela de palavras, mas acho que não.

Dizes "A Shoah foi um crime contra milhões de pessoas, contra uma etnia, contra uma cultura e contra a Humanidade. Mas este último conceito é o menos “natural” e o mais recente, tendo sido só aplicado pela primeira vez, em termos penais, em Nuremberga".

Este é precisamente o ponto que me interessa. O que é novo com Nuremberga não é negligenciavel, e consiste precisamente em afirmar que um "crime contra a humanidade" é um crime diferente, mais grave, mais preocupante, e este crime consiste, precisamente, em reduzir uma pessoa, ou uma série de pessoas, a um dos seus atributos (na altura, de facto, visavam-se apenas motivos "politicos, raciais ou religiosos"), negando que ela seja igual.

Se reparares, enquanto a definição de Nuremberga se cingia a esses motivos politicos raciais e religiosos - o que mostra que existia ja uma plena consciência de que a reprobação recai sobre o facto de exterminar judeus porque são judeus (motivo racial ou religioso) - as definições têm evoluido no sentido de uma maior abertura. Por exemplo, o Estatuto do Tribunal penal de Roma é muito mais lato e admite que é crime contra a humanidade a conduta definida no texto desde que seja praticada por um motivo racial, politico, ideologico, ..., "ou por qualquer motivo considerado internacionalmente como inadmissivel" (cito de memoria, pois também estou sem tempo).

Portanto quando dizes que "em 1956 o Holocausto era um crime contra a Humanidade; hoje, é um crime perpetrado contra os judeus (com os ciganos e os homossexuais a conquistar uma ou outra presença de rodapé" isto é errado.

Errado historicamente : i) em 1956 ja era considerado crime contra a humanidade PORQUE era contra judeus ii) em 2010 o crime contra a humanidade não é mais, antes menos, definido atravês da ideia de negação em razão da "raça" ou da "religião", como foi o caso do holocausto.

Errado conceptualmente : se alguma coisa evoluiu entre 1956 e 2010, não foi a consciência de que um crime contra a humanidade o era "por ser perpetrado contra judeus" mas antes o contrario, ou seja no sentido de se afirmar que o crime contra a humanidade é grave porque, atravês do judeu, atinge o homem (a igualdade), razão pela qual não se deve limitar a ser um crime contra os judeus, ou contra uma etnia, ou contra uma cultura.

Dizes que ha no filme um enfâse posto no "e não so" (os judeus "e não so", a ponto, dizes tu, de ocultar que os nazis se atacaram de forma privilegiada aos judeus) e que isso te choca hoje. Pode ser. Mas este "e não so" é fundamental. Não historicamente, mas conceptualmente : ainda que os nazis tivessem "somente" exterminado judeus, o facto de condenarmos o acto como crime contra a humanidade significa, e ainda bem, que todos nos identificamos com os judeus e que repudiamos o atentado à humanidade que foi perpetrado com a Shoa.

A questão da medida da pena tem a ver com as circunstâncias concretas em que foi perpetrado o crime. Isso é um assunto diferente. Um assunto para historiadores. Um assunto sério. Mas um assunto diferente.

Abraço