A importância que tiveram, na sociedade portuguesa do século passado, as correntes acratas, é assunto geralmente ignorado. No entanto, o anarquismo foi decerto a corrente de ideias e de práticas colectivas que defendeu afirmativamente generosos valores de humanidade, que mais respeitou a sociedade e que mais profundamente influenciou os movimentos sociais e as tendências culturais progressistas. Um período dos mais ricos e prometedores na história de um povo oprimido por uma sucessão de poderes bárbaros. Cada vez que a revolta social afrontou as forças do obscurantismo, o colonialismo, as guerras coloniais e o fascismo, os ideais libertários e a acção dos anarquistas marcaram a sua presença. A República e o Partido Comunista - hoje duas «respeitáveis» instituições - devem a sua existência à vitalidade, inteligência e coragem dos militantes anarquistas. A atitude comunista sobre tudo o que cheira a ideias anarquistas e libertárias, mistura de arrogância e de ignorância crassa, explica-se em parte por esta dívida ocultada, por esta filiação que se manteve viva na sua massa militante até ao fim do fascismo. Se algum crédito deve ser atribuído ao chefe do estado-maior do bolchevismo lusitano, Álvaro Cunhal, é o de, recorrendo aos métodos da fria organização autoritária, ter sido capaz de extirpar o espírito libertário da estrutura e dos quadros do partido. Isto, em troca da deriva nacionalista e patriótica, que os levaria à respeitabilidade democrática e à defesa da economia nacional.
Não obstante a normalização política do espirito de revolta popular, apesar do peso da alienação mercantil instalada pela democracia representativa, ainda hoje se descobrem vestígios dos valores libertários no quotidiano popular. Valores de solidariedade, igualitarismo e justiça social, únicas referências positivas que permitem imaginar uma saída para o descalabro actual.
Serve esta breve digressão para introduzir o livro de M. Ricardo de Sousa (MRS), Os caminhos da anarquia (Letra Livre, Lisboa, 2011, www.letralivre.com). Uma centena de páginas, onde, sem iludir as fraquezas e os limites desta corrente face às gigantescas tarefas do momento, o autor expõe «uma reflexão sobre as alternativas libertárias em tempos sombrios». Em termos claros e concisos, com uma notável capacidade de síntese, MRS começa por fazer um resumo da história da corrente anarquista em Portugal. Retomando as análises conhecidas sobre o seu declínio histórico, ele vai mais além da badalada explicação baseada no sucesso do bolchevismo lusitano, insistindo nas consequências normativas que teve a integração das organizações operárias no funcionamento do capitalismo moderno, que marginalizou necessariamente as ideias e práticas opostas à cogestão reformista do salariado.
Preocupado com a sobrevivência da corrente acrata nos anos futuros, MRS discute as condições que poderiam permitir que ela volte a ter protagonismo social. E consegue fazê-lo evitando o beco sem saída do ortodoxismo sectário - que existe nesta corrente do movimento socialista, tal como noutras. O que é de realçar. Também não oferece resposta para tudo nem para todos. Antes pelo contrário, deixa em aberto o debate sobre questões importantes, como a de uma possível estratégia anarco-sindicalista.
Os caminhos da anarquia é um livro que se dirige explicitamente aos jovens anarquistas da região portuguesa, cujas fracas hostes têm sido ultimamente reforçadas pelo despertar de um espírito anticapitalista em sectores da juventude. E, deste ponto de vista, é um livro bem sucedido, que deixa marca. MRS faz um balanço lúcido dos anos tristes do após 25 de Abril, durante os quais a débil corrente anarquista foi palco de afrontamentos interpessoais, manifestações de egos exacerbados e sectarismos estéreis, aos quais se vieram juntar, mais recentemente, as derivas liberais de um anarquismo que se pretende realista, dito «cultural». Assim, o texto de MRS pode ser considerado como um ponto de partida para a procura de novos caminhos para um futuro incerto. Um livro que muda de pagina sem ignorar o que fica para trás.
Poder-se-ia argumentar que este discurso de um anarquista para os anarquistas é por demais redutor. Não obstante, Os caminhos da anarquia interroga também leitores não rotulados de «anarquistas», que contestam toda a manifestação do principio de autoridade no campo da prática social e dos movimentos sociais, obviamente inquietos perante as dificuldades e as perspectivas da emancipação social na época em que vivemos.
Escreve MRS, que descobrir estratégias novas será «o maior desafio de hoje». Desafio que se confirma pela leitura dos últimos capítulos, onde os tais caminhos se embrenham na mata da imprecisão. Inevitavelmente, pois o período que atravessamos é difícil e as tarefas são enormes. Dito isto, as fraquezas sublinhadas nem sempre são evidentes. Argumenta MRS que, ao contrário do que se passou no passado, o movimento libertário parece hoje incapaz de se apropriar das tecnologias da comunicação para a partir dela construir uma contracultura libertária. É ignorar que os movimentos espontâneos e antiautoritários dos nossos tempos têm tido justamente a capacidade de utilizar as novas técnicas da informação, como provaram os movimentos sociais na Tunísia, no Egipto, como prova a importância destas tecnologias nas revoltas na China. Pode mesmo afirmar-se que o investimento nestas novas tecnologias constitui um factor de autonomia e de antiburocratização dos movimentos modernos. Outra confirmação disto é a criatividade e a pujança de movimentos antiautoritários como o «Occupy» nos Estados-Unidos. Pena é que Os caminhos da anarquia perca a oportunidade de abordar esta problemática e estas práticas, nas quais se empenham hoje inúmeros grupos libertários. O autor discute também as estratégias de espaços libertados. E não esquece as críticas de «derrotismo», feitas por anarquistas como Malatesta e «marxistas» diversos e variados, sobre os limites destas experiências de «um socialismo experimental», fechado sobre si próprio. Neste campo também as práticas libertárias evoluíram desde os anos 60 e 70, sendo hoje mais abertas à sociedade, e os grupos assumem-se mais como células práticas de uma teoria, como base para uma acção exterior. É o caso dos centros sociais na Itália e no Estado espanhol. A sua extensão e vitalidade foi sem dúvida um dos factores determinantes no nascimento do movimento 15M, dos «Indignados». Também em França, onde a proliferação - não só nas zonas urbanas - de Bibliotecas-quiosques, espécie de ateneus libertários abertos ao debate e a actividades sociais (restaurantes colectivos, por exemplo) é um fenómeno novo. De igual modo, nos Estados-Unidos, o movimento «Occupy» centrou a sua actividade nestas práticas abertas ao exterior, bibliotecas, centros de saúde, apoios a sem-abrigo e a greves, reocupação de casas. Longe das experiências fechadas do «socialismo experimental», assistimos hoje a uma abertura à sociedade, mais arriscada, justamente porque é mais ofensiva e provocadora do sistema.
Discutir as práticas dos vizinhos do M15M e de Occupy teria sido bem mais motivante do que relembrar a capacidade de sobrevivência das bolorentas comunidades religiosas norte-americanas, com atitudes de vida, talvez discrepantes, mas certamente reaccionárias.
Temas a retomar num outro livro. Porque os caminhos da autoemancipação são vários e complexos; levam o seu tempo a ser trilhados.
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