Os donos do Pingo Doce quiseram esfregar-nos na cara o nosso egoísmo, a nossa venalidade, a tremenda distância que nos separa dos outros, desde que de permeio esteja o nosso umbigo. Quiseram fazer-nos provar a gordura cobarde que temos em vez de músculo; explicar-nos, muito devagar, como se fossemos imbecis, que nada nos custa pisar as vidas dos vizinhos desde que seja para alcançar couratos a metade do preço. E conseguiram.
Anunciaram primeiro que iam obrigar os seus trabalhadores a laborar no feriado do 1º de Maio.
Quando alguma polémica eclodiu, sujeitaram a referendo nacional a solidariedade da manada tuga: “E se vos déssemos um desconto jeitoso, ainda ficariam do lado dos oprimidos, ou correriam por cima deles para agarrar vinho em saldos?”
O resultado viu-se ontem pelas nossas ruas: milhares a encher bagageiras com os despojos dos direitos dos outros.
Nas declarações de rapina, o gáudio cheirava-se à légua: “Podemos registar o entusiasmo e a euforia dos nossos clientes, que precisam de campanhas como esta.” Como precisamos, foi só assobiar para nos pormos de cócoras, orifícios lubrificados pela nossa própria cupidez.
Pouco depois, quase todas as grandes superfícies comerciais decretavam, à força de intimidação, a morte do Primeiro de Maio.
Mais um capítulo na história da infâmia em que vamos dando razão ao ditador que nos baptizou como “uma nação de cobardes” – acrescentámos ontem a palavra que faltava: “Glutões.”
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3 comentários:
O primeiro de maio dos consumidores, decretado pela máfia dos supermercados, diz-nos muito sobre nós portugueses, sobre a nossa miséria, sobre a memória da fome, sobre a nossa forma mesquinha de ver o mundo...
Mas também diz muito sobre a incapacidade dos sindicatos e da esquerda institucional assumir de forma frontal uma campanha pública de boicote, para não entrar em conflito com as «massas» ou melhor a manada que constuiem essa entidade chamada de «consumidores».
Como pediu no discurso do 25 de Abril, ainda só há uma semana, devem ser estes exemplos e esta a imagem de Portugal que o Cavaco quer que os portugueses contem ao mundo.
Usando de verbo contundente, o Luís Rainha faz questão de não deixar que assobiemos para o ar qualquer tentativa de disfarce do que somos. Do que somos hoje. Do que ainda somos.
Não faz sequer sentido – ingenuidade seria a minha – tentar contrapôr explicações. O LR conhece-as de sobejo e também sabe que, o que quer que explique não justifica.
Por isso quero apenas sublinhar dois aspectos que me parecem importantes.
Primeiro, que é importante não perder de vista as potencialidades virtuosas do tempo. Talvez “qualquer dia... qualquer dia...”. Afinal, muitos milhares dos que gritaram o 25 de Abril e bateram palmas, tinham, pouco tempo antes – 10, 12 anos? – gritado vivas a Salazar e aplaudido entusisasticamente o embarque dos nossos soldados, que iam defender a integridade da pátria, à época, “do Minho a Timor”. E o “vice-versa” também é verdade: muitos daqueles que hoje suspiram por um Salazar que “venha meter ordem nisto”, e o elegeram como o português mais importante do século – o que, em certo sentido poderá até ser verdade – foram os mesmos que há trinta e oito anos bajularam, até à exaustão, “os militares que nos deram a liberdade”.
Segundo que, ao invés do que é dogma na esquerda convencional, que vai incensando acriticamente o “povo e os trabalhadores” e lambendo-lhes o tal orifício, na esperança de ir mantendo uns lugarezinhos no parlamento, o LR – e bem – põe o dedo nas feridas e dá-lhes o devido nome. Já que, é antes de mais assumindo, identificando e criticando os males, que se pode buscar a cura.
nelson anjos
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