27/11/12

Resposta ao João Bernardo

Antes de mais agradeço ao Miguel Serras Pereira e ao João Bernardo as suas respostas às questões que tenho levantado em posts e comentários. É a conversar, e a divergir, que se torna possível explorar todo o leque de vias e destinos que se abrem à nossa frente. Aliás, onde talvez mais divergimos é exactamente na aferição da amplitude das possibilidades futuras, resultado da presente crise sistémica na UE.

Mas vamos aos pontos indicados no post anterior:

1) Nunca coloquei em causa a plausibilidade das consequências para a economia portuguesa, decorrentes duma eventual saída da zona euro, que têm vindo a ser defendidas como inevitáveis no Passa Palavra. Apesar de haver quem discorde, nomeadamente outros economistas de Esquerda, entre os quais se destacam alguns dos que escrevem no blogue Ladrões de Bicicletas. O erro na análise do Passa Palavra consiste numa abordagem exclusivamente económica, tecnocrata, de questões que possuem também uma componente social. Por exemplo, a dada altura na resposta do João Bernardo pode-se ler: "Isso significa (...) que nenhuma economia pode desenvolver-se sem investimentos externos directos(...)". O que esta frase assume implicitamente é que há uma definição concreta do que significa desenvolvimento económico, sendo este obviamente desejável (de outro modo a crítica não faz sentido). Mas que significa desenvolvimento económico? Crescimento do PIB, do PNB? Mesmo que tal crescimento seja absorvido exclusivamente por uma minoria da população? Mesmo que tal crescimento resulte em degradação social e ambiental? É realmente desejável o crescimento económico? Ou o que pretendemos à Esquerda é a democratização, e equalização, das relações sociais, inclusivamente as de carácter económico? Será que o investimento estrangeiro ajuda ou prejudica o desenvolvimento que realmente deveríamos desejar à Esquerda?

2) Em primeiro lugar, quantos incumprimentos financeiros de Estados já tiveram lugar no passado? Provavelmente muitas dezenas. Quantos desse países estão neste momento numa situação de isolamento internacional como resultado desses incumprimentos? Não conheço nenhum. O que acontece sempre após o incumprimento financeiro dum Estado? Credores e Estado negoceiam a fracção da dívida que será paga. É que os credores sabem que alguma coisa é melhor do que nada... Em segundo lugar, o sistema jurídico é subordinado ao poder político. É-me inconcebível que alguém à Esquerda defenda a inviolabilidade dum contrato, o que consistiria na prática a defender que, no caso de ser o Estado a assiná-lo que tal responsabiliza automaticamente todos aqueles que formalmente estão sob a sua dependência, e no caso de serem indivíduos a assiná-lo que o fazem sempre de livre e espontânea vontade, na posse de toda a informação relevante e de alternativas reais. Os contratos, quaisquer que sejam, devem poder ser alterados por vontade soberana dos cidadãos no exercício democrático da sua autonomia para decidir colectivamente. O sistema jurídico baseia-se em Leis. E estas podem ser em qualquer momento alteradas pelo exercício político atrás mencionado. Leis claras não deixam margem para qualquer interpretação jurídica, ou confusão.

3) Bom neste ponto transparece algo que lamentavelmente tem-se tornado cada vez mais claro. Quando se afirma que "(...)a estatização (...) é o oposto ao controlo social sobre a economia(...)" não é por acaso que se esquece de mencionar a privatização. Aonde é que cabe a privatização da economia nesta dicotomia estatização - controlo social que tanta atenção tem merecido do Passa Palavra? Será que acham que a privatização, que é o processo que está em curso em Portugal, nos aproxima mais do controlo social da economia? Será que a privatização de todas as empresas estatais em Portugal, mesmo as Águas de Portugal ou as Estradas de Portugal, nos aproximam mais do controlo social da economia?!... Porque se assim não é, se afinal a privatização de empresas estatais não nos aproxima mais do controlo social da economia, então logicamente tal só pode querer dizer que afinal o oposto de controlo social sobre a economia é a privatização e não a estatização. Ainda, nesta diabolização da estatização existe uma incapacidade de aceitar que existem e existiram empresas estatais em muitos países, com sistemas políticos distintos, em que o controlo social dessas empresas, pode ir de nulo a considerável, nomeadamente por parte dos seus trabalhadores. Ou seja, a estatização não condena as empresas à submissão a uma burocracia auto-nomeada. Mas, dá sempre jeito a um argumento apresentá-lo como inevitável. Dúvidas são para os outros.

4) Parte da resposta já foi dada no ponto 1). Queria só relembrar que não, não é verdade que "os problemas sentidos pela periferia meridional da zona euro são problemas económicos". Existe um problema económico que está a tentar ser solucionado através da criação de problemas políticos e sociais. E portanto qualquer resposta ao primeiro problema tem de incluir também uma resposta aos segundos problemas. Não é possível? Então há que prioritizar. Admitindo que a resposta ao primeiro problema exige a privatização quase total das relações sócio-económicas em Portugal (porque é o que é exigido pela troika, e não podemos dizer não à troika, porque senão corta-nos o financiamento, e lá temos de sair - teremos? - da zona euro), o que resultará num agravamento dos problemas políticos e  sociais, interrogo-me se a resolução destes (ou antes o impedir o seu aprofundamento) não exige uma resolução diferente, mas admito menos "conseguida" ou "eficiente" do primeiro problema. O que eu gostaria era de ver esta prioritização discutida, em vez de se ignorar (nem quero acreditar que seja uma questão de minorizar) os atuais problemas políticos e  sociais.

Cumprimentos,

Pedro

13 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
pela minha parte, como o tempo escasseia, retomo, adaptando-o, um comentário que já fiz na caixa dos mesmos do post a que aqui te referes.

Leio um comentador (anónimo) que escreve: ' O MSP sabe que nenhum dos "nacionalistas" acha que isso [inverter as relações de força existentes no quado do isolamento português do que na arena europeia] seja mais fácil. Mas continua sem resposta o vosso lado da bifurcação: se a UE quiser chutar a Grécia para fora do euro caso o Syriza ganhe e se recuse a pagar a dívida, V. estará disposto a aceitar mais austeridade por quanto tempo? Tem de existir um limite!'

Ora bem, não estou, nem me parece que o JB, o JV ou o JVA, por exemplo, estejam dispostos a aceitar a austeridade. Trata-se de ver e decidir como lutar contra ela. E é aqui que as nossas posições divergem.

A minha ideia é que, "[s]e a UE quiser chutar a Grédia", ou Portugal, "para fora do euro", o que temos a fazer é recusar a "expulsão", reclamar o nosso direito à Europa e o direito da Europa aos direitos e liberdades historicamente conquistados, apelar aos cidadãos da Europa contra os seus governos e as medidas de expulsão, mostrando e afirmando que medidas como essa degradarão inevitavelmente as condições de existência da grande maioria de todas as populações da UE.

Por outro lado, a pergunta que te faço é a seguinte: porque é que identificas o "nós" (quando dizes que podemos controlar o nosso destino e não o dos outros) com os "portugueses", indiscriminadamente, e não com a imensa maioria dos trabalhadores da região que inclui a UE e a zona euro? Porque é que a oposição "nós"/"eles" se faz em termos das fronteiras do Estado-nação e não dos problemas e interesses comuns dos trabalhadores e cidadãos da região a que pertencemos? Não te ocorre pensar que o "controle sobre o destino" dos trabalhadores e cidadãos comuns portugueses passe pela capacidade que tenham de lutar ao lado dos demais no terreno europeu e de modificar as relações de força na UE?

Em meu entender o que se passa é que, mais ainda do que as perspectivas económicas do país dependem das exportações, as perspectivas de democratização (tanto defensivas como ofensivas) dos cidadãos locais dependem sobretudo da sua capacidade de exportação da luta e de europeização das reivindicações. Como escrevi há dias, a austeridade combate-se com mais democracia para a Europa e com mais Europa para mais democracia.

Finalmente, de outro comentário com que te respondi, repesco para esta discussão as observações seguintes:

"…parafraseando Rosa, a democracia defende-se aprofundando e alargando as liberdades e direitos existentes e não suprimindo as conquistas democráticas que limitaram a dominação do capital e do Estado graças a lutas anteriores nem atribuindo poderes reforçados a novas formas de governo classista. Os princípios e fins últimos ou se traduzem com os meios imediatos de que dispomos ou não servem para nada - a menos que, pior ainda, passem a desempenhar o papel de escatologias que convertem futuros míticos em justificação da miséria presente".

Abraço

miguel (sp)

westerson disse...

resposta ao miguel sp:

acho que entramos numa questão importante: que organização democrática europeia queremos.

da tua parte vejo uma preferência para nos organizarmos (nós a europa) de cima para baixo, definindo uma democracia à escala europeia, que irá operar as transformações que desejamos.

mas não existe uma posição contrária a esta, e que é igualmente justificável? a de aumentar o poder da democracia a nivel local? e importantemente, onde a dimensão deste "local" varia consoante a vontade das pessoas envolvidas? não será uma posição mais democrática, no sentido em que regras diferentes são adoptadas por comunidades com preferências diferentes? e em que os poderes de decisão ficam mais perto da pessoa comum? e não vemos, dentro da europa, uma preferência popular neste sentido? na espanha, na belgica? no sentido de federações como a suiça? existem riscos neste caminho? não parece ser um passo atrás? sim e sim, mas não é um risco maior insistirmos em vias que que não reúnem um consenso popular, a nivel europeu? (estamos contra a austeridade, mas a opinião pública alemã está visivelmente contra maiores transferências de fundos para o sul). provavelmente a europa ainda não está pronta para ela mesmo. mas isto não é nenhuma tragédia, significa apenas descentralizar o poder..

cumps

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

"(...)apelar aos cidadãos da Europa contra os seus governos e as medidas de expulsão(...)"

Tudo bem, concordo plenamente. E se não resultar? Tens resposta? Não é preciso? Claro que é! Enveredar por um caminho sem reflectir sobre todos os desafios com que nos podemos confrontar é simplesmente irresponsável. É por isso que acho muito importante o facto de haver quem aponte a possibilidade de implementação de regimes autoritários como consequência da desagragação da zona euro / UE, como tem acontecido no Passa Palavra. Mas, infelizmente, também no Passa Palavra é recusada a resposta, ou a reflexão sobre todas as possíveis respostas, às mais importantes questões que se levantam e podem levantar como consequência da actual crise. Todos parecem apenas concentrar-se apenas nos aspectos que lhes interessam de modo a fazer avançar as suas agendas ideológicas específicas, em vez de enveredar por um processo de diálogo radicalmente crítico, inclusivé das suas próprias convicções, assente numa avaliação rigorosa da realidade politica, social e económica.

"porque é que identificas o "nós" (quando dizes que podemos controlar o nosso destino e não o dos outros) com os "portugueses", indiscriminadamente, e não com a imensa maioria dos trabalhadores da região que inclui a UE e a zona euro"

Por duas razões associadas: porque os habitantes deste rectângulo de território a que se chama Portugal reconhecem-se (na sua esmagadora maioria) como uma comunidade, ou colectivo, donde estão predispostos a aceitar decisões democraticamente decididas em nome do bem comum desse colectivo, ou dito de outra maneira há um sentido de solidariedade comum que (e digo-o com muita pena, mas não gosto de ignorar a realidade) não existe (com tal intensidade) a nível Europeu; e porque, em parte como consequência desse sentido de comunidade, existe um conjunto de estruturas, conhecidas por Estado, que possibilitam a efectiva implementação dessas decisões colectivas, ao contrário do que acontece a nível europeu onde essas estruturas de coordenação e implementação estão muito menos desenvolvidas.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro miguel,

quem me parece que aposta no topo e não na base é quem confia no reforço da soberania do Estado-nação para como saída da crise.
Porque é que a "independência nacional" é mais favorável do que a federação ao poder da base, à extensão da participação democrática dos cidadãos nas decisões que os afectam?
Como sabes, é essa a via que proponho e defendo - contra a ideia de governantes mais esclarecidos e competentes, de pastores mais zelosos da saúde do rebanho.
Repito uma pergunta que já fiz ontem: quando o João Rodrigues, por exemplo, animado do mesmo espírito que inspira o Pedro Viana, escreve (cf. http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2012/11/flexinseguranca.html) escreve: "as periferias pagam um preço elevado do ponto de vista da tóxica ideologia dominante por estarem no euro", não seria mais razoável dizer que o problema não se resolve isolando as periferias nas suas condições degradadas, mas que a solução imediata passa pela integração política, orçamental e fiscal das periferias, e pela defesa e extensão nesse quadro das liberdades e direitos que a austeridade corrói?

Com efeito, não vejo como é que o JR, o PV outros podem garantir que não é possível mudar as coisas - as relações de força - na UE, mas é possível fazê-lo em Portugal. Será porque os portugueses podem controlar o seu destino mais e melhor do que os cidadãos dos restantes países?

Cordialmente

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
se, de acordo com o cenário que evocas, perdermos a batalha contra uma decisão de expulsão do euro tomada pelos governos da UE, será uma derrota para todos os trabalhadores e cidadãos europeus, e teremos de lutar em muito piores condições tanto locais como europeias e globais. Por isso mesmo, não é nessa via que devemos apostar. Mas, evidentemente, não te posso garantir que seja possível evitar o pior. Tudo o que posso é reafirmar a minha decisão de não contribuir para que nos resignemos antecipadamente a ele.

Quanto à segunda parte da tua resposta, parece-me que tu adoptas como ponto de chegada as condições que será necessário mudar. Se a maioria dos trabalhadores e cidadãos comuns portugueses continuarem a pôr o "nacional" acima do "social" e da democratização, não sairemos da cepa torta, nem com saída do euro nem sem ela. Se tudo o que temos como alternativa a uma federação inexistente continuar a ser o Estado-nação e os seus aparelhos, podemos dizer adeus a qualquer perspectiva de transformação da economia política governante a nível global. E assim por diante.

Abraço

miguel(sp)

westerson disse...

caro miguel sp:

"Com efeito, não vejo como é que o JR, o PV outros podem garantir que não é possível mudar as coisas - as relações de força - na UE, mas é possível fazê-lo em Portugal. Será porque os portugueses podem controlar o seu destino mais e melhor do que os cidadãos dos restantes países?"

é mais fácil implementar uma democracia funcional a nivel local do que a um nível mais global.

dentro da união europeia existem várias comunidades e identidades que querem uma maior independencia politica. existe uma considerável vontade popular no sentido de descentralizar o poder democratico, que não podemos ignorar.

por outro lado, diferentes comunidades dentro da ue (uma união economica) defendem politicas economicas europeias opostas. a vontade popular na alemanha é diferente da vontade popular no sul. podemos concordar ou não, mas no norte existe uma maior tendencia para explicar a crise como devido a um malfuncionamento dos paises do sul, e a vontade popular tende a defender politicas para solucionar a crise que se enquadrem nessa explicação. uma "democracia europeia" irá favorecer as interpretações mais populares, o que irá significar um enviesamento politico na direcção dos paises mais populosos. e isto pode provocar perigosas tensões sociais e culturais entre paises (e não vemos isto já agora?) e é claro que o crescimento de ressentimentos leva a sentimentos nacionalistas.

outro ponto, quando dizes:
"quem me parece que aposta no topo e não na base é quem confia no reforço da soberania do Estado-nação para como saída da crise."

não é o reforço da soberania do Estado-nação, é o reforço da soberania do "local", onde este local é definido democraticamente, e onde pode tomar qualquer dimensão. estou a imaginar um reforço do poder a nivel municipal, ou a nivel de regiões. não apenas ao nivel das rigidas e arbitrarias fronteiras das "nações". no fundo, é um outro oposto ao nacionalismo.

cumps

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

"(...)não é nessa via que devemos apostar(...)"

Mas eu não defendo tal. Há, realmente, quem defenda que Portugal deve sair da zona euro independentemente da troika aceitar ou não deixar cair as suas exigências austeritárias. Não é essa a minha posição. Mas não ignoro que muito provavelmente seríamos confrontados com essa questão caso "mandassemos a troika embora". O que eu quero é que seja discutida de modo transparente e honesto, através duma análise comparativa das consequências eventuais (do curto ao longo prazo) das várias respostas possíveis para essa questão: "o que fazer se a troika disser não?" Infelizmente vejo poucas pessoas com vontade de avançar por aí.

"Se a maioria dos trabalhadores e cidadãos comuns portugueses continuarem a pôr o "nacional" acima do "social" e da democratização, não sairemos da cepa torta (...) Se tudo o que temos como alternativa a uma federação inexistente continuar a ser o Estado-nação e os seus aparelhos, podemos dizer adeus a qualquer perspectiva de transformação da economia política governante a nível global."

Pretender decidir predominantemente a um nível mais local não é nacionalismo no sentido habitual da palavra, nem obviamente é contrário à vontade de democratizar e equalizar todas as relações existentes numa sociedade (de âmbito local). De outro modo chegamos ao absurdo de achar que a verdadeira democracia só é possível se fôr de âmbito planetário, atirando no processo para o caixote do lixo todas as experiências de democracia radical concreta e real que têm tido lugar ao nível de pequenas comunidades.

Aqui também vem ao de cima uma discordância antiga que temos. Eu acho que o Estado é necessário e reformável, ao contrário do que pensas. É necessário porque qualquer comunidade ou colectivo que pretenda agir, após decisão democrática, tem de ter organismos de coordenação que permitam a implementação das decisões tomadas. A Democracia é uma forma de governo da comunidade ou colectivo, não uma figura de retórica. Dada a ausência de outro conceito alternativo, chamo de Estado ao conjunto dos organismos acima descritos. Pode ser mais ou menos centralizado, assente em corpos especializados e permanentes, ou na rotatividade e não especialização. Quanto às actuais estruturas estatais, creio que são reformáveis, haja vontade dos cidadãos em o fazer.

Um abraço,

Pedro

João Bernardo disse...

Pedro Viana,
Limito-me a uns apontamentos de resposta.
Em primeiro lugar, tanto o Passa Palavra como eu nos meus livros e artigos nunca separámos a análise económica da análise política. Aliás, é em função das suas consequências políticas que a análise económica nos tem interessado. É claro que nas passagens em que é feita uma análise económica é feita uma análise económica, mas distorce-se um artigo, ou um conjunto de artigos, se se isolam essas passagens das outras e se se esquece o eixo condutor do raciocínio.
Em segundo lugar, as minhas posições pessoais relativamente aos ecologistas são públicas desde há muito, facilmente as pode conhecer quem estiver interessado nisso. Delas se depreende que, na minha opinião, todo o discurso acerca do decrescimento não passa de uma aura com que se enfeita outro discurso muito mais básico, o da pressão para uma descida drástica das condições de vida da classe trabalhadora.
Em terceiro lugar, não consigo entender que erros de leitura o levam a escrever o seu § 2. Encontrou algum livro ou artigo em que eu defendesse a inviolabilidade de um contrato? É de questões de facto que aqui se trata, e no meu entender são as seguintes: a) Nas relações externas o cumprimento de contratos ou a inadimplência são situações juridicamente claras e existem os devidos mecanismos de renegociação. Não é isso que leva ao isolamento de um país no contexto internacional. O que leva a esse isolamento é a adopção de uma moeda de pechisbeque. Se Portugal abandonasse a zona euro nas circunstâncias previstas, a inadimplência e a moeda depreciada apareceriam juntas na prática, mas os problemas levantados são distintos. b) É nas relações internas que a passagem do euro para um escudo depreciado levantaria um número infindável de problemas, que os tribunais não teriam capacidade física para resolver. O descalabro da moeda em países como a Argentina, o Ecuador e o Brasil levou a população, num processo que se desenvolveu ao logo de anos, a usar cada vez mais o dólar, não só como unidade contabilística no estabelecimento de contratos mas ainda como meio de troca. A certa altura a quantidade de dólares usados na circulação pecuniária interna era tão grande no Ecuador e na Argentina que as moedas nacionais puderam ser legal ou informalmente abandonadas em benefício do dólar. Isto não causou litígios, porque era o dólar a moeda que a população já usava. Note-se que no Brasil, onde o número de notas de dólar em circulação relativamente ao total da população era menor do que na Argentina ou no Ecuador, a dolarização assumiu outra forma, com a adopção do real, numa operação tecnicamente muito bem conduzida. c) Para prevenir más interpretações, convém notar que esta questão está longe de dizer apenas respeito às relações entre capitalistas. Sobretudo em situações de crise, o trabalho paralelo pressupõe contratos orais estabelecidos numa moeda de referência, cuja depreciação prejudicaria os trabalhadores.
Em quarto lugar, não entendo a que propósito vem o seu § 3, acerca da privatização. O capitalismo não e uma questão de relações de propriedade. É uma questão de relações sociais de trabalho, porque é nesse plano que se processa a extorsão de mais-valia. Nas relações de trabalho adoptadas, as empresas privatizadas ou em vias de privatização já eram tão capitalistas antes como o continuarão a ser depois. O que me preocupa a mim e o que preocupa igualmente os outros companheiros do Passa Palavra, tanto no Brasil como em Portugal, é que a estatização seja apresentada como uma panaceia. Daí a insistência na crítica a essa forma de propriedade capitalista, tanto mais que numa situação como a portuguesa, de desorganização da classe trabalhadora e de miserabilização das condições de vida, a estatização corresponderá a um reforço do autoritarismo político.

Anónimo disse...

miguel (comentário das 10.09):

Parece-me que o caminho não é por aí, pela descentralização. A crise financeira é a chaga do momento, e é uma chaga global. Sem alargarmos a democracia à economia, isto é, sem construirmos o socialismo, dificilmente essa lenga-lenga da descentralização faz algum sentido. Tendo como prioridade a banca europeia sobre controle público, que é a coisa mais centralizadora que está ao alcance das instituições em que nos enquadramos, seria então possível para partir para o debate do tipo de gestão de locais de trabalho e orçamentos mais locais de modo a combater a criação de aparatos burocráticos, etc.

Posto isto, tendo a concordar com o Pedro Viana, isto é, o Estado é necessário e reformável.

Pedro Viana disse...

Caro João Bernardo,

Na transição do escudo para o euro foi feita uma Lei que decretou, na prática, que toda a referência a escudos, em contratos, contas bancárias, etc, fosse substituida por uma referência a euros, sendo o montante envolvido re-escalado pelo factor de conversão euro-escudo. Houve alguma hecatombe do sistema judicial?… Então porque é que uma Lei exactamente igual, mas com euro no lugar de escudo e vice-versa, e um factor de conversão diferente daria azo tal hecatombe?

O Capitalismo também é uma questão de relações de propriedade. Não se podem separar das relações sociais de trabalho. Não é possível uma radical democratização das relações de trabalho num contexto em que a propriedade está concentrada nas mãos de poucos. Tal como uma re-distribuição equatitativa da propriedade teria um óbvio impacto transformador e equalizador sobre as relações de trabalho.

É uma óbvia mistificação que nas empresas estatais e privadas as relações sociais de trabalho são indistinguíveis. Basta ver que as taxas de sindicalização são em geral muito maiores nas empresas e serviços estatais do que nas empresas privadas (vide Portugal, EUA, etc). Porque é que tal acontece? Porque os trabalhadores das primeiras sabem que têm efectivo poder quer para influenciar as suas relações de trabalho (incluindo a remuneração salarial) quer para se proteger de perseguições por parte dos gestores/proprietários, ao contrário do que acontece nas empresas privadas (espero que não ache que os trabalhadores destas empresas não formam sindicatos porque acham que não precisam de lutar por melhores relações de trabalho…). Pergunte aos trabalhadores das empresas estatais em Portugal, ou em qualquer outro lado, se querem ver privatizada a empresa a que estão associados. Pergunte aos trabalhadores do Continente ou do Pingo Doce, ou da Walmart, se não gostariam de ver a sua empresa estatizada. Estão todos iludidos?

A táctica de colocar tudo o que não se aprecia do ponto de vista ideológico no mesmo saco, rotulado de "tudo igualmente mau" é velha, demasiado óbvia, e uma maneira preguiçosa de tentar destacar as nossas soluções ideológicas preferidas como as únicas minimamente aceitáveis. É tão óbvia que quem a usa já devia ter-se dado conta que apenas atrai o descrédito sobre si próprio e sobre as posições ideológicas que defende.

Cumprimentos,

Pedro Viana

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

a conversa vai longa, mas sinto-me obrigado a precisar duas questões.
1. A participação de base a nível local - no governo da cidade ou da empresa - pode encontrar - e tenderá a encontrar - condições mais favoráveis numa Federação Europeia do que nas condições actuais - ou, por maioria de razão, nas que uma implosão da UE acarretaria.
2. Se não há democratização verosímil do exercício do poder, no que incluo o governo da economia, sem participação de base, também não há democratização sem desenvolvimento do poder por parte de cada um decidir das questões centrais, arquitectónicas, que definem o próprio quadro local. O federalismo democrático é a forma que melhor se adapta à conjugação dos diversos níveis de exercício do que seria uma cidadania governante.
3. O Estado. Se, por Estado, entendes um poder político e um conjunto de instituições e "organismos de coordenação que permitam a implementação das decisões tomadas", parece-me que estás a confundir uma forma histórica particular de "sociedade organizada" ou de "poder político" com uma condição universal. E também não me vês advogar uma sociedade sem instituições, sem leis, sem poder. O que defendo é que a democracia é uma forma de exercício do poder político, da coordenação das decisões, etc. oposta à divisão do trabalho político classista entre governantes e governados. Uma forma de exercício do poder político que exclui a dominação hierárquica. A Revolução Americana fazia depender a legitimidade dos impostos da representação. A democracia faz depender a legitimidade das decisões da participação em pé de igualdade nas decisões dos "governados", tornando-os ao mesmo tempo "governantes". O que, de modo nenhum exclui, a necessidade de coordenação de que falas, embora exija outros modos de organização e coordenação. Digamos que, portanto, a tua concepção do "Estado reformável", por oposição à minha fórmula programática de democratização das relações hierárquicas e classistas e do exercício do poder político, peca por equívoca. Seja como for, passa ao lado da questão nacionalismo versus federalismo.

Um abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

" É preciso não nos esquecermos que a construção europeia tem por cimento essencial a livre-troca, e que a livre-troca não precisa, verdadeiramente, de nenhum apoio do Estado, tão-só de um pouco de policia comercial.(...)Não existirá uma Europa política, o sonho está hoje morto.(...),por outro lado, as instituições e as competências definidas pelos tratados sucessivos jamais colocaram - quer a C.E.E. ou a U.E.- numa situação de fazer funcionar os instrumentos que tivessem uma real potência integradora. Desse modo, não existe o imposto europeu. E o Orçamento da União orça em apenas 1 por cento do PIB comunitário. Quedamo-nos, portanto, ao nível do irrisório e, por isso, o uso de tais somas não será suficiente para provocar um movimento integrador em crescendo ". Michel Rocard," Crónica dos meus feitos e derrotas".Éditions Flammarion.Livro muito interessante e que reporta os 14 anos que o antigo PM francês passou nos corredores de Bruxelas como eurodeputado.Testemunho admirável e de um rigor fantástico. Portanto, de acordo com a clara e luminosa via delineada nestes dias pelo M.Serras Pereira,a solidariedade de luta contra a miséria e opressão do povo e das classes despojadas de Portugal e dos restantes países da periferia Sul da Europa,tem que ser construida de raiz nos ateliers e bairros, cooperativas de troca e escolas de cidadânia no perimetro do Mediterrâneo, por agora. Vidé um blogue grego:http://youlountas.net,de grande fulgor e imaginação. Salut! Niet

Anónimo disse...

http://www.marxist.com/prerevolutionary-greece-a-marxist-analysis.htm

"Any rejection of the Memorandum would mean that Greece would find itself ejected, not just from the eurozone but also from the EU, cut off from international money markets and unable to borrow money to pay wages and pensions. All attempts to find a “realistic” solution within the confines of capitalism will only end in disaster."

...

"The largest left tendency within Syriza led by Panagiotis Lafazanis calls for a return to the Drachma as a solution to the debt problems. But this will only be another road to ruin for the workers on the basis of capitalism. The value of a new Drachma would plunge, provoking a further collapse in living standards. For the working class, it is not a question of inside or outside the euro. Either way, the workers would lose. "

"The ultra-left sects are screaming about the immediate threat of fascism. They are like the Russian fool who sang funeral songs at weddings and wedding songs at funerals, and was thoroughly thrashed on both occasions. While over the next period we will see a sharp polarization to the left and to the right, as in Greece and France, there is no possibility of fascist or Bonapartist reaction in Europe in the immediate future. While, unlike the sects, we do not exaggerate the growth of Greek fascism around the Golden Dawn, it is nevertheless a warning to the working class of what could come if they do not move to take power."

...

"Over the coming period, all parties, including Syriza, will be put to the test. Since the last election, Syriza’s leadership has moderated its stand, dropping the demand for the nationalisation of the banks for “control” and replacing cancellation of the Memorandum with “renegotiation”. This is a slippery slope. There is no solution for the Greek masses on a capitalist basis, whether inside or outside the euro. Greek capitalism is too sick and can no longer afford reforms. On the contrary, vicious austerity is on the agenda, whether inside the EU or not. To argue anything else is to deceive the working class for there is no middle road in this situation."

...

"Today, the Marxists in Greece are fully involved in Syriza, as well as conducting work in the neighbourhoods, schools, universities and trade unions. They are determined to build the party and arm it with a Marxist programme as the only way forward. This means the repudiation of the Memorandum and the nationalisation of the banks and the big monopolies – the commanding heights of the economy – without compensation and the organisation of a socialist plan of production under the control of committees of workers, pensioners, students as well as the representatives of small businesses. This would place power in the hands of the Greek working class. Such a programme would have an electrifying effect throughout crisis-ridden Europe, beginning with Spain, Portugal, Italy and France. It would have a similar world impact to the Russian Revolution of October 1917. There would be a ready response to a revolutionary appeal for workers and youth in all countries to follow the same path and take power into their hands. There is no more room for reformism. Only a bold revolutionary internationalist programme can resolve the crisis in the interests of the masses."