25/05/14

Sobre a subida da extrema-direita a nível europeu. E sobre a tese de que a esquerda deveria captar simpatias a partir da fusão do social com o nacional

Excerto de um texto do colectivo Passa Palavra de 4 de Março passado, mas que me parece ter indicações preciosas para se perceber os riscos do nacionalismo, à esquerda e à direita, que ensombram a Europa.

«A coberto de uma ambivalência ou falsa neutralidade política, as propostas de saída da zona euro e de reforço das soberanias nacionais consegue, reconhecendo as devidas diferenças, criar pontos em comum entre a extrema-direita e uma certa esquerda e extrema-esquerda. E qualquer ponto em comum com a extrema-direita, ainda para mais com esta dimensão, é por si só perigoso. A história não se repete porque quando os acontecimentos sucedem de novo eles assumem outras formas. Mas o facto de essas formas sucessivas obedecerem sempre a certas características invariantes indica o estabelecimento de regras. Ora, em todos os exemplos históricos de conjugação do social com o nacional, sem excepção, foi a extrema-direita quem beneficiou, com resultados trágicos para a esquerda.

Em Itália, na Primavera de 1921, Gramsci procurou obter a colaboração de D’Annunzio e dos seus inúmeros seguidores na ala radical do fascismo, dando assim seguimento a uma campanha que ao longo de Janeiro e Fevereiro daquele ano havia conduzido no seu jornal L’Ordine Nuovo, em que se havia esforçado por agravar as fricções existentes entre os seguidores de Mussolini e os legionários de D’Annunzio e atrair estes últimos para o campo dos comunistas. Ainda no Verão de 1921 havia artigos em L’Ordine Nuovo a insistir no mesmo propósito, e catorze anos depois, na série de palestras que proferiu em Moscovo perante imigrados italianos, Togliatti repetiu que o Partido Comunista deveria ter sido capaz de disputar a Mussolini os legionários de D’Annunzio. Que ilusões! Em Maio de 1925, já depois de decretada a fascização do Estado, quando o antigo sindicalista revolucionário Edmondo Rossoni, chefe dos sindicatos fascistas, interrompeu em pleno parlamento um discurso de Gramsci para, a propósito do problema da emigração, observar: «Por isso a nação deve expandir-se no interesse do proletário», o dirigente comunista viu então erguer-se contra ele a política de convergência do social com o nacional que quatro anos antes imaginara que poderia convocar em seu favor. O único resultado dessa política foi abrir a esquerda social à penetração massiva da direita nacional.

Foi precisamente ao mesmo resultado que levou a política proseguida pelo Partido Comunista Alemão desde 1923 até 1933, quando convergia com os nacionais-socialistas no ataque à social-democracia. «Nacional e social são duas concepções idênticas», exclamou Hitler num discurso proferido nos primeiros anos da década de 1920. «Ser social significa edificar o Estado e a comunidade do povo […]». Entretanto iam-se tornando cada vez mais estreitas as malhas da rede ideológica e prática tecida entre os extremos do espectro político, e que Jean Pierre Faye tão atentamente estudou, até que no último ano da república de Weimar as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as SA, as milícias nacional-socialistas, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. Hitler não mentiu quando, já durante a guerra, recordou aos seus comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nacional-socialista era composto por elementos de esquerda. A outra faceta desta promiscuidade política foi a elevada instabilidade das filiações no Partido Comunista Alemão, onde entre 1930 e 1932 os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros. Enquanto o social imaginava que absorvia o nacional, o nacional-socialismo estava a construir-se.

«Desde as dezenas de milhares de militantes do Partido Comunista Alemão que aderiram às SA, até à passagem mais recente do eleitorado do Partido Comunista Francês para a Frente Nacional, muitos têm sido os exemplos de translação de alguns sectores da esquerda para o campo do fascismo», escreveu João Valente Aguiar na 2ª parte do artigo «Os teatros do tempo político», em 19 de Fevereiro de 2013. Nem sequer se trata de questões obscuras, que escapem à atenção dos nossos ciclistas, porque no referido artigo de 27 de Janeiro deste ano João Rodrigues, depois de destacar o «enraizamento popular» da Frente Nacional, afirma que «metade da classe operária declara votar FN». E não lhe ocorre, nem a ele nem aos outros, indagar por que motivo estas deslocações políticas se operam sempre em benefício da extrema-direita e não da esquerda

Enganam-se os que à esquerda pretendem concorrer com a extrema-direita mobilizando slogans e objectivos políticos muito semelhantes. Podem ter bons resultados eleitorais hoje, mas quando os temas da nação e da soberania nacional se tornam o senso comum das populações, é sempre a extrema-direita que vence. No actual contexto, mobilizar militantes, simpatizantes e votantes em torno de slogans isolacionistas e omitir o património político comum que une trabalhadores e trabalhadoras de todos os países, só dará força às potencialidades de crescimento de forças fascistas. Sendo assim, os resultados das forças promotoras de um ideário anti-europeu da CDU (em combinação com os de MRPP, MAS, MPT e PNR podem ultrapassar os 20%!) representam o papel da extrema-direita em Portugal: criar um campo político organizado numa base estatista, contrária a qualquer forma de democracia europeia e aspirar a um desmantelamento nacionalista da União Económica e Monetária.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,

chamo a tua atençao e a dos teus leitores para um breve post da Joana Lopes que toca, noutros termos, questões afins: http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt/2014/05/25-de-maio-um-balanco-telegrafico.html

O "balanço telegráfico" da Joana deu origem a uma troca de ideias entre a sua pessoa e a minha que me parece também relevante para uma reflexão sobre alguns dos problemas que motivram o teu post. Acrescento que por lapso meu na introdução dos comentários, estes aparecem não na caixa do post já referido, mas na deste outro: http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt/2014/05/jose-inacio-faria.html

Abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

Mas defender uma base "europeia" não é equivalente a um nacionalismo? Não são os EUA equivalentes em termos de população à UE? Logo, será um partido nacionalista nos EUA tão nacionalista quanto os partidos da esquerda europeísta?
De resto, não voto na CDU nem votarei, mas penso que podemos afirmar que o nacionalismo da CDU tem por objectivo criar pontes com países ou blocos progressistas (exemplo concreto: a ALBA). Logo, e mesmo considerando que nenhum desses países está hoje muito mais à esquerda que o nosso, não será isso uma forma de internacionalismo proletário?

João Valente Aguiar disse...

Sobre o primeiro parágrafo. Não me parece que alguma vez nos próximos tempos se desenvolva uma "consciência nacional europeia" como a dos EUA. Por conseguinte, o defender uma consciência europeia sobre as actuais consciências nacionais representa tão-somente um passo para evitar que os trabalhadores vejam as suas reivindicações serem apropriadas por facções de gestores (nos partidos da extrema-esquerda, em sindicatos e em sectores do Estado não sujeitos a escrutínio eleitoral - tribunais, militares, etc.) para aventuras nacionalistas. Nesse sentido, se houver um crescimento de um sentimento europeu, as possibilidades de os trabalhadores se tornarem carne para canhão de sectores aspirantes a controlar a sociedade portuguesa (e a isolá-la do que chamam de "ingerência externa") é uma das possibilidades para barrar esses desígnios.

Sobre o segundo parágrafo. O internacionalismo é hoje compreendido maioritariamente como a solidariedade entre nações independentes e com políticas inflacionistas e proteccionistas. Ora, a extrema-direita também fala numa Europa de nações livres e independentes, precisamente o mesmo lema da CDU. Incautos os que à esquerda acham que podem vencer a extrema-direita no seu próprio campo.

Para terminar, a origem do internacionalismo relaciona-se com um processo de diluição de fronteiras sociais e políticas. Se calhar quando se fala neste segundo processo o melhor é começar a utilizar-se os termos de cosmopolitismo ou de transnacionalização...