06/08/10

Os amigos são para as ocasiões

O Presidente do Brasil propôs no sábado que o seu país acolha Sakineh Ashtiani-Mohammadi, 43 anos, mãe de dois filhos e condenada em 2006 à morte por lapidação por ter tido "relações ilícitas" com dois homens depois da morte do marido.
"Apelo ao meu amigo (o Presidente iraniano Mahmoud) Ahmadinejad, ao Guia Supremo do Irão (Khamenei) e ao Governo do Irão que permitam ao Brasil dar asilo político a essa mulher", disse Lula da Silva durante um comício de campanha para o candidato do seu partido nas eleições presidenciais, em Curitiba.
Lula da Silva sublinhou que tem "respeito pelas leis dos outros países".
"Mas se a minha amizade e o meu respeito pelo Presidente e o povo iraniano valem alguma coisa e se esta mulher causa constrangimento, nós recebemo-la no Brasil", afirmou.

Estranho que esta notícia tenha sido apresentada como dando conhecimento de que Lula da Silva intercedera junto do governo do Irão em favor da condenada à morte. É patente - está escrito preto no branco - que, sem motivo para grande surpresa, o Chefe de Estado brasileiro pretendeu, bem antes, dar uma oportunidade ao Führer iraniano de salvar a face perante a opinião pública internacional e de o tirar do apuro de uma situação diplomaticamente embaraçosa: "…se a minha amizade e o meu respeito pelo Presidente e o povo iraniano valem alguma coisa e se esta mulher causa constrangimento, nós recebemo-la no Brasil". Quanto à inevitável perda de respeito por si próprio enquanto cidadão em que incorre quem, perante a sentença que condena à lapidação uma mulher adúltera, declara: "que tem 'respeito pelas leis dos outros países'", é coisa a que a generalidade dos chefes de Estado e responsáveis políticos dos diversos mundos do presente regime global nos têm habituado. Está longe também de ser novidade. O que convém é, tão só, que vamos aprendendo a dar por isso. É contra trivialidades que tais que se faz a democracia.

7 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

Lula começara por dizer que não tinha nada que ver com o assunto, só depois, pressionado, resolveu estender a mão à condenada, estendendo tb. a mão ao seu amigo. Nem a mais obscura diplomacia justifica isto. isto é o reconhecimento do direito à (escolha da) barbárie. Ponto final.
E entretanto, além de matarem pessoas à pedrada, também querem proibir a música
http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2010/08/post-dedicado-ao-ali-que-o-pariu-e-pena.html
Nem os nazis chegaram a tanto embora, como dizia o Steiner, as humanidades não humanizem!

Miguel Serras Pereira disse...

Ana Cristina,
é verdade que o Steiner diz e repete isso, e vai mais longe, sugerindo que as "humanidades" podem até servir decorativamente o massacre e a tirania. Sem esquecer ainda que podem servir, segundo um lugar-comum clássico que tem a sua pertinência, a alienação do erudito, a sua impaciência desdenhosa perante a banalidade quotidiana, etc. O isolamento na auto-suficiência da forma - ou do conceito e do "terrível poder do entendimento" hegeliano -, poderíamos até aventar nós a este respeito, talvez seja um factor não-despiciendo daquilo a que Castoriadis chama algures o "cretinismo político", sem dúvida extensível a mais do que um entre os maiores dos criadores formais, característico de muitos grandes filósofos - que proclamam palavras de ordem recomendando a serenidade imperturbável da alma, na sua contemplação, perante o que quer que aconteça no gulague ou nas prisões da América Latina, ou reiterando a tese da "racionalidade de todo o real" perante Auschwitz, o estalinosmo, o esmagamento da Comuna ou dos conselhos revolucionários húngaros de 1956. Et pourtant…
Enfim, tendo presentes outras páginas e reflexões do nosso GS, a tese que a Ana Cristina cita talvez deva ser modulada nos seguintes termos: se as humanidades não bastam para humanizar e podem ser usadas pela barbárie confortando de várias maneiras os seus agentes e planos, a ausência delas, a sua asfixia policial ou diluição mediática e publicitária, por certo que desumaniza e exprime a bestialização da vida política e dos costumes. Nesta ordem de ideias, seria de resto interessante confrontar com as provocações de Steiner as páginas que Castoriadis, no seu globalmente tão mal lido Devant la guerra, sobre o "ódio afirmativo do Belo" promovido pela burocracia e o imaginário "estratocrático" dominantes durante as décadas que precederam o colapso da ex-URSS.
Mas, atenção, façamo-lo tentando abrir cada página que lemos ou ideia a que a página nos conduz sem esquecer esse terreno da verdade que é a realidade quotidiana das nossas condições de existência. É o exercício que nos propõe o Doutor Fausto de Thomas Mann, cuja interrogação sobre a música e a arte em geral é precisamente por nunca perder de vista a barbárie quotidiana ambiente (do nazismo) que não se deixa reduzir a ela e logra manter a "aposta na transcendência" - tanto mais intensa esta última, talvez, quanto mais capaz de enfrentar o abismo da ausência de Deus - quer dizer de garantia supra-histórica de salvação final.

Cordiais saudações republicanas

msp

Justiniano disse...

Caríssima Ana C. Leonardo, Sim!!
Mas há neste sentido compassivo uma reserva de utilidade, e nesse tocante as palavras e o trato, a que se apelida de "diplomacia", são relevantes para alguns fins, ainda que se haja de condescender com o discurso da barbárie!! Por outro lado, e sendo consequente, à pura oposição apenas restaria o não reconhecimento da ordem constitucional Iraniana e seguidamente declarar-lhes guerra!!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Justiniano,
talvez para S. Francisco de Assis a compaixão simultânea perante o Führer iraniano e perante a adíltera condenada à lapidação sejam dois aspectos da mesma caridade sublime. Sublime, mas politicamente impossível - e não só impossível, letalmente tóxica.
Em termos práticos, há, apesar de tudo, uma distância grande entre não reconhecer a legitimidade de um governo, declarar a sua natureza tirânica, e passar à acção militar directa contra ele.
Sendo assim, parece-me que o seu comentário se deixou contaminar um pouco mais do que é habitual em si pela absolvição, quando não exaltação, da "resistência islâmica" e da sua "diferença cultural". Esperando sinceramente estar engando, saúdo-o com a atenção cordial que sabe

msp

Justiniano disse...

Não, caro MSP, repare que eu estabeleço a reserva da consequencia (ou efeito útil)!! A declaração de guerra é o enunciado mais profundo do repúdio, pode não implicar qualquer acção militar mas representa a mais elevada censura que um Estado pode oferecer a outro!!
Mas, caro MSP, não reconhecer a sua ordem jurídica, reconhecer aquela como ofensa à justiça e à prudencia levar-nos-ia a recorrer à força como reserva daquelas duas virtudes essencias e comuns a todos os indivíduos humanos!!
A guerra assim encetada, com intenção recta, na urgencia da justiça e como meio último, será justa!!
Ora, no caso, oferece-se a compaixão e o apelo à redenção como meio de evitar uma ofensa à justiça!! Entenda-se que não é ainda o meio último!!
É este o sentido do meu anterior comentário! Àqueles que repudiam o apelo à compaixão e a condescendencia que o acompanha resta-lhes a censura pela força. É, pelo menos, assim que posso ver as coisas na perspectiva da Sra. Sakineh!!(Se, como bem diz a ACL, para estender a mão à condenada for necessário estender a mão ao seu "amigo"...)
Espero que me tenha compreendido, caro MSP!!
Um cordial bem haja como bem sabe, também!!!

Ana Cristina Leonardo disse...

Caríssimo Justiano, a expressão "compassivo" é uma das minhas expressões favoritas. Estou firmemente convencida, posso mesmo dizer, irracionalmente convencida, que a compaixão é a pedra de toque que nos pode proteger da barbárie. Mais: quero crer (porque nisso assenta a minha sanidade mental) que a evolução dos seres vivos encaminha-nos para esse conceito (e é tb. por isso que os amantes de répteis que acham que uma iguana pode igualar um cão me deixam sempre de pé atrás).
Dito isto, e voltando ao Lula. Sabe-se que nos bastidores da diplomacia se tecem as coisas mais terríveis. Se essas coisas mais terríveis servirem para salvar uma vida, venham elas. Agora quando se vem publicamente tecer loas a um ditador tresloucado, mesmo que com isso sinceramente se espere impedir um acto bárbaro (e o Lula hesitou...), algo vai mal no reino da dinamarca.
Há vícios privados e públicas virtudes (coisa que o publicamente correcto, com a sua incapacidade para aceitar a complexidade da vida e dos seres não parece entender). Se o Lula queria salvar esta mulher movia os seus cordelinhos diplomáticos e tentava salvá-la. Vir publicamente pedir a sua libertação, dando a mão ao amigo não serviu para nada. Ou seja, a mulher continua presa (aliás, foi pedir asilo à Turquia)e o Irão permitiu-se uma resposta de merda (e peço desculpa pela linguagem, mas eu não sou da carreira diplomática).
Resumindo: às vezes baixamo-nos tanto que se vêem as cuecas.
Quanto à declaração de guerra... Bom, sem querer parecer anacrónica, foi isso que fez o Churchill e só por isso admiro-o.

Ana Cristina Leonardo disse...

Miguel, passo do Steiner ao Levinas. A ética deve pressupor que deus não existe - caso contrário é uma brincadeira.
Se acreditamos ou não nele não é para aqui chamado (afinal, o deus judaico é imprevisível e incognoscível, não é? Pois se, além de massacrar o Job até matou o filho do faraó que nem entrava na história...)