Tudo o que pretendo é assinalar que se faz sentir, no capitalismo contemporâneo global, uma forte tendência de revivalismo religioso e de "ordem espiritual", sugerindo que as suas oligarquias governantes se dão conta da necessidade de colmatarem, através de uma "ressacralização" ou "reencantamento" do mundo, a "dissolução no ar" de tudo o que não seja a pura e simples expansão da sua economia política.
Castoriadis sublinhou repetidamente que o capitalismo requerer condições que se mostra incapaz de reproduzir pelos seus critérios próprios. Por isso, de resto, seria ao mesmo tempo irreformável (nos seus próprios termos) e devedor da sua sobrevivência aos limites postos à sua lógica pura pelas lutas e resistências que suscita. (Cf., por exemplo, o texto, datado de 1990, "Quelle démocratie?", in Figures du Pensable. Les carrefours du labyrinthe VI, Paris, Le Seuil, 1999). Mas se, como diz Castoriadis, a sobrevivência ou renascimento da religião é "segundo a lógica do sistema […] uma anomalia sistémica", o capitalismo parece não poder sobreviver sem essas "anomalias sistémicas". O papel programado para a religião pela concepção da "sociedade harmoniosa" do modelo capitalista chinês, segundo a descrição de Charles Reeve (Jorge Valadas) e Hsi Hsuan-wou, parece confirmá-o. No trabalho que recentemente publicaram, China blues. Voyage au pays de l'harmonie précaire (Paris, Gallimard, 2008), o leitor depara com uma entrevista (pp. 107-109), cujos excertos seguintes são eloquentes q.b:
Sentada num banco [do parque Longtan, numa zona oriental de Pequim] (…) a jovem Yang Baifo está mergulhada na leitura de uma obra sobre o budismo. Ora, nós acabamos de saber que o presidente da Administração dos Assuntos Religiosos explicara que "o budismo é uma religião que propõe ideias de harmonia e de paz, reduz o stress dos indivíduos e reforça o consenso social […] A religião é uma das forças sociais que contribuem para a potência da China". E a conversa começa:
Hsi Hsuan-wou: Interessa-se pelo Buda?
Yang Baifo: O Governo orienta-se hoje para um reconhecimento do budismo. Estiveram dirigentes importantes do Partido e do Governo no Forum Budista Mundial (…) com milhares de monges vindos de toda a China e do resto do planeta. (…) As ideias do marxismo-leninismo já não mobilizam muita gente. E a pertença ao Partido é hoje sinónimo de corrupção. Diz-se que o Governo se prepara para restabelecer relações diplomáticas com o Vaticano. São muitos os jovens chineses que se sentem de novo atraídos pelo budismo. Sobretudo os jovens instruídos das zonas urbanas e das classes médias. (…)
Hsi: É como se estivesse aberto o caminho a um regresso das velhas religiões, depois de cinquenta anos de "comunismo"…
Yang: A verdade é que o regresso à moral religiosa substitui os valores anteriormente impostos pelo regime. Temos necessidade de um complemento espiritual que compense as pressões da vida moderna e do ritmo urbano. As pessoas estão desorientadas!
A imprensa explica, de resto, que a prática do budismo pode contribuir para reduzir as tensões sociais. (…) E, por outro lado, o discurso budista concorda perfeitamente com a palavra de ordem actual do Partido que quer promover uma "sociedade harmoniosa".Hsi: "Harmonizar as relações sociais"? Por outras palavras, os pobres devem respeitar os ricos, e os ricos devem ser amáveis para com os pobres? Acha que isso vai funcionar?
Yang: Espero que sim, senão teremos acontecimentos "contra-revolucionários".
5 comentários:
Caríssimo MSP, excelente texto!!
Sim, é recorrente, a necessidade de "ressacralização" ou legitimação metafísica do peremptório, uma espécie de Kant ao contrário!! O "capitalismo" foi tão lesto a conduzir o real que se desencantou por aquele!! Abandonou a gnose e esqueceu-se dos fundamentos ou degraus que aqui o trouxeram!!
Agora, caro MSP, quanto a Castoriadis "capitalismo requerer condições que se mostra incapaz de reproduzir pelos seus critérios próprios." PorquÊ, neste contexto, o capitalismo ou apenas o capitalismo!!?? O que será esse capitalismo, para além de um cliché!!?
Um cordial bem haja,
Caro e excessivamente generoso Justiniano,
o que se passa é que o capitalismo tem necessidade de "dessacralizar" tudo (tornat tudo traduzível em termos económicos), estipulando que tudo o que conta em última instância (e note que esta era, mais ou menos, a definição do religioso para Paul Tillich) é o valor económico e/ou a expansão sem fronteiras da sua economia, ao mesmo tempo que não pode funcionar sem condições e agentes que o seu núcleo não só não é capaz de produzir como tende a deteriorar.
Na ordem de ideias que aqui nos ocupa, veja este excerto de Castoriadis (faz parte do artigo que cito no post), que, em meu entender, formula bem a injunção contraditória ou double bind em apreço:
:
"Ora, num regime que proclama constantemente, nos factos e nas palavras, que o dinheiro é o único valor, e no qual a única sanção é a lei penal, por que razões os juízes não leiloariam as decisões que têm de ditar? A lei proíbe-o, sem dúvida - mas porque teriam de ser incorruptíveis os encarregados de a aplicar? Quis custodes custodeat? O que é que na lógica do capitalismo … proíbe a um inspecto+r das finanças aceitar subornos? Porque é que um professor se resignará à maçada de ensinar alguma coisa aos seus alunos se tiver maneira de se entender com o seu inspector? Um matemático de primeira ordem, professor universitário, talvez ganhe 16 000 francos por mês, 'produzindo' jovens matemáticos. Destes, os que sabem como está a vida (quer dizer, quase todos) não continuarão a se rmatemáticos; ocupar-se-ão de informática e entrarão para uma firma recebendo um salário inicial talvez de 30 000 francos. Quem ensinará, então, matemáticas na geração seguinte? Segundo a lógica do sistema, ninguém ou quase ninguém. Dir-se-á: haverá sempre cabeças amenamente extravagantes que preferirão uma bela demonstração a um salário elevado. Mas o que eu digo é que, precisamente, segundo as normas do sistema, tais pessoas não devem existir; a sua sobrevivência é uma anomalia sistémica - tal como a de operários conscienciosos, juízes íntegros, burocratas weberianos, etc. E por quanto tempo poderá um sistema reproduzir-se unicamente em função de anomalias sistémicas?"
Retribuindo calorosamente o seu bem-haja
msp
E a pertença ao Partido é hoje sinónimo de corrupção[...]-Oitenta milhões de corruptos (uma função crescente)?
[...]os pobres devem respeitar os ricos, e os ricos devem ser amáveis para com os pobres? Acha que isso vai funcionar?- Uma das contradições principais da linha política do PCC central na acção,agenda e debate políticos,questão ideológica viva a que nenhum funcionalismo será capaz de responder.
[...]Espero que sim, senão teremos acontecimentos "contra-revolucionários".A questão da revolução/ contrarevolução não quadra com uma perspectiva evolucionista dos acontecimentos.
Julgo que os ressurgimentos das religiões nada têm a ver com o capitalismo. Têm, em minha opinião, a ver com um mundo que gira cada vez mais depressa em virtude de um progresso tecnológico que é exponencial. As pessoas têm necessidade de ilhas de paz onde possam repousar.
Caro MSP, compreendo o seu comentário e a inquietante perplexidade do texto de Castoriadis!! Mas o que verdadeiramente não consigo compreender é a atribuição ontológica ao capitalismo de certas propriedades. A angústia da existencia, as ansiedades e perplexidades do indivíduo não serão imanencias da condição humana!!?? Dizer isso é o mesmo que admitir que o capitalismo seria o sistema economico cuja neutralidade se ligaria à natureza das coisas (racionalidade irracional)!! E que essas "anomalias" correspondem em si a uma dialetica inextrincável, mas consistente!! Eu não sei, sinceramente, quanto de atribuir à redutora utilidade capitalista pela profanação!!! (Eu nem sei, nem concedo, da nossa pretensa sucumbencia à lei da utilidade capitalista - E também não vejo o sagrado como resistencia à mercantilização da vida)
Também não estou tão certo da suposta homogeneidade do "capitalismo global" (nem tão pouco na sua existencia global)!!
E também não estou certo que a recorrencia do religioso possa ser instrumentalizável (não obstante ser plausível que algumas dimensões de ortodoxia o possam)
Um cordial bem haja,
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