18/08/10

Religion and the Rebirth of Capitalism - sobre a religião e o modelo chinês de "sociedade harmoniosa"

Que me perdoem os manes de R.H. Tawney, se, pretendendo homenagear o seu clássico A Religião e o Surgimento do Capitalismo (Religion and the Rise of Capitalism, 1948), aqui procedo a um desvio assumido e a uma pequena distorção do seu título, cuja tradução (nunca feita em Portugal, apesar da existência de uma versão brasileira do ensaio) seria, de resto, vivamente recomendável, sobretudo se acompanhada pela dessa outra sua hoje ainda mais actual reflexão intitulada The Acquisitive Society (que remonta a 1921).
Tudo o que pretendo é assinalar que se faz sentir, no capitalismo contemporâneo global, uma forte tendência de revivalismo religioso e de "ordem espiritual", sugerindo que as suas oligarquias governantes se dão conta da necessidade de colmatarem, através de uma "ressacralização" ou "reencantamento" do mundo, a "dissolução no ar" de tudo o que não seja a pura e simples expansão da sua economia política.

Castoriadis sublinhou repetidamente que o capitalismo requerer condições que se mostra incapaz de reproduzir pelos seus critérios próprios. Por isso, de resto, seria ao mesmo tempo irreformável (nos seus próprios termos) e devedor da sua sobrevivência aos limites postos à sua lógica pura pelas lutas e resistências que suscita. (Cf., por exemplo, o texto, datado de 1990, "Quelle démocratie?", in Figures du Pensable. Les carrefours du labyrinthe VI, Paris, Le Seuil, 1999). Mas se, como diz Castoriadis, a sobrevivência ou renascimento da religião é "segundo a lógica do sistema […]  uma anomalia sistémica", o capitalismo parece não poder sobreviver sem essas "anomalias sistémicas". O papel programado para a religião pela concepção da "sociedade harmoniosa" do modelo capitalista chinês, segundo a descrição de Charles Reeve (Jorge Valadas) e Hsi Hsuan-wou, parece confirmá-o. No trabalho que recentemente publicaram, China blues. Voyage au pays de l'harmonie précaire (Paris, Gallimard, 2008), o leitor depara com uma entrevista (pp. 107-109), cujos excertos seguintes são eloquentes q.b:

Sentada num banco [do parque Longtan, numa zona oriental de Pequim] (…) a jovem Yang Baifo está mergulhada na leitura de uma obra sobre o budismo. Ora, nós acabamos de saber que o presidente da Administração dos Assuntos Religiosos explicara que "o budismo é uma religião que propõe ideias de harmonia e de paz, reduz o stress dos indivíduos e reforça o consenso social […] A religião é uma das forças sociais que contribuem para a potência da China". E a conversa começa:
 Hsi Hsuan-wou: Interessa-se pelo Buda?
 Yang Baifo: O Governo orienta-se hoje para um reconhecimento do budismo. Estiveram         dirigentes importantes do Partido e do Governo no Forum Budista Mundial (…) com milhares de monges vindos de toda a China e do resto do planeta.  (…) As ideias do marxismo-leninismo já não mobilizam muita gente. E a pertença ao Partido é hoje sinónimo de corrupção. Diz-se que o Governo se prepara para restabelecer relações diplomáticas com o Vaticano. São muitos os jovens chineses que se sentem de novo atraídos pelo budismo. Sobretudo os jovens instruídos das zonas urbanas e das classes médias. (…)
Hsi: É como se estivesse aberto o caminho a um regresso das velhas religiões, depois de cinquenta anos de "comunismo"…
Yang: A verdade é que o regresso à moral religiosa substitui os valores anteriormente impostos pelo regime. Temos necessidade de um complemento espiritual que compense as pressões da vida moderna e do ritmo urbano. As pessoas estão desorientadas!
A imprensa explica, de resto, que a prática do budismo pode contribuir para reduzir as tensões sociais. (…) E, por outro lado, o discurso budista concorda perfeitamente com a palavra de ordem actual do Partido que quer promover uma "sociedade harmoniosa".
Hsi: "Harmonizar as relações sociais"? Por outras palavras, os pobres devem respeitar os ricos, e os ricos devem ser amáveis para com os pobres? Acha que isso vai funcionar?
Yang: Espero que sim, senão teremos acontecimentos "contra-revolucionários".

5 comentários:

Justiniano disse...

Caríssimo MSP, excelente texto!!
Sim, é recorrente, a necessidade de "ressacralização" ou legitimação metafísica do peremptório, uma espécie de Kant ao contrário!! O "capitalismo" foi tão lesto a conduzir o real que se desencantou por aquele!! Abandonou a gnose e esqueceu-se dos fundamentos ou degraus que aqui o trouxeram!!

Agora, caro MSP, quanto a Castoriadis "capitalismo requerer condições que se mostra incapaz de reproduzir pelos seus critérios próprios." PorquÊ, neste contexto, o capitalismo ou apenas o capitalismo!!?? O que será esse capitalismo, para além de um cliché!!?
Um cordial bem haja,

Miguel Serras Pereira disse...

Caro e excessivamente generoso Justiniano,

o que se passa é que o capitalismo tem necessidade de "dessacralizar" tudo (tornat tudo traduzível em termos económicos), estipulando que tudo o que conta em última instância (e note que esta era, mais ou menos, a definição do religioso para Paul Tillich) é o valor económico e/ou a expansão sem fronteiras da sua economia, ao mesmo tempo que não pode funcionar sem condições e agentes que o seu núcleo não só não é capaz de produzir como tende a deteriorar.
Na ordem de ideias que aqui nos ocupa, veja este excerto de Castoriadis (faz parte do artigo que cito no post), que, em meu entender, formula bem a injunção contraditória ou double bind em apreço:
:
"Ora, num regime que proclama constantemente, nos factos e nas palavras, que o dinheiro é o único valor, e no qual a única sanção é a lei penal, por que razões os juízes não leiloariam as decisões que têm de ditar? A lei proíbe-o, sem dúvida - mas porque teriam de ser incorruptíveis os encarregados de a aplicar? Quis custodes custodeat? O que é que na lógica do capitalismo … proíbe a um inspecto+r das finanças aceitar subornos? Porque é que um professor se resignará à maçada de ensinar alguma coisa aos seus alunos se tiver maneira de se entender com o seu inspector? Um matemático de primeira ordem, professor universitário, talvez ganhe 16 000 francos por mês, 'produzindo' jovens matemáticos. Destes, os que sabem como está a vida (quer dizer, quase todos) não continuarão a se rmatemáticos; ocupar-se-ão de informática e entrarão para uma firma recebendo um salário inicial talvez de 30 000 francos. Quem ensinará, então, matemáticas na geração seguinte? Segundo a lógica do sistema, ninguém ou quase ninguém. Dir-se-á: haverá sempre cabeças amenamente extravagantes que preferirão uma bela demonstração a um salário elevado. Mas o que eu digo é que, precisamente, segundo as normas do sistema, tais pessoas não devem existir; a sua sobrevivência é uma anomalia sistémica - tal como a de operários conscienciosos, juízes íntegros, burocratas weberianos, etc. E por quanto tempo poderá um sistema reproduzir-se unicamente em função de anomalias sistémicas?"

Retribuindo calorosamente o seu bem-haja

msp

António Geraldo Dias disse...

E a pertença ao Partido é hoje sinónimo de corrupção[...]-Oitenta milhões de corruptos (uma função crescente)?

[...]os pobres devem respeitar os ricos, e os ricos devem ser amáveis para com os pobres? Acha que isso vai funcionar?- Uma das contradições principais da linha política do PCC central na acção,agenda e debate políticos,questão ideológica viva a que nenhum funcionalismo será capaz de responder.

[...]Espero que sim, senão teremos acontecimentos "contra-revolucionários".A questão da revolução/ contrarevolução não quadra com uma perspectiva evolucionista dos acontecimentos.

Diogo disse...

Julgo que os ressurgimentos das religiões nada têm a ver com o capitalismo. Têm, em minha opinião, a ver com um mundo que gira cada vez mais depressa em virtude de um progresso tecnológico que é exponencial. As pessoas têm necessidade de ilhas de paz onde possam repousar.

Justiniano disse...

Caro MSP, compreendo o seu comentário e a inquietante perplexidade do texto de Castoriadis!! Mas o que verdadeiramente não consigo compreender é a atribuição ontológica ao capitalismo de certas propriedades. A angústia da existencia, as ansiedades e perplexidades do indivíduo não serão imanencias da condição humana!!?? Dizer isso é o mesmo que admitir que o capitalismo seria o sistema economico cuja neutralidade se ligaria à natureza das coisas (racionalidade irracional)!! E que essas "anomalias" correspondem em si a uma dialetica inextrincável, mas consistente!! Eu não sei, sinceramente, quanto de atribuir à redutora utilidade capitalista pela profanação!!! (Eu nem sei, nem concedo, da nossa pretensa sucumbencia à lei da utilidade capitalista - E também não vejo o sagrado como resistencia à mercantilização da vida)
Também não estou tão certo da suposta homogeneidade do "capitalismo global" (nem tão pouco na sua existencia global)!!
E também não estou certo que a recorrencia do religioso possa ser instrumentalizável (não obstante ser plausível que algumas dimensões de ortodoxia o possam)
Um cordial bem haja,