O Nuno Teles respondeu ao post onde eu dava conta da minha preocupação com o que me parece ser uma clara sobrevalorização à esquerda de soluções económicas nacionalistas e industrialistas. A resposta do Teles não diminuiu as minhas preocupações, mas permite ir esclarecendo os nossos desentendimentos e possivelmente agudizar as desavenças.
O primeiro desentendimento tem que ver com o modo como relacionamos a análise económica e a vontade política, a ciência e a crítica. Para o Nuno Teles, parece-me, qualquer vontade política crítica que não esteja apoiada em análise científica económica corre o risco de ser voluntarista e ineficaz. Para mim, também. Agora, e aqui parece-me que eu vou para um lado e o Teles segue para outro, isto implica, igualmente, assumir o reverso. De tal modo que: qualquer análise científica económica que não se apoie numa vontade política crítica corre o risco de meramente confirmar o que é evidente (e o que é evidente não só não é inequivocamente apurável como, se o é e quando é, está longe de esgotar o campo das possibilidades).
É nesta separação – primeiro a análise económica, depois a vontade política, primeiro a ciência, depois a crítica – que o Nuno Teles incorre quando se posiciona face à questão nacional.
Simplificando (ele corrigirá se entender), a sua posição, e de boa parte dos Ladrões de Bicicletas, é esta: seria ideal movermo-nos politicamente (seja a nível institucional, seja a nível de movimento) a uma escala global, mas a realidade é ainda nacional e por isso essa unidade de poder deve continuar a ser utilizada, sem prejuízo de tentativas pontuais de internacionalizar as questões. Ora, aqui, neste modo de ver as coisas, detecto um problema: há no modo de pensar do Nuno uma barreira entre o que se toma por ideal e o que se toma por material. Repito: as nossas propostas políticas devem derivar da análise da realidade económica mas também o contrário e seria revelador de um insuportável economicismo considerar que a realidade económica tal como a analisamos é mais “real” do que as propostas políticas que formulamos. Entre a realidade e a realidade dos nossos desejos não existe nenhuma muralha da babilónia. Isto mesmo tem sido exemplarmente exposto pelos ladrões na crítica a que submetem as análises económicas dominantes: essas análises pretendem dar conta da realidade tal como ela é, dizem-se despidas de ideologia, mas os ladrões mostram bem que ninguém é virgem e que as análises económicas estão impregnadas de vontade política. Há que ser fiel a este princípio e não usá-lo apenas para desconstruir o que é dito pelos nossos adversários; ou melhor, essa desconstrução não deve servir parar mostrar que eles estão cientificamente errados (é insuportável ouvir os economistas críticos dizerem que qualquer manual de economia política ensina que em tempos de crise o Estado não deve ter orçamentos restritivos) mas que é antes de mais no terreno das diferenças políticas e morais que as suas ideias devem ser escrutinadas.
E por isso é que não basta dizermos que temos que agir politicamente no quadro nacional porque a realidade económica é nacional – como não basta dizermos que temos que agir no quadro global porque a realidade é global (jamais advogarei tal coisa). A realidade é nacional e é global e trata-se de construirmos uma vontade política a partir desta realidade que não é unívoca. Confinar a política nacionalmente é não só mas também uma opção e a esquerda que o faz deve assumir as suas responsabilidades sem subterfúgios. Não me parece sustentável insistir em críticas à ausência de estruturas políticas europeias que decidam sobre o processo económico europeu quando se secundariza cada vez mais a questão da forma nacional. Prova dessa secundarização é a campanha política dos três candidatos à esquerda de Cavaco, cada qual a tentar provar o seu maior índice de portugalidade. Trata-se, diga-se, de uma secundarização já manifesta na forma algo desabrida como se celebrou a vitória do NÃO ao tratado constituinte europeu, ignorando (numa espécie de “fuga para a frente”) o intricado de questões que aí se cruzavam. Infelizmente, para a generalidade da esquerda partidária em Portugal, bem mais importante do que falarmos de nacional ou internacional é falarmos de neoliberal ou de socialista, como se o socialismo pudesse ser indiferente à sua forma, como se nunca tivesse existido uma crítica à estratégia do “socialismo num só país”, como se não tivesse existido uma questão colonial (em que ao colonialismo bárbaro de uns, contrapunha a esquerda o seu colonialismo progressista, tal como ao nacionalismo de direita de hoje se pretende contrapor o patriotismo de esquerda), etc.
A esquerda deve ser incondicionalmente internacionalista por vários motivos que podem ser resumidos em três: porque do ponto de vista analítico deve recusar qualquer nacionalismo epistemológico (ex. não se compreende o estado do país sem ligá-lo ao estado do mundo); porque do ponto de vista ético deve recusar qualquer redução da moral à escala nacional (ex. não há nenhum motivo para o Teles se preocupar mais com a sorte dos trabalhadores portugueses do que com a sorte dos trabalhadores franceses ou dos trabalhadores chineses); porque do ponto de vista político a esquerda deve sobrepor a classe à nação enquanto critério mobilizador, na senda de princípios estratégicos tão elementares como “nenhuma guerra entre os povos, nenhuma paz entre as classes”.
Tudo isto, é claro, está relacionado com a questão do anticapitalismo e do modo como nos relacionamos com o determinismo histórico. O Teles pretende criticar uma posição histórica determinista que recusa de modo igual tanto o nacionalismo industrialista de List como o liberalismo comercial de Smith. Diz ele que essa é uma posição determinista porque propõe o desenvolvimento pleno do capitalismo como modo de chegar ao socialismo. Mas engana-se em parte. Em primeiro lugar, engana-se porque faz uma leitura pouco generosa de Marx, nomeadamente da sua crítica de List. Diz o Teles: “Certo, para o Marx era indiferente se a exploração era conduzida pelo capital alemão ou inglês. O capital, no fundo, não teria nacionalidade”. Ora, existem aqui duas coisas combinadas: a análise e a vontade. É no mínimo ridículo (embora possa não ser injusto para o cienticismo de Marx) dizer que Marx errou a este respeito, como se tratasse de uma questão meramente científica. Uma e outra questão, ciência e política, contaminam-se, com todos os problemas e soluções que isso comporta. Não era só (ou tanto) para o Marx analista do capitalismo que a nacionalidade do capital era indiferente; era também (ou sobretudo) para o Marx que advogava uma estratégia internacionalista de classe.
Se quisermos, o imperativo internacionalista marxiano funcionava aqui como ponto de intersecção entre uma crítica poética do nacionalismo, uma estratégia política para o movimento operário e uma análise económico-sociológica do desenvolvimento do capitalismo. A primeira questão não é do domínio do erro; a segunda só em parte; a terceira só em parte é que se pode dizer que Marx errou.
Em segundo lugar, em resultado da leitura pouco generosa que faz de Marx, o Teles ignora uma dimensão importante do que Marx escreve nos princípios dos anos 40 e de que há ainda reflexo no Manifesto (onde a questão, é certo, aparece já de modo mais nebuloso): a sua recusa de qualquer determinismo histórico e, pelo contrário, a sua imputação de tal pecado a List e a Smith. A indiferença de Marx em relação à nacionalidade do operário é em parte afim à indiferença de Marx em relação a List e a Smith, porque a Marx não interessa o futuro radioso que é prometido a partir de um e de outro, tal como não interessa que ali se viva melhor do que aqui, mas sim as contradições do presente do mundo (e não a futura superação das contradições intra-nacionais e não também as contradições presentes entre nações; isto é, não há aqui nenhuma teoria patriótica do anti-imperalismo). Trata-se justamente de recusar qualquer tipo de determinismo histórico segundo o qual só seria possível superar gradualmente, por etapas, por territórios, o capitalismo. O capitalismo e o anti-capitalismo pertencem ao mesmo tempo e espaço históricos, o de hoje, e nesse sentido todas as lutas são “lutas finais”.
É também neste sentido que não há mal nenhum em dizer que em princípio a crise é uma oportunidade para mudar de vida (desde que, é claro, se diga também que podemos mudar para pior, sendo que aqui entra a política e a decisão táctico-estratégica concreta).
O desenvolvimento económico num país tem uma expressão imediata a nível mundial e por isso qualquer proposta económica que se baseie no que tornou possível o desenvolvimento naquele país tem que levar em conta uma situação que já não é a mesma que era à partida desta frase; a crítica do proteccionismo não é apenas a crítica da tentativa de criar um território autónomo, mas também de criar um tempo autónomo; isso mesmo diz Marx na sua crítica a List, no que é uma antecipação de algumas das ideias mais felizes das teses trotsquistas do desenvolvimento desigual mas combinado ou, ainda, das críticas de Benjamin ao progressismo dos socialismos e das social-democracias do século XX. O tempo em Smith é homogéneo porque é global e nele não tem cabimento o antagonismo; em List também é homogéneo, mesmo se é nacional, porque o nacional existindo dissociado do global, admite heterogeneidade apenas entre os diferentes tempos nacionais e não no seio de cada tempo nacional e através do tempo mundial; em List a heterogeneidade é a da diferença cultural produzida pelas diferentes unidades de tempo e nestas unidades não tem cabimento o antagonismo entre classes. A concepção de List tanto dá para uma certa celebração da diversidade cultural dos povos como para alimentar a colonização de um povo sobre outro povo tido como diferente. A crítica de Marx a List, pelo contrário, convida a pensarmos a luta de classes e assim fala de um tempo heterogéneo no interior de cada nação e através de todo o mundo.
Diz o Teles: “O que sei é que é o sector industrial o principal dínamo das economias modernas e que uma política industrial pode e deve ser o caminho para maior qualificação, maior produtividade e maior democracia no local de trabalho”. Aqui chegados, e para terminar, colocaria várias questões, num jeito pueril q.b.: mas por que razão é que o sector industrial é um dínamo maior do que o comércio? Porque a produção é mais importante do que o consumo? Mas há produção sem consumo? Os que produzem não consomem? Não consomem antes de irem produzir e depois de produzirem? O que é que quer dizer ser um dínamo? A indústria produz bens e o mercado é que os mercadoriza? Essa distinção entre bem e mercadoria é estanque? Todas as mercadorias não assumem também uma natureza de bem? E ainda, e talvez mais importante e esclarecedor do que nos separa, e já não tão pueril: não deveria o problema ser colocado ao contrário, não deveria a tal da maior democracia no local de trabalho (na terra, como na fábrica, como no escritório) ser o caminho e não o fim? O determinismo histórico não está aqui?
2 comentários:
Grande camarada Zé Neves,
eu não o diria em termos tão marxistas como os teus, mas subscrevo o essencial da tua posição sobre a necessidade de romper com o fetichismo do Estado-nação e o seu nacionalismo. E também, acrescentaria eu, com o sortilégio hipnótico que torna tão difícil a alguns pensar o poder político excepto nos termos desse modelo (do Estado-nação) - ou pensar o "público" em termos alternativos ao "estatal".
O único reparo que te faria, creio que merecerá o teu acordo. É do tipo do que há dias enderecei a um texto do João Bernardo, cuja leitura recomendara. Ou seja:
"Embora continue a pôr na ordem do dia a emancipação dos trabalhadores e a democratização radical da economia, a luta contra a instituição hierárquica e classista da sociedade deve visar hoje o exercício goverenante explícito pelo conjunto dos cidadãos iguais, livres e responsáveis de todas as dimensões da existência comum que requerem regulação e deliberação em vista de decisões vinculativas. A extensão ao conjunto da actividade económica, através de uma repolitização explícita da economia política dominante, do espaço público democrático, definido pela igual participação de todos os cidadãos nas decisões que lhes dizem respeito, não passa apenas pelo interior das empresas e do aparelho produtivo — ao mesmo tempo que a conquista pelos trabalhadores da condição de cidadãos governantes no interior da sua actividade laboral exige e tem por meta também a transformação da praça pública e dos órgãos de governo da cidade" (http://viasfacto.blogspot.com/2010/10/generalizar-as-accoes-de-luta-2.html).
O JB aceitou a minha ressalva nos seguintes termos: "Mas quero dizer-te que estou de acordo com as ressalvas finais que fazes. No Brasil, uma boa parte do que se denomina Movimentos Sociais visa precisamente o que chamas «a transformação da praça pública». Penso que, com o fim da grande empresa fordista, com a precarização das relações de trabalho e com a diluição da fronteira que antes separava os ócios da actividade laboral, também deixou de existir uma diferenciação nítida entre espaço de trabalho e espaço público. Movimentos como o dos sem-tecto e o do passe-livre, além de outros localizados geograficamente, contam-se entre os elementos principais da luta anticapitalista no Brasil, embora a sua acção não ocorra dentro de empresas. O mesmo se passa no México e decerto noutros países. Mas estes movimentos contribuem para pôr em causa o capitalismo precisamente porque não reproduzem os interesses corporativos, especialmente não reproduzem a fronteira que separa os assalariados do Estado daqueles outros assalariados que trabalham para patrões privados (…)" (http://viasfacto.blogspot.com/2010/10/um-comentario-de-joao-bernardo-espaco.html).
Quero crer assim que, pelas mesmas razões e outras ainda, estarás neste ponto também disposto a incluir a dimensão do espaço público e dda exigência de democratização à escala macro da direcção da economia como inseparável da dimensão do local de trabalho e da empresa.
Forte abraço solidário
miguel sp
miguel,
claro, de acordo com a tua ressalva e com a resposta do joão bernardo. em última instância, vejamos assim: se vivemos numa fábrica social mundial, os conselhos terão que ser pensados além da fábrica e da nação.
abç
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