21/10/10

Mythos vs. Logos?

Neste post, estive quase a usar a palavra “mito” a propósito do Holocausto. A ideia era apenas aludir à dimensão de sistema conceptual e discursivo que o evento também apresenta; não negar a sua ocorrência histórica. Mas claro que a prudência recomendou outra escolha de palavras: só me faltava mesmo era passar por negacionista. No entanto, isto deixou-me a pensar: porque será que os mitos têm hoje esta má fama de entidades nascidas da fantasia, de aldrabices mais ou menos intrincadas?

Mircea Eliade, no seu contributo para The Universal Myths, delineou uma pequena história do conceito de mito. A palavra grega mythos significava originalmente apenas “fábula”, “história” ou “discurso”, mas acabou por ser colocada em antítese com logos, acabando por ganhar o significado de “aquilo que não pode existir na realidade”. Já sob este ponto de vista, Xenófanes criticou no século quinto AC os mitos de Homero. Assim sendo, nada mais natural do que termos chegado ao século dezanove com a ideia dominante de que um “mito” seria sempre oposto à “realidade”.
Só com Karl Otfried Müller e de Max Müller é que o estudo do mito ganhou forma. Este último autor atribuía a origem de todos os mitos a fenómenos celestes e meteorológicos marcantes, teoria não sobreviveu às observações de E. B. Tylor, na sua obra Primitive Culture, que argumentou que o animismo, a crença em entidades superiores, representava o nascimento do pensamento mitológico, uma modalidade da razão exclusiva do “intelecto humano no seu estado de primeira infância”. Pouco depois, Andrew Land refutou a precedência cronológica do animismo, após estudar as crenças dos aborígenes australianos e de ali encontrar não a esperada (por Tylor) evolução do culto dos antepassados e da Natureza para a adoração de uma divindade central mas sim uma crença primeva em entidades superiores difusas e remotas.
No final do século XIX, Robertson Smith postulou que o mito é uma mera explicação do ritual, sendo assim um fenómeno menor. Para autores que subscreveram esta corrente, como A. M. Hocart, o “mito é apenas a explanação verbal e a justificação do ritual: os actores personificam os supostos inventores do rito, e esta personificação deve ser expressada verbalmente; é o seu discurso durante esta personificação que hoje conhecemos como mito.” Ponto central nesta tese é que o acto humano é mais importante do que os relatos das actividade divinas. Freud aderiu, afirmando que o mito não passa de “uma repetição fantasiosa de um acto real”, o parricídio original.
Carl Gustav Jung partiu das notórias semelhanças entre mitos de civilizações e povos sem contactos entre si para inventar o inconsciente colectivo, um vasto reservatório de “arquétipos”, conteúdos latentes que se manifestam de forma regular através da História e das diferentes sociedades. Jung acreditava assim que os mitos são “expressões de um processo psíquico primordial que até poderá preceder a existência da raça humana”.
Depois, a visão estruturalista dos mitos, liderada por Claude Lévi-Strauss, prescindiu de procurar o significado do mito em benefício da sua função: “providenciar um modelo lógico capaz de ultrapassar uma contradição”. Escreveu este autor na sua obra de 1958, Antropologia Estrutural: “o tipo de lógica que é usado no pensamento mitológico é tão rigoroso como o da ciência moderna, sendo que a diferença não está na qualidade do processo intelectual mas sim na natureza das coisas a que é aplicado”.
Eliade postulou que é nas sociedades em que o mito ainda é “uma coisa viva” que se encontram as melhores oportunidades para compreender a estrutura do pensamento mitológico. E foi com base em observações de culturas “primitivas” que este autor escreveu que “o mito é sempre o relato de um ou outro tipo de ‘criação’, pois diz-nos como é que algo veio a existir. Os actores são entes sobrenaturais e os mitos mostram a sua actividade criadora e revelam a sacralidade (ou apenas a sobrenaturalidade) dos seus actos”. Sendo que o mito descreve sempre o acto de criação, seja do Homem ou do Mundo, ele é, para Eliade “o paradigma para todos os actos humanos significativos. Sabê-lo é saber a ‘origem’ das coisas, o que permite controlá-las e manipulá-las à vontade”.
Claro está que, para quem o partilha, o mito é pura Verdade e Revelação. Fantasia mitológica será sim a crença do vizinho.

Podia agora lançar-me em voos arriscados, teorizando a Shoah como um “mito negativo”; o doppelgänger do conceito numinoso de história da criação – uma narração de morte e fim, que no entanto continua a dar aos seus “detentores” o poder de manipular a plástica história das origens e os subsequentes destinos. Afinal, o Povo Escolhido já elaborou no passado alguns mitos aglutinadores ancorados em perseguições e outras provações. Bem; podia escrever estas coisas mas não o vou fazer. A minha parentela judaica ia chatear-me. E, mais a mais, a minha vida não é isto :-)

12 comentários:

Anónimo disse...

Sim, Luís, é verdade que o conceito de mito é habitualmente e por vezes erradamente associado à inverdade (isto é um mito = é interpretado como = não é verdade)

Acho até que poderias escrever um excelente post sobre mito e mitologização. O que me fascina é o processo da constituição dos mitos. Escreve algo sobre isto!! Pedido de leitor!!

Foste sensato, Luís. Todavia, se tivesses explicitado o significado invocado concerteza que não serias mal interpretado. Os teus leitores talvez sejam mais sofisticados do que julgas. Suponho que conheças a obra Work on Myth de Hans Blumenberg. Um trabalho monumental, na minha opinião.


http://www.amazon.com/Studies-Contemporary-German-Social-Thought/dp/0262521334

Anónimo disse...

oop di la..

não vi o "ler mais"

vou já ler o resto do post.

cjt disse...

Luís, devo protestar.
Não é admissível a utilização da imagem do único sagrado verdadeiro neste post, criador das Montanhas, das Árvores e dos Anões num post sobre o mito.
Que o Sagrado Apêndice fulmine os pecadores.

Anónimo disse...

Não concordo inteiramente com o teu post. Infelizmente não disponho de tempo (agora) para abordar a tese nele apresentada: manipulação da "plástica história" etc.
Este é assunto que merece ponderação cuidada. Para mais tarde.

Podia escrever. Já escrevi. :)

És um menino esperto! :

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo,
ora, aqui vão duas ou três achegas, que são modestos testemunhos do gosto que a leitura do que aqui nos convidas a pensar me proporcionou.
Pois bem, sem dúvida que os mitos (no sentido forte que dás à palavra) são criações imaginárias - metáforas do real e metamorfoses da experiência e do corpo-a-corpo doss humanos com o real (circunstante e interior) que habitam e os habita. Metáforas, portanto, mas cujo fundo comunica com o sem-fundo metamórfico da substância humana e do tecido do real. Nesta media, quando os consideramos assim, são outras tantas "provas reais" da auto-criação humana.
Mas o problema - estou a esquematizar brutalmente - é que considerá-los assim, concebê-los como tu sugeres, exige a ruptura com outro dos seus aspectos fundamentais, outro dos seus traços distintivos. Porque o próprio mito não se considera assim: assinala a criação, mas fechando-a de uma vez por todas, representando-se como um universo de um discurso fechado que encerra, fecha e define, para a eternidade e esconjurando o tempo e a história, o discurso do universo (humano e natural), ditando a sua instituição e a sua lei de uma vez por todas, fechando a interrogação e recalcando-a como aberração e infidelidade.
Era por isso que, com uma inspiração que anima ainda o que tão bem dizes no teu post, os românticos alemães, fascinados pelo mito como potência de criação, falavam da necessidade de o libertar do "terror das origens". Ou seja, trata-se, para nós, de abrirmos a sua narrativa a essa distância ou consciência de si própria que os devolva à responsabilidade de uma liberdade de criação que se saiba e ouse ao mesmo tempo como criação de liberdade.
É por isso que, considerando a coisa - sempre demasiado esquematicamente - do ponto de vista político, essa outra criação radical, como diria Castoriadis, que é o projecto de autonomia ou ideia democrática só é possível através da ruptura da clausura do discurso mítico e do enclausuramento do universo e da história que ela comporta - ruptura que se enuncia no núcleo distintivo da democracia:: somos e queremos ser aqueles que se dão, sabendo-o e responsabilizando-se por isso, as suas próprias instituições e leis, dando conta e razão das nossas razões, afirmando a liberdade de interrogar sem tabús as nossas próprias crenças e costumes, pois estes são criações temporais e históricas, criações nossas e não lei eterna recebida de maiores asobrenaturais, da vontade divina ou de uma ordem última de determinações exterior, antecipada ou final.
Repara, por fim, que pretendo com isto incitar-te simplesmente a precisares melhor a tua posição: limitando-a, por um lado, e validando-a, por outro. E que o faço também tendo em conta o que me parece ser o propósito mais vivo da tua proposta de reconsideração do mito: apreender nele uma potência de imaginação ontologicamente activa e criadora que não nega, mas retempera as exigências do exercício do dar conta e razão.

Abrç

miguel (sp)

Luis Rainha disse...

Miguel,

Olha que o mito pode não ser coisa assim tão rígida.
por exemplo, os estudos de Robertson Smith sobre a civilização judaica demonstraram a evolução das crenças e práticas religiosas dos Judeus em paralelo com as mudanças que o seu modus vivendi foi sofrendo, da comunidade nómada que via a sua relação com Deus como um vínculo Pai-filhos, até à visão de um Deus irado e a exigir sacrifícios, em tempos de opressão e confinamento.

Miguel Serras Pereira disse...

Luis,
o meu comentário era muito esquemático e não tenho tempo para aprofundar as coisas.
Mas, bem, sempre te digo: sim, os mitos evoluem, transformam-se, têm história, mas negam-no - ou negam que esse aspecto afecte a sua verdade essencia: a história aparece quando muito como perturbação, ocultação, aproximação de algo que já lá estava desde sempre e para sempre (e este aspecto mítico perdura em boa parte das filosofias da história que ainda hoje moldam e limitam a nossa consideração do tempo e dedo devir. O que é outro assunto importante, que terá de ficar para outra ocasião). Aqui refiro-me, é claro, aos mitos enquanto vigoram como elementos normativos nucleares: narrativas exemplares, segundo a definição de Eliade, que prescrevem e regulam a acção humana e definem, descrevem e legislam - em termos indissoluvelmente descritivos e normativos - o seu sentido "em última instância", definitivo e único, primeiro e único, antecipado e final.
Enfim, parece-me…

msp

Anónimo disse...

A existência dos mitos é trágica: ou são demolidos ou persistem inalterados. São criados pela história mas não são por ela alterados. A praxis associada a um mito pode ser modificada. Todavia, um mito cuja essência (essência) seja submetida às vicissitudes históricas deixa de ser um mito e passa a ser um conjunto de interrogações, uma narrativa ou uma história (que confere integibilidade a um mundo contraditório e confuso) com pontos de interrogação. O mito não é feito de pontos de interrogação. Pode suscitar interrogações, mas jamais sucumbe à indeterminação filosófica que acompanha a interrogação. Ora, como é sabido, os mitos são "assertivos", normativos, como diz, e muito bem, o Miguel. Se o nucleus de um mito é posto em causa, interrogado, a sua força expressiva-normativa dissolve-se.

Quanto ao resto, parece-me que Luís e Miguel estão ambos correctos: a praxis associada a um mito muda mas o significado do mito não. Esta persistência do inalterável na mudança histórica engendra um paradoxo: é uma essência que emana da existência histórica (concreta, portanto: ex. a perseguição de Judeus)mas que, uma vez constituído, resiste, persiste, orienta e confere inteligibilidade...

Poderemos afirmar que o mito da Terra Prometida mudou? Não, não podemos. Permanece intacto. Este mito é uma fábula?: em parte, sim. Contudo, o mito surge da projecção ou transfiguração de uma condição, absolutizando-a sob a forma de uma história que se articula no intersticio da metáfora e do mundano. O mito tem que surgir de uma condição. Se não surgir de um experiência, de uma condição existencial...não dispõe de recursos que permitam a sua transcendendalização, isto é, a sua transformação numa essência (postulada) que perdura no tempo. Não existe um único mito que tenha mudado intrinsemanente, Luís. Existem mitos que foram demolidos pelo espirito crítico e existem tambem mitos sem qualquer fundamento empirico.(Protocolos de Zião: o que é neles anunciado é uma sórdida mentira mas a condição que os suscita foi real) As mudanças históricas afectam apenas os seus modos de "corroboração." Nunca a sua natureza intrinseca.

Anónimo disse...

PS: a meu ver, a melhor forma de abordar esta fascinante questão é a da tipologia analítica dada a variedade de mitos. Elaborar uma lista extensiva de vários mitos. Compará-los. Discernir as variedades de fundamento histórico ou, melhor, distinguir as condições diversas de possibilidade dos diferentes mitos. (sim, até as fábulas tem um fundamento no real, como diria o venerável Freud)

Excelente post, Rainha.

Shalom :)

Anónimo disse...

Ou Até Loginho, se preferires.

Fica bem.

Anónimo disse...

Oop di la

Rainha, mas nunca te esqueças do seguinte: podes explorar os mitos de Israel, submete-los à mais rigorosa apreciação filosófica yada yada yada...podes falar na "plasticidade" das origens...in fact, podes falar do que te apetecer. Israel está no lugar certo. E jamais dali sairá. :) :)

joão viegas disse...

Caro Luis,

Sim, o que dizes agora (e o que não dizes) tem tudo a ver com a nossa conversa a proposito do outro post. Mas sera mais apropriado falar por enigmas. Então é assim. O que tu dizes é que o primeiro de todos os mitos, é a frase biblica (do novo testamento, mas salvo erro ja vinha no antigo) :

"A verdade libertar-vos-a"

Uma crença religiosa judaico-cristã essencial... mas um mito !